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A mulher e a angústia

No documento Devastação feminina: a outra face do amor (páginas 76-82)

CAPÍTULO 3 – A DEVASTAÇÃO NAS PARCERIAS AMOROSAS

3.1 A mulher e a angústia

O conceito de angústia é muito caro à Psicanálise desde Freud. Em seu texto intitulado Inibições, sintomas e angústia (1926), Freud a caracteriza da seguinte forma:

A angústia então é, em primeiro lugar, algo que se sente. Chamamos de estado afetivo, embora também ignoremos o que seja um afeto. Como uma sensação, a angústia tem um caráter muito acentuado de desprazer. Mas isto não é toda sua qualidade. Nem todo desprazer pode ser chamado de angústia, pois há outras sensações, tais como a tensão, a dor ou o luto, que têm o caráter de desprazer. Assim, a angústia deve ter particularidades além dessa qualidade de desprazer. Podemos conseguir compreender as diferenças entre esses vários afetos desagradáveis? (FREUD, 1926, p. 12).

Desse modo, a angústia é caracterizada por Freud como um afeto, como algo que se sente, provoca sensações. Nessa teoria da angústia proposta em 1926, Freud a considera como um sinal que alerta para se defender de algum perigo, “eminentemente de uma reação à perda, à separação de um objeto fortemente investido” (JORGE, 2007, p.37). Nesse momento a angústia é considerada como angústia de castração.

Jorge (2007) destaca que em Novas conferências introdutórias sobre Psicanálise Freud (1932-1936) menciona também a angústia real, que ocorre por um evento do mundo externo; a angústia neurótica, ocasionada por elementos pulsionais do isso e a angústia de consciência, desencadeada pelo supereu. Mesmo assim, a segunda teoria da angústia de Freud está relacionada especialmente ao eu (JORGE, 2007).

Posteriormente Lacan (1962-1963) irá complementar que a angústia é um afeto que não engana e que ela possui objeto: o objeto a. Enquanto para Freud a angústia está relacionada à perda do objeto, Lacan, ao contrário, afirma que a angústia surge devido à proximidade do objeto. Ela surge quando algo vem ocupar o lugar do objeto a (JORGE, 2007). Ou seja, a angústia não surge diante da falta, mas sim quando a falta faltar, pois sem falta não há desejo.

Para Lacan (1962-1963) a angústia é o afeto por excelência, o afeto que não engana. Todos os outros afetos são derivados simbólicos e imaginários do afeto de angústia (JORGE, 2007). Ela é considerada a evocação do gozo que o sujeito perdeu em sua entrada no mundo

simbólico, gozo que seria mortífero se o sujeito conseguisse atingi-lo. A angústia é avassaladora justamente porque presentifica aquilo que o sujeito perdeu em sua constituição.

Para Lacan a angústia é um sinal do real que invade a ordem imaginária do eu (JORGE, 2007). No Seminário R.S.I (1974-1975) Lacan discute a inseparabilidade dos registros real, simbólico e imaginário. No centro do nó borromeano encontra-se o objeto a, “furo em torno do qual a estrutura psíquica borromeana se constrói” (JORGE, 2007, p.39).

Retomando o texto freudiano Inibições, sintomas e angústia (FREUD, 1926) a partir das novas noções introduzidas por Lacan (1974-1975), pode-se afirmar que o sintoma corresponde a invasão do simbólico no real, a inibição à invasão do imaginário no simbólico, por fim, a angústia corresponde à invasão do real no imaginário (JORGE, 2007).

Considerando que o imaginário é o registro da ordem do sentido; que o real é o avesso do imaginário, ou seja, o não-sentido; já o simbólico é da ordem do duplo sentido. Então, a inibição representa a redução do sentido; já o sintoma é quando o corpo expressa simbolicamente a verdade de seu desejo; por sua vez, a angústia pode ser considerada como a invasão do não-senso do real na homeostase imaginária, por isso Jorge (2007) aponta o trauma como sendo o paradigma mais excelente da angústia.

A partir das proposições de Lacan (1962-1963) em seu seminário dedicado à angústia, esta passa a ser considerada especialmente por sua aproximação com o real. O encontro com o real é capaz de provocar angústia no sujeito, justamente porque o real é o sem sentido. Então ele irá desordenar o sentido que o sujeito construiu imaginariamente.

O feminino é apontado também devido à sua proximidade com o real, pelo fato de não se submeter inteiramente ao Édipo e à castração. Conforme abordado no capítulo anterior, como consequência da mulher não estar toda submetida ao simbólico e ao gozo fálico ela encontra-se referida também a um gozo além do falo, suplementar a este. A mulher, por não estar completamente submetida ao registro simbólico, possui uma relação privilegiada com o real. A questão que surge é: isso pode indicar que, consequentemente, as mulheres estão mais suscetíveis à angústia?

Como destaca Jorge (2007) o real, para a psicanálise, está relacionado à não escrita da relação sexual e as consequências disso para cada sujeito. O real é o que está fora do registro simbólico, está excluído, porém não está desaparecido. Ele tem a característica de insistência, sempre retorna, mas nunca se escreve.

A partir da teorização da mulher como não-toda submetida à ordem fálica que Lacan (1972-1973) irá apresentar a respeito da relação que a mulher possui com o real. Marcos (2011) aponta que a noção de não-todo pode ser considerada um jeito de refletir acerca da irrupção do real na mulher, já que elas estão não-todas submetidas à castração.

Aqui, considera-se que um dos motivos que levam às mulheres ao encontro com o real e, consequentemente, experimentarem a angústia, pode ter relação com a importância que elas dão ao amor e as parcerias amorosas. Freud (1930) afirmara “nunca nos achamos tão indefesos quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes quando perdemos nosso objeto amado ou seu amor” (FREUD, 1930, p.90).

O efeito da perda do amor se dá de forma diferente, a depender da posição subjetiva, quer seja masculina ou feminina. As mulheres - que habitam o lado não-todo na sexuação - posicionam-se de um certo modo quando estão em uma parceria amorosa que talvez as deixa mais suscetíveis à angústia diante da perda do amor.

O amor: causa de angústia?

A respeito do amor, Ligeiro (2010) recorda que para Freud o estado de enamoramento se dá a partir de um investimento de libido maior no objeto em relação ao investimento no eu. Lacan (1953-1954) afirma que o amor imaginário tem como objetivo fisgar o outro como objeto, assim, deseja ser amado. É o que pode-se chamar de amor narcísico, que possui uma demanda infinita, que quer sempre mais (LIGEIRO, 2010). Lacan ressalta “queremos ser amados por tudo - não somente pelo nosso eu, como diz o Descartes, mas pela cor dos nossos olhos, pelas nossas mãos, pelas nossas fraquezas, por tudo” (LACAN, 1953-1954, p.315).

Para Freud (1914b) a mulher ama de modo narcisista, assim, ela impõe ao seu parceiro demandas que podem ser da ordem do impossível de serem satisfeitas. Em seu texto sobre o narcisismo, Freud (1914b) define o modo de amar narcísico, que é aquele que o sujeito procura mais ser amado do que amar. Para Freud (1914b) esses sujeitos procuram como parceiro alguém que possa amá-los e admirá-los. O nome desse modo de amor deriva justamente da lenda grega do Narciso, que era um jovem que preferia a si mesmo do que qualquer outra pessoa.

modo anaclítico tem a ver com a ligação dos primeiros anos da vida da criança, enquanto o modo “narcisista”, são aqueles sujeitos que, segundo Freud (1914) “em sua escolha ulterior dos objetos amorosos elas adotaram como modelo não sua mãe, mas seus próprios eus. Procuram inequivocamente a si mesmas como um objeto amoroso” (FREUD, 1914b, p.94).

Entretanto, apesar de relatar esses dois modos de escolha do objeto sexual, Freud (1914b) destaca que esses tipos de escolha “estão abertos a cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um ou por outro” (FREUD, 1914b, p.95). Ou seja, não é uma divisão acentuada em que cada indivíduo só irá fazer um dos tipos de escolha:

Dizemos que um ser humano tem, originalmente, dois objetos sexuais – ele próprio e a mulher que cuida dele – e ao fazê-lo estamos postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o qual, em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal (FREUD, 1914b, p.95).

Freud (1914b), então, resume a respeito das escolhas objetais afirmando que uma pessoa pode amar segundo o tipo narcisista “o que ela própria é (isto é, ela mesma); o que ela própria foi; o que ela própria gostaria de ser; alguém que foi uma vez parte dela mesma” (FREUD, 1914b, p.97). Já segundo o tipo anaclítico a pessoa pode amar “a mulher que a alimenta; o homem que a protege” (FREUD, 1914b, p.97), ele continua que também se incluiria no tipo anaclítico a sucessão de substitutos que tomam o lugar da mulher que a alimenta e do homem que a protege.

Freud (1914b) considerava que a forma de amar da mulher era de modo narcísico, por exigir que o outro a ame, mais do que ter a necessidade de amar. Tal como o amor da mulher, Ligeiro (2010) salienta que a angústia também está ligada ao narcisismo, pois quando a mulher perde seu amor ela pode ser tomada por uma angústia que acarreta a perda de si mesma. Assim, “um dilaceramento do seu Eu, o que se configura como a sede da angústia e do narcisismo” (LIGEIRO, 2010, p.54).

Essas discussões de Freud (1914b) a respeito do modo como as pessoas amam ou desejam serem amadas aproximam-se em parte das proposições de Lacan (1953-1954), especialmente do início de seu ensino. Porém, a partir da introdução feita por Lacan do registro do real em suas discussões e, principalmente, da maior importância que o real foi tomando no decorrer de seu ensino, é possível identificar algumas diferenças entre a proposta de Freud e de Lacan acerca do amor (LIGEIRO, 2010).

Ao situar o amor como um semblante, Lacan irá afastá-lo do registro imaginário e aproximá-lo do real (LIGEIRO, 2010). O amor enquanto semblante converte-se em um

envoltório da pulsão e do real do sexo, ao mesmo tempo que se aproxima deles e permite que o sujeito possua um gozo culturalmente aceitável. Assim, “o amor como semblante possibilita a parceria e o laço social, mas ao mesmo tempo aponta para a crueza da impossibilidade da relação sexual” (LIGEIRO, 2010, p.59).

A noção de semblante na Psicanálise foi criada em consequência das discussões sobre a sexualidade feminina, enfatiza Marcos (2011), pois o semblante proporciona uma articulação mais próxima do real com o simbólico. Então, após as teorizações acerca da chamada “mascarada feminina” (LACAN, 1962-1963), o feminino propiciou teorizar o semblante associado com o real e o simbólico.

Marcos (2011) retoma Miller (2001) quando este afirma que mesmo que as mulheres também se utilizem de semblantes fálicos, quer tenha o objetivo de tamponar a falta, quer seja para causar desejo, aparentemente elas sabem que o falo não passa de um semblante, mais do que os homens. O semblante “é a característica mesma do discurso, mas é o real do gozo ao qual as mulheres tem acesso que permite lembrar sua dupla face voltada para o real e para o simbólico” (MARCOS, 2011, p.156)

Quando o sujeito busca um parceiro, ele busca, basicamente, o objeto que irá obturar a falta, o objeto que poderia trazer de volta a completude que supostamente foi perdida a partir da entrada na linguagem. Porém, como nos ensina Lacan (1962-1963) tal objeto não existe, o que pode existir é uma satisfação parcial causada por uma diversidade de objetos causa de desejo, que são escolhidos por meio da fantasia.

A repetição, reforça Ligeiro (2010) é ocasionada pela impossibilidade da satisfação que esperava encontrar nos objetos, o que leva a buscar novamente a satisfação, seja em outro objeto, seja no mesmo. “E o que reencontramos sempre é o mesmo: o que o próximo tem de enigmático, a coisa irredutível e insubjetivável, em outras palavras, estamos diante do enigma do desejo do Outro” (LIGEIRO, 2010, p.60).

A questão “O que o Outro quer de mim?” (LACAN, 1962-1963) se impõe para o sujeito, Ligeiro (2010) destaca que isso mostra que a angústia está relacionada ao desejo do Outro. Ao encontrar-se com o enigma do desejo do Outro, através do amor, isso causa ainda mais angústia para a mulher, comparada ao homem (LIGEIRO, 2010).

A respeito do modo de amar de acordo com o sexo, enquanto o homem ama de modo fetichista, ele goza do objeto a. Lacan (1972-1973) afirmou que embora o homem

acredite que ele aborda a mulher, ele não aborda. Na verdade o homem aborda a causa de seu desejo, o objeto a. Isto é definido por Lacan como a “perversão polimorfa do macho” (LACAN, 1972-1973, p.98). Do lado masculino, o sujeito possui seu gozo circunscrito, limitado e contável, pois está submetido à ordem fálica.

Ligeiro (2010) retoma Miller (2008) quando este refere-se ao objeto-fetiche como um objeto “mudo” do lado masculino. O objeto fetiche é aquele que o homem endereça seu amor, possui um caráter de unidade, é uniforme. É um objeto no seu sentido mais real, mudo e inerte, ele satisfaz o homem sem precisar de palavras (LIGEIRO, 2010).

A mulher, ao contrário do homem, ama de modo erotomaníaco. Nesse caso a erotomania se diferencia daquela presente na psicose, ao invés da certeza de que o outro a ama, existe a dúvida que insiste e a aflige “sou amada por ele?”. Nessa situação, a dúvida converte-se em uma demanda infinita de amor, característica da presença do gozo feminino (LACAN, 1972-1973).

Concorda-se com a conclusão de Ligeiro (2010) de que as questões “o que é ser mulher” e “o que o Outro quer de mim” podem ser consideradas equivalentes e inseparáveis no que concerne à angústia que a mulher experimenta. Tanto no caso do homem quanto da mulher, há uma forte relação da angústia com o desamparo. Porém, devido a relação mais próxima da mulher com o real, ela experimenta a angústia mais facilmente e, em muitos casos, de modo mais intenso.

No caso do homem, a angústia relaciona-se ao medo de não ser amado devido a sua relação com o Supereu (LIGEIRO, 2010). Já no caso da mulher, a angústia está atrelada ao medo de perder o amor do outro, o que teria como consequência perder a si mesma. “Ambas as situações remetem ao desamparado, na medida em que o amor se configura como proteção contra este” (LIGEIRO, 2010, p.65).

Em seu seminário dedicado à angústia, Lacan (1962-1963) define que há uma diferença em torno de como a angústia é experimentada em cada sexo. Para o autor, o homem possui uma relação mais complicada com o falo, já que pode se deparar com a detumescência do órgão que costuma fazer as vezes do falo, o pênis. A detumescência está ligada ao momento em que o desejo pareceu ter sido satisfeito. Assim, “a relação do homem com o gozo é complicada e limitada pela detumescência, fonte de sua angústia, ligada a um órgão que falha ou então que nem sempre está disponível” (LIGEIRO, 2010, p.65).

Já a angústia da mulher está atrelada ao desejo do Outro, ela costuma se angustiar por encontrar-se perante um Outro castrado, que ela identifica a falta, entretanto ela não sabe como poderia completá-lo: “Para a mulher o desejo do Outro é um meio para que seu gozo tenha um objeto, digamos, conveniente. Sua angústia se dá apenas diante do desejo do Outro, que, afinal de contas, ela não sabe muito bem o que encobre” (LACAN,1962-1963, p. 210).

A partir do que foi discutido até então, reitera-se a proximidade da mulher com o registro do real, isso ocorre à medida que elas são não-todas submetidas à ordem fálica. A falta de cobertura simbólica as deixa mais suscetíveis a experimentarem a angústia, já que a angústia pode ser um sinal da presença do real.

Retomando o questionamento se o amor é uma das causas da angústia da mulher, conclui-se, a partir do que foi discutido, que o amor pode ser causa de angústia para o falasser feminino. Porém, é importante aprofundar-se mais acerca do modo como homens e mulheres posicionam-se diante do parceiro amoroso.

No documento Devastação feminina: a outra face do amor (páginas 76-82)