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III. A (IN)SUFICIÊNCIA DO INESGOTÁVEL

2. A monstruosidade

Ao lermos que “Toda a monstruosidade é a prova de que o homem não é um problema, mas um ensaio perpétuo” deparamo-nos de imediato com a não-simetria da afirmação, i.e., nem todo o “ensaio perpétuo” passará pela “monstruosidade”: o que é da ordem do ensaio comporta, desse modo, uma lonjura maior.

Todavia, e começando por nos debruçarmos sobre a “monstruosidade”, encontramos no primeiro dos romances de que se parte duas personagens que se podem incluir nessa categoria: são eles o “homem-macaco”, ou “possesso”, e Osório, o “tolinho de Sergude”.

O primeiro apresenta-se com uma fisicidade que precipita um “estado de dinamismo” que, não obstante “inofensivo”, atemoriza:

(…) os seus prodígios eram célebres, ele não agia como um vulgar epiléctico, mas transfigurava-se num animal como impelido por um instinto retrógrado e muito poderoso (…) Rolava, corria, penetrava quase a matéria bruta, perfurando a pedra, firmando-se na água e no ar, dividindo o fogo à sua passagem, fazendo com que o peso se distribuísse no tempo, a ponto de vencer num minuto uma distância de muitos passos. (…) [E]ra um rapaz tristonho e desconfiado e que parecia jamais se refazer duma imensa vergonha, quase um tédio de que não se sabe que miséria de solidão. (idem, 2014, pp. 378-9)

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Também no último romance da trilogia das Relações Humanas, o homem- macaco se caracteriza pelo “sorriso convulso e humilhado” (Bessa-Luís, 1966, p. 40), bem como pelo realçar da sua índole inofensiva.

Já no que se prende com Osório, a sua descrição apresenta distinções relevantes:

(...) tão belo, sonhador, resistente ao seu mundo de fantasmas e sempre empenhado em tropelias geniais, como parecia coerente na sua casa quase em ruínas, mas ruínas nascidas dum impulso inacabado e gasto, duma inspiração módica e perplexa. (…) Jamais Mateus encontrou uma expressão de desejo tão total como aquele que era todo condensado na destreza quase sedutora do louco para se apoderar duma garrafa ou dum copo cheio; toda a avidez ignóbil estava transfigurada por aquela persuasão maliciosa em que ele visava todas as resistências (…) E era então um rosto límpido e discreto, o desse louco entregue à perseverança do seu apetite (…) E todo ele, sofrendo a atracção desse copo em que espumava uma pérola roxa, parecia extraordinariamente recente, criado e limpo nessa hora miraculosa, bem diferente dos outros convivas esmagados na sombria doçura da sua sobrevivência. (idem, 2014, pp. 417-8)

A dita fisicidade do possesso – toda a sua enormidade corporal, literal – são a marca e a extensão da sua comparência no mundo: uma “comparência” consideravelmente espoliada de escolha, dado que a personagem apenas se manifesta desintegrada e omissa de quaisquer conexões com quem quer que seja. A “transfiguração” do homem-macaco é quase exótica, isolada e, mais do que isso, desolada: os ensaios a que procede são de alcance diminuto em razão da proveniência, ou seja, da tal “miséria de solidão” desconhecida mas que patenteia tristeza e “vergonha”. Longe de encetar uma atitude de recusa face ao atrofiar da sua individualidade, o possesso já só consegue, a espaços, tentar emergir no mar de declínio irrevogável em que mergulhou. Sendo uma personagem alienada, a sua monstruosidade está dissolvida numa experimentação fastidiosa e incapaz de desestabilizar verdadeiramente.

Osório, pelo contrário, é promotor do acontecimento, na medida em que os indetermináveis actos de vontade que leva a cabo desencadeiam efeitos no sujeito. O poder de divergência que esta personagem encerra em si não fora gerado pelo abandono da sociabilidade mas sim pelo encontro.

O despontar nessa “hora miraculosa” ocasiona o contraste entre si, detentor e manejador do desígnio, e o Outro reduzido “na sombria doçura da sua sobreviência.”. Osório e aquela hora miraculosa simbolizam o inesgotável da resistência, ou seja, o

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segregar da conformidade que impede a circulação e o conhecimento. Não obstante, a esta personagem surgem associadas as ideias de loucura e de exagero: “destreza quase sedutora do louco”; “avidez ignóbil”. Assim, pelo que se acabou de dizer, e tendo como que em cima da mesa duas naturezas de monstruosidade, apenas Osório cabe no temperamento do refractário.

Ora, a própria acepção de “monstruosidade” pode revelar-se bastante elástica. Se pegámos nos dois casos referidos, isso ficou a dever-se, como bem se entende, à desmedida: o possesso enquanto fáctica e fisicamente, e Osório com o corolário do temperamento baseado na concentração e na absorção unívocas e unidimensionais. Como vimos, o caso de Osório aproxima-se mais no que tange o tópico da experimentação. Contudo, o monstruoso, o excessivo ou o desmesurado – que não se confundem – podem não significar literalmente o gigantesco.

A Ode ao Homem, da Antígona de Sófocles, nomeadamente a adjectivação do humano, propicia uma interessante pedra-de-toque. Maria Helena da Rocha Pereira propõe “prodigioso”; Hölderlin pensa em “ungeheuer”, i.e., fisicamente colossal ou gigante; finalmente, por exemplo, Heidegger traduz por “unheimlich”, que na sua considerável intraduzibilidade imanente prevê o estranho do que é conhecido –

uncanny, na tradução inglesa, parece mais satisfatório do que o desconhecido ou assustador em português.

Começando pela tradução de Hölderlin, essa, mutatis mutandis, poder-se-á colar ao homem-macaco. Derrida, no seu La Vérité en Peinture sempre com Kant como pano de fundo, dissocia o “colossal” - que é o alvo de parte do capítulo intitulado “Parergon” – do “prodigioso”, sendo que este último se pode confundir com o “monstruoso”. Para o filósofo francês, o colossal emana do sublime kantiano: não é da ordem do empírico mas do transcendental, é o “almost too large” (Derrida, 1987, p. 125)18. Já o

prodigioso/monstruoso, que não o “sedutor” ou sequer “assustador”, “através do tamanho aniquila e reduz a nada o fim [a finalidade]”; esta concepção do monstruoso que, pela sua medida, transcende a finalidade será importante. Mas peguemos também no unheimlich.

Ao extrairmos do unheimlich freudiano a ideia de teste à realidade e, tendo

18 Como é sabido, para Kant o “sublime” distingue-se do “belo”, sendo irrepresentável: “o sublime não

deve ser procurado nas coisas da natureza, mas unicamente nas nossas ideias” - Cf. p. 45, Kant, Immanuel, (1992). Crítica da Faculdade do Juízo. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

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presente a consequência da apolis para a própria Antígona – que, como salienta Steiner, será o motivo pelo qual Heidegger escolhe aquele termo -, podemos aproximá-los da

monstruosidade exemplificada por Osório. A apolis, como se sabe, não significa apenas

o sentido literal de “apátrida”, detendo também detém um conteúdo relativo a uma desconformidade perante o status quo, este visto como estorvo, desde logo potencial, face aos prodígios do Homem: Hegel encarava Antígona como personificação do dever

ser. Consequentemente, esse prodígio (auto)limita-se.

Se se mencionou o transcender da finalidade, e se o relacionámos com o “teste à

realidade” proveniente de algo ao mesmo tempo familiar/conhecido e estranho/secreto,

porventura possamos encontrar na noção de infranqueável a expressão que melhor condiz com Osório, e que acaba por condensar a sua presença no mundo.

Em O Manto, deparamo-nos com a seguinte descrição: “(...) a precisão, a força, a independência e o rompimento necessário a toda a coragem nova” (Bessa-Luís, 1961a, p. 20). A tal coragem nova passa por uma retoma, não com o linear, mas com o concreto: a linearidade centraliza, ao passo que o concreto é capaz de expansão. Osório vai testando a realidade com a sua imprudência monstruosa, aqui como em Derrida, visto que o experimento não é limitado pela limitação, ou seja, não se lhe subjuga transformando-a em medium. Essa extravagância é instauradora, porém, de um abismo que, não enclausurando ou fechando, transporta Osório para o domínio da aparição. É veiculada uma experimentação do mundo, com as ditas precisão, força e independência que transfiguram, experimentação essa com um cariz, mais do que único, excepcional: apresenta-se, não obstante, como a expressão mais conseguida até aqui do gesto que desata a sensação.

O ensaio perpétuo não faz decorrer de si um juízo de resultado ou de valor, porque ensaiar perpetuamente pode consubstanciar um movimento elíptico. O que parece é que a monstruosidade aponta, desde logo, para o que é da ordem do anti-herói: por isso, acima de tudo, monstruosa pode ser, aliás, sê-lo-á por definição, toda a vontade que recusa deixar o mundo intacto.

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