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A metáfora tecida surrealista e a Femme à la chemise, de Picasso

Capítulo 3: Texto e Imagem em Amor louco

3.3 Desdobramentos do descritivo: a metáfora tecida e o “efeito-quadro”

3.3.1 A metáfora tecida surrealista e a Femme à la chemise, de Picasso

Em seu livro La clé des champs (1967), no ensaio “Signe Ascendant”, Breton comenta sobre a importância do pensamento analógico para o movimento surrealista. Seria este tipo de pensamento, manifestado através de uma comparação ou metáfora, que estabeleceria ligações entre duas realidades distintas, constituindo novidades para o espírito do indivíduo, rompendo com uma lógica que serviria apenas a uma estreita utilidade. Para o autor, seria essa a forma de pensamento que conduziria às mais relevantes descobertas das relações existentes entre dois objetos:

Je n’ai jamais éprouvé le plaisir intellectuel que sur le plan analogique. Pour moi la seule évidence au monde est commandée par le rapport spontané, extra-lucide, insolent qui s’établit, dans certaines conditions, entre telle chose et telle autre, que le sens commun retiendrait de confronter.128

No início do parágrafo, ao aproximar “o pico do Teide” a “lampejos de prazer”, Breton estabelece uma ligação que permeará todo o trecho descritivo que envolve este episódio, ou seja, a aproximação entre natureza e amor.

Neste sentido, o pensamento analógico ocupa um duplo lugar na teoria surrealista, ou seja, ele desafia a lógica estabelecida, através de associações entre duas realidades distintas que surpreenderiam o indivíduo por sua incoerência imediata, como Breton afirma no Manifesto do Surrealismo, e, ainda, liberando alguns desejos individuais, que entrariam em convergência com a própria realidade, subvertendo sua leitura; o que o autor denominou de acaso objetivo. Assim, retomando a metáfora que abre o capítulo – “O pico de Teide, em Tenerife, é feito dos lampejos do pequeno punhal de prazer que as formosas mulheres de Toledo conservam dia e noite junto ao seio” -, observamos que ela condensa a relação entre natureza e desejo, constituindo ainda o plano orgânico de todo o capítulo, em que a sociedade passa a ser contraposta à

127 BERTRAND. L’invention du paysage volcanique, p.9-10. 128

natureza, lugar que, sem as regras opressivas e utilitárias daquela, passa a ser o espaço de livre manifestação do amor louco, ou seja, do encontro de duas almas totalmente dedicadas uma à outra.

Sobre a natureza, Breton afirma:

A imensa árvore, cujas raízes mergulhavam na pré-história, lança à luz do dia, que o aparecimento do homem ainda não conseguiu conspurcar, o seu impecável fuste, que bruscamente explode noutros fustes oblíquos, segundo uma irradiação extremamente regular. Com toda a sua intacta força, ela protege essas sombras que ainda perduram no meio de nós, as sombras dos reis da fauna jurássica, de que ainda se encontram vestígios ao perscrutar-se a libido humana.129

A linguagem e o pensamento se tornam combativos através do processo metafórico e comparativo apontado em La clé des champs. Combativos na medida em que não aceitam o dado imediato, a lógica estabelecida.

O processo analógico se torna mais claro quando o analisamos à luz da teoria da metáfora tecida, discutida por Michael Riffaterre em seu ensaio “A metáfora tecida surrealista”. Segundo este autor, as imagens (verbais) surrealistas são tidas pelos críticos como sendo absurdas e obscuras, e tenta-se explicá-las simplesmente apontando este fato e associando-o ao subconsciente ou a elementos exteriores ao texto. Mas Riffaterre propõe uma análise estrutural a partir de um sistema que leva em consideração a maneira pela qual as metáforas se relacionam no texto e, partindo da metáfora primária, que seria a chave interpretativa do sistema criado, as outras imagens seriam geradas de acordo com um código estabelecido por essa metáfora inicial, matriz do sistema. A metáfora tecida é assim definida por Michael Riffaterre:

Aquilo que se chama metáfora tecida é, de fato, uma série de imagens ligadas umas às outras através da sintaxe – elas fazem parte da mesma frase ou de uma mesma estrutura narrativa ou descritiva – e através do sentido: cada uma exprime um aspecto particular de um todo, coisa ou conceito, que a primeira metáfora da série representa.130

Primeiramente, podemos destacar os dois elementos constituintes de uma metáfora tecida que, segundo Rifafterre, seriam: o veículo e o teor. O veículo seria a palavra que, ligada a uma outra, direciona o sentido que recobrirá esta primeira palavra. Assim,

129 BRETON. Amor louco, p.96. (L’arbre immense, qui plonge ses racines dans la préhistoire, lance dans

le jour que l’apparition de l’homme n’a pas encore sali son fût irréprochable qui éclate brusquement en fûts obliques, selon un rayonnement parfaitement régulier. Il épaule de toute sa force intacte ces ombres encore vivantes parmi nous qui sont celles des rois de la faune jurassique dont on retrouve les traces dès que l’on scrute la libido humaine. – Éditions Gallimard, p.104).

130

“pico”, tomado em seu sentido referencial, no contexto de uma paisagem, tem seu sentido direcionado para “lampejos do pequeno punhal de prazer”. A partir deste código estabelecido, caberia ao leitor identificar outros elementos deste tipo incluídos no sistema descritivo. Assim, seriam criados sistemas paralelos, um homólogo ao veículo primário, V1, e um outro homólogo ao teor, T1:

Em outras palavras, a seqüência verbal ocupada pela metáfora tecida se forma pelo desenvolvimento paralelo de dois sistemas associativos, um por palavras aparentadas ao veículo primário (sinônimos; palavras que estabelecem com ele uma relação metonímica; palavras que exprimem diversas modalidades de seu significado), o outro composto por palavras semelhantemente aparentadas ao conteúdo primário.131

No trecho que destacamos, a metáfora primária seria constituída do primeiro parágrafo do capítulo: “O pico do Teide, em Tenerife, é feito dos lampejos do pequeno punhal de prazer que as formosas mulheres de Toledo conservam dia e noite junto ao seio”. Esta metáfora se estende na descrição da subida ao cume do antigo vulcão (trecho 2), desenvolvendo o conteúdo primário, para se fechar com a alusão ao quadro de Picasso (trecho 3), que retoma, num movimento circular, a matriz do sistema metafórico que trata das belas mulheres espanholas. Retomemos a referida passagem do texto:

(3) Penso naquela que, há trinta anos, Picasso pintou, e nas suas várias réplicas que se cruzam de um passeio a outro, todas elas vestidas de escuro, e nesse seu ardente olhar que se esquiva para mais adiante se atear, como um fogo que desliza sobre a neve.

A expansão da metáfora primária, em que seu conteúdo é desdobrado em alguns teores complementares ou derivados, continua após a alusão ao quadro de Picasso, reforçando a gama de tons de vermelho anunciada em “lampejos”, a partir da seguinte frase:

Ultrapassados são já os cumes flamejantes, onde a sua purpúrea asa transparece, e cujas mil e uma rosáceas encadeadas impossibilitam por mais tempo a distinção entre flor e flama. Assemelham-se eles a tantos outros incêndios que se tivessem tomado de amores pelas casas e contentado em viver à sua beira, sem as estreitarem.132

131 RIFFATERRE. “A metáfora tecida na poesia surrealista”. IN: A produção do texto, p.195.

132 BRETON. Amor louco, p.91. (On a dépassé la cime des flamboyants à travers lesquels transparaît son

aile pourpre et dont les mille rosaces enchevêtrées interdisent de percevoir plus longtemps la différence qui existe entre une feuille, une fleur et une flamme. Ils étaient comme autant d’incendies qui se fussent épris des maisons, contentés d’exister près d’elles sans les étreindre. – Éditions Gallimard, p.99). Observamos que no trecho acima, Breton se refere à árvore chamada flamboyant (flamboaiã, segundo o Aurélio), originária da África Ocidental e de Madagascar, e muito comum nas Antilhas, conhecida por suas flores vermelho vivo.

Aqui, a palavra “cumes” acompanhada do adjetivo “flamejantes” (no original: “la cime des flamboyants”), seguida da comparação da cor das flores dos flamboyants com o fogo dos “incêndios” pode ser considerada como derivação do conteúdo primário (T1), que seria “lampejos do pequeno punhal de prazer”.

Interessante notar, portanto, que a reprodução do quadro de Picasso, Femme à

la chemise, é inserida em lugar bastante específico, qual seja, onde acontece a expansão

da metáfora inicial. A imagem (visual) passa a fazer parte da metáfora tecida. O entrelaçamento desta imagem visual ao texto ocorre com a descrição do olhar da modelo retratada em tal quadro de Picasso, ponto em que a matriz do sistema é retomada:“e nesse seu ardente olhar que se esquiva para mais tarde se atear, como um fogo que desliza sobre a neve”. Ou seja, a descrição da imagem segue o fio inicial da metáfora primária, em que o teor acompanha a seguinte linha comparativa (ou derivativa): “prazeres” – “flama” – “ardente”. Este campo semântico recobre um motivo que aparecerá no final do trecho, motivo privilegiado pela poética surrealista: o amor como evento excepcional:

A pergunta que gracilmente fazia, a tais horas, soerguerem-se tantos e tantos peitos, era, com efeito enunciada nas melhores condições de tempo e de lugar, nem mais nem menos do que a pergunta referente ao futuro do amor – ao futuro de um único e, por conseguinte, de todo e qualquer amor.133

Retomando o prefácio de Nadja, em que Breton discute sobre a inserção de fotografias em suas obras, podemos nos questionar sobre a opção do autor em, primeiro, apresentar uma imagem que não segue nenhum dos objetivos propostos, ou seja, evitar as descrições e servir de documento “tomado ao vivo” do evento.

A fotografia que reproduz o quadro de Picasso não ilustra a paisagem descrita por Breton; o quadro tampouco é descrito no texto, uma vez que não tem nenhuma função na narrativa; mas antes, a Femme à la chemise figura a associação que ocorre entre os elementos descritos na paisagem e a ideia do amor único como vetor de transformação do indivíduo. A escolha de tal imagem diz respeito à memória (“Penso naquela que, há trinta anos, Picasso pintou”) ultrapassando a concepção que o autor confiara ao processo fotográfico no prefácio de Nadja, e estabelece um paralelo entre o passado e o presente, entre o local descrito e uma concepção surrealista de amor.

133 BRETON. Amor louco, p.91. (La question qui soulevait gracieusement à pareille heure tant de

poitrines n’était en effet rien moins, posée dans les conditions optima de temps et de lieu, que celle de l’avenir de l’amour – que celle de l’avenir d’un seul et, par la même, de tout amour. – Éditions Gallimard, p.100).

Fig10: fotografia de Femme à la chemise, de Picasso. Foto publicada em Amor louco (1937), p.90

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