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3 SEDUTORAS, INFIÉIS E À PROCURA DE UM HOMEM – AS

3.3 A MULHER E O HUMOR DOS TIPOS

3.3.2 A(s) mulher(es) como cenário

Pensar a mulher sendo acionada para compor e embelezar o plano, muitas vezes endereçada para uma audiência masculina heterossexual, é voltar às origens do uso da mulher no Teatro de Revista. Estamos falando mais especificamente das vedetes, mas agora como um lugar específico, porém secundário, de sedução, forma e beleza. Pode-se pensar nas vedetes no começo do século passado como um instrumento de resistência, pelo qual se demonstrava uma emancipação feminina para uma conquista de sua sexualidade livre frente a uma cultura que, segundo Pinsky (2013), destinava a mulher a um papel social que valorizava a castidade, honra, submissão, compostura e fidelidade, em que o prazer sexual era dissociado do amor. Mas, estamos falando de episódios na década de 1970 e antes disso, a partir de 1950, o ideal de mulher casta sofre uma inflexão. A sedução ganha um papel importante na relação entre homens e mulheres com o advento da pílula anticoncepcional, de modo que o sexo era incentivado entre noivos e a busca do prazer era associada ao amor. O erotismo começava a ser tolerado e não era mais necessariamente imoral. Havia agora um novo pacto sexual no qual não se desvinculava amor e sexo.

Na década de 1970, a minissaia invadiu o Brasil. Na abertura de Faça Humor, Não

Faça Guerra, que era o cartão postal do programa que queria passar a imagem de ser colado

com o que há de mais moderno na cultura da época, era possível ver inúmeras dançarinas de minissaia ou maiô, dançando cada uma ao seu ritmo. Mas, obedecia a uma lógica - as mulheres preenchendo as bordas do quadro de forma piramidal e no centro um homem de terno e acima aquele que canta.

A composição desse quadro é reveladora da narrativa herdada do Teatro de Revista pela lógica narrativa das vedetes, se podemos chamar esse fenômeno de “vedetização” desse espaço, que podemos compreender em três aspectos interligados: o primeiro consiste na observação de que enquanto a mulher era generalizada em um “corpo de bailarinas”, retirando dela sua individualidade e sua particularidade, o homem era especificado em seu talento de humorista/apresentador/comunicador, particularizando-o. Segundo, esse corpo, que é o conjunto de mulheres, é posto de forma secundária, compondo o segundo plano em que o primeiro está o homem. Podemos pensar nisso considerando tanto a disposição das pessoas na própria tomada, de forma particular, quanto o programa por inteiro no episódio, visto que as mulheres até podem fazer parte da abertura e encerramento, mas elas não são as principais atrações do programa, além de serem reconhecidas pelo seu coletivo (dançarinas, vedetes, chacretes etc.), enquanto os homens pelo seu nome. Terceiro, as mulheres estão reduzidas ao seu corpo pela performance da dança, por suas formas e nada além disso.

A abertura de Satiricom marca ainda mais tais aspectos. Diferentemente da abertura de

Faça Humor, Não Faça Guerra, na qual cada uma das bailarinas dançavam ao seu gosto, as

dançarinas que abrem o programa Satiricom estão vestindo o mesmo figurino, usando o mesmo corte de cabelo e atuam numa coreografia sincronizada. A iluminação sombria e cheia de efeitos luminosos não permite enxergar o rosto de nenhum a delas. Para completar, a dança é sempre interrompida com imagens das atrações do programa, todas elas realizadas por homens: Jô Soares, Agildo Ribeiro, Miéle e Renato Corte Real.

Figura 12: Fragmento da abertura de Satiricom. Aqui mostra o exato momento em que a dança é interrompida por uma inserção de uma montagem, no qual Jô Soares no centro ri para a câmera.

Podemos perceber a mesma lógica na abertura de Chico City, em 1977. Numa montagem frenética de imagens do Rio de Janeiro (como a cidade de Chico City), o clipe começa mostrando a bandeira da cidade fictícia em primeiro plano e ao fundo o Pão de Açúcar. O letreiro Chico City aparece e começa uma sucessão de planos da cidade, ruas, prédios e praças até que um zoom in revela uma banhista numa praia de biquíni sentada numa cadeira com outras banhistas igualmente belas ao seu redor. A tomada é interrompida com

uma sucessão de imagens frisadas dos personagens de Chico Anysio, entre eles o Coalhada e o Seu Pantaleão. Mais uma vez, planos gerais da capital carioca e mais uma interrupção que revela mais algumas imagens de personagens do Chico Anysio estáticos, depois entra uma sequência de planos de mulheres de biquíni em algum clube e depois sentadas à beira de uma piscina, balançando os pés. No meio desses dois planos, a imagem de Bozó frisada revela mais um personagem de Chico Anysio.

Figura 13 – Fragmentos da Abertura de Chico City, mostrando a imagens da cidade do Rio de Janeiro, personagens do Chico Anysio e mulheres de biquíni.

As imagens, por si, não têm relação narrativa entre elas, mas revelam três intenções: i) mostrar que o programa mudou de uma cidade pequena, que era a proposta do início, para uma grande metrópole e que ali se encontrariam temas relacionados à vida da grande cidade; ii) demonstrar a versatilidade do humorista em fazer tipos cômicos, retificados nas imagens de vários personagens interpretado por Chico Anysio e iii) prender uma audiência masculina ou cativá-la de início, mostrando corpos dentro de um padrão de desejo. As mulheres representadas não têm uma história específica ou nome e muito menos vamos revê-las durante o episódio, como os personagens-tipo de Anysio. Uma inserção gratuita que revela o caráter masculino e heterossexual daquele tipo de humor. Confirma-se, assim, a “vedetização” dessas três aberturas a favor do sexo masculino que se repete nas vinhetas de intervalo e encerramento41.

Nos episódios de O Planeta dos Homens de 1980 e 1981 essa lógica é quebrada na abertura, na qual são destacados os símios. Entretanto, no quadro 1, de 1981, é feita uma espécie de homenagem moderna aos teatros de revista, realizando um rápido musical com a !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

41 Nesse aspecto a mulher é apenas visibilizada no que mais concerne ao interesse masculino, o imaginário da

canção “Balancê”. Nela, homens de terno cantam, enquanto que vedetes, em roupas curtas, dançam de forma sincronizada em segundo plano.

Contudo, o quadro mais notável dessa categoria está justamente no episódio de 1981 de O Planeta dos Homens (1981). O quadro 15 desse programa não estaria nessa categoria se não fosse o fato de que há uma mulher negra (Maria Rosa) posta em segundo plano como parte consciente do cenário. A piada é empreendida por dois homens, entretanto, se fosse somente por esse fato, estaria na categoria anterior. Em um ato duplo de exatamente dez segundos mostra-se uma modelo negra com suas costas nuas. Dois homens surgem na parte inferior do quadro e é quando a mulher vira de frente, tampando os seios e logo após colocando as mãos nos ombros dos dois homens, de forma que os seios da mulher são cobertos pelas cabeças masculinas que executam a piada:

[Homem 1]: Pare de defender as mulheres, cara! Se aparecer mais homens feito você, isso aqui vai virar um matriarcado dos diabos.

[Homem 2]: Dos diabos não. (risada) Das diabas!

Figura 14 : Quadro de o Planeta dos Homens (1981). Aqui mostra todo movimento feito pela modelo Maria Rosa.

VVisto que o tema em questão tem relação com as disputas pelo espaço público demandadas pelos movimentos feministas da época em que o programa estava sendo exibido, podemos observar a exposição do tema na piada que, de um lado, demonstra a insatisfação de um homem para o comportamento “feminista” demais e, do outro, o pavor exagerado de que a sociedade se transformasse em um matriarcado, em uma oposição ao patriarcado instituído. O efeito verbal que denuncia a comicidade está no duplo sentido “matriarcado dos diabos = matriarcado insuportável” e na correção da sentença, de forma irônica, pelo segundo homem, do substantivo “Matriarcado” d(as) diab(as)”, denotando um aspecto lascivo ao se referenciar as mulheres no modo em que o Homem 2 (Costinha) profere a correção e estereotipando as mulheres em relação a sua sexualidade.

Mas, o que chama mais atenção no quadro é a modelo negra nua utilizada como cenário para a piada. A mulher, que em fragmentos de segundos estava em primeiro plano, no rápido movimento do seu corpo, vai para o segundo plano, mas permanece em contra-

plongée, calada e sem demonstrar qualquer expressão (é como se ela estivesse posando para

uma foto) na parte superior do plano. Os homens ficam exprimidos na parte inferior, formando vetores de uma pirâmide para a imagem na qual na base se encontram os homens e no topo a mulher negra.

Ao aliar a composição imagética com o texto da piada, percebe-se que a mulher foi posta daquela maneira para evidenciar o “matriarcado” como o feminino-superior e os homens embaixo como o masculino-inferior. O que ocorre é que a escolha de colocar uma mulher nua nessa situação produz o exemplo mais claro de estereotipagem como fetiche, o qual Hall (2015) delineou ser comumente utilizado para corpos negros. Para o autor jamaicano, o fetiche fragmenta o corpo e indica um olhar específico (alguma parte desse corpo) e deslocado, em que o que é considerado tabu encontra uma forma de ser representado, dando permissão ao “voyeurismo não regulamentado”. No caso desse quadro, o fato de ter coberto/censurado os seios, denota-se a imposição moral em relação ao corpo feminino, mas também sua sexualização com o desejo de mostrar não mostrando (fetichismo), pois sabemos que a modelo está potencialmente nua em cena ou pelo menos a parte superior do seu corpo. Além disso, seus seios são substituídos no plano pelas duas cabeças masculinas, deslocando essa representação do seu corpo. Somos convidados a olhar para a direção dos seus seios, pois a cena ocorre naquele espaço, mas a moral cristã vigente sai ilesa ao nos depararmos com os atores nos livrando da ruptura que seios a mostra podem causar.

De alguma maneira, o corpo negro da mulher foi reduzido ao desejo de mostrar seus seios, mas, ao mirá-los, só enxergamos a encenação da piada. A estereotipagem não serviu necessariamente para a cena cômica, mas para marcar a diferença entre as expressões “dos diabos” e “das diabas”, de modo que as mulheres, em especial a mulher negra, fora acionada em sua lascívia.