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CAPÍTULO I – A NATURALIZAÇÃO DO FEMININO

1.7 A mulher no magistério

Além da instrução básica, as mulheres também almejavam sua profissionalização, o que ensejou o seu ingresso no magistério, defendido como um espaço feminino, conforme defende Oliveira na obra “O ensino público” (2003)5. O autor enfatiza que, ao final do século XIX, era entendimento corrente a necessidade de instrução primária para a mulher, justificada

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A obra “O ensino Público”, foi escrita no final do século XIX e editada pelo Senado, em 2003, dada com a qual é referida nesta pesquisa.

com a defesa de que a inteligência da criança “desabrocha entre graças, risos e sentimentos”, e que a mulher sabe entender essa graça, esses sentimentos. Só a mulher seria sensível, ou saberia com ela lidar, porque é semelhante a ela, criança. Tudo que a mulher e a criança fazem é regido pelo sentimento, ausente no homem:

O homem ordinariamente não possui a paciência e a bondade de que as crianças precisam achar em quem trata com elas. [...] a mulher - proclama-se geralmente - é o educador por excelência. Só a mulher saberia sorrir à infância. Ela só sabe empregar a carícia para despertar a alma, e a simpatia para dirigir-lhe os primeiros vôos. Ela só conhece os caracteres do alfabeto d'alma porque só ela estuda perto dos berços; quem não lhe viu o começo não pode adivinhar-lhe o fim. Portanto, doçura, sentimentos, bondade, tudo o menino encontra na mulher igual a si (OLIVEIRA, 2003, p. 206).

Com isso, Oliveira defende a afetividade, a docilidade, a bondade como elementos de uma “natureza feminina”, necessária ao exercício do magistério. Tais colocações remetem à da educadora nata e à relação mulher-mãe-professora. Para ele, o magistério feminino se constitui o mais poderoso auxiliar do evangelho, uma vez que é o sentimento e não a razão que encaminha os bons instintos e corrige e modifica os maus (OLIVEIRA, 2003, p. 207).

Exigia-se à mestra a honestidade, além dos desempenhos com o saber. Ao homem- mestre, eram também exigidas qualidades e virtudes. Oliveira pinta o mestre ideal:

Puro nos costumes, no dever exato Modesto, polido, cheio de bondade, Paciente, pio, firme no caráter, Zeloso, ativo e tão prudente Em punir como em louvar; Agente sem ambições, apóstolo Em quem a infância se modela,

Espelho em que os mundos se refletem, Mito e sacerdote, juiz e pai,

Eis o mestre, eis o professor. (OLIVEIRA, 2003, p. 204).

Como bem mostra o autor em poema próprio, ao longo do século XIX e início do século XX, o processo educativo se assentava na figura de um mestre exemplar, construído com virtudes heróicas e quase místicas, cuja missão ia além da instrução: formar homens para Deus e para a sociedade. O autor traz ainda como indispensável ao exercício da docência a formação feita na Escola Normal6 , tendo em vista o nível cultural do professor.

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No Brasil, a Escola Normal foi iniciada em 1835 em Niterói- RJ. Na Paraíba, foi instalada em 1885, no governo do Barão do Abiahy (MELLO, 1956).

Na Paraíba, a bandeira em prol da Escola Normal foi levantada no governo do presidente Silvino Elvídio Carneiro da Cunha (Barão do Abiahy), em 1874, quando reclamava, entre outras medidas de melhoramento da educação, a preparação do pessoal docente. “Para isso se torna necessário uma escola normal para cada um dos sexos onde sejam preparados os que se destinarem ao professorado. Essa medida é urgente, sob pena de continuar-se a inundar a província de mestres sem a necessária aptidão, com raras exceções” (CUNHA 1874 apud MELLO, 1959, p. 51).

Essa alusão à Escola Normal como necessária à eficiência e eficácia do ensino também foi feita pelo presidente Pais Barreto, em 1885, denunciando a pouca ou nenhuma qualificação dos professores:

Quanto a mim, nada se fará de útil em matéria de instrução pública, enquanto o professorado fôr exercido, como tem sido até aqui, com poucas e honrosas exceções, por pessôas inteiramente alheias ao magistério, sem as necessárias habilitações, e ás vezes sem aquela moralidade e rigidez de princípios, que deve possuir quem se encarrega da difícil e honrosa missão de educar a mocidade. (PAIS BARRETO 1885 apud MELLO, 1956, p.37)

Ainda sobre a formação docente, observa-se que há 180 anos atrás a qualificação do professor já era tema recorrente. A Lei de 15 de outubro de 1827, tantas vezes tratada aqui, propugnava o preparo dos professores, devendo estes especializar-se nas escolas das capitais, ainda que com seus próprios recursos e a curto prazo:

Art. V – Para as escolas do ensino mútuo [leia-se Lancaster] se aplicarão os edifícios, que houverem com suficiencia nos logares delas, arranjando-se com os utensílios necessários à custa da Fazenda Pública e os Professores que não tiverem a necessária instrução dêste ensino irão instrui-se em curto prazo, e a custa dos seus ordenados, nas escolas das capitais (IMPÉRIO DO BRASIL, LEI DE 15 DE OUTUBRO DE 1827 IN MELLO, 1956, p.26).

Traços desse método, referendado nos artigos IV e V, da lei 15 de outubro de 1827, é descrito por Ghiraldelli Junior:

[...] o ensino acontecia por ajuda mútua entre alunos mais adiantados e alunos menos adiantados. Os alunos mais adiantados ficavam sob o comando de alunos-monitores, e estes, por sua vez, eram chefiados por um inspetor de alunos (não necessariamente alguém com qualquer experiência com o magistério) que se mantinha em contato com o professor (GHIRALDELLI JUNIOR, 2006, p.29)

Oliveira (2006, p.18), ao tratar das escolas das primeiras letras, denuncia a desqualificação do mestre-escola, em virtude da improvisação então praticada e do recurso ao método Lancaster, ou seja, o ensino mútuo que, em sua visão, poderia, no contexto da época, ser eficaz à ampliação das primeiras instruções, mas era de qualidade polêmica.

A associação mulher-mãe-dona-de-casa foi reeditada em proposta de Gustavo Capanema – Ministro da Educação e Saúde, do governo Vargas, ao defender, com o decreto- lei de ‘um estatuto de família’, de 07 de setembro de 1939, a educação da mulher voltada à afeição para o casamento, para a educação dos filhos e para a domesticidade. Este decreto não foi promulgado na ocasião, mas, certamente serviu de base ao decreto de 1941 (decreto-lei de número 3.200), que dispunha sobre a organização e proteção da família. Ao regime de força da época (1937-1945), importava o disciplinamento da família, o controle da domesticidade da mulher. Os artigos 13 e 14 do decreto-lei de 41 são incisivos nessa direção:

Art.13: O estado educará ou fará educar a infância e a juventude para a família. Devem ser os homens educados de modo a que se tornem plenamente aptos para a responsabilidade de chefes de família. Às mulheres será dada uma educação que as tornem afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes da administração da casa.

Art.14: O estado adotará medidas que possibilitem a progressiva restrição da admissão de mulheres nos empregos públicos e privados. Não poderão as mulheres ser admitidas senão aos empregos próprios da natureza feminina, e dentro dos estritos limites da conveniência familiar (apud SCHWARTZMAN, 1984, p. 112).

Os princípios morais defendidos por Capanema, em nome da ordem familiar, indicam para a divisão sexual do trabalho, acentuando a diferença homem mulher, calcada na natureza. Segundo Schwartzman (1984, p.107), esse encaminhamento havia sido exposto claramente por Capanema, em conferência proferida em 02 de dezembro de 1937, por ocasião do centenário do Colégio Pedro II, quando este defende educação diferenciada para homens e mulheres, alegando a diferença biológica procedente de Deus.

O projeto Capanema abordava questões relativas às diferenças sociais atribuídas a cada sexo e à inferioridade imposta ao sexo feminino, bem como esforços para a valorização das mulheres no espaço do lar sob o jugo masculino.

Embora a educação brasileira atual não tenha princípios legais referenciados nos moldes dos artigos 13 e 14 do estatuto da família, ainda podemos perceber na dinâmica social idéias que distinguem algumas profissões como eminentemente femininas, um resquício do

entendimento de que para mulher correspondem apenas profissões que se associam à condição de mãe e dona de casa.

A aceitação dessa idéia, e as reservas tácitas sobre a ação de professores na educação de crianças pequenas, provavelmente, levaram ao predominante ingresso de mulheres no magistério, particularmente de crianças pequenas que hoje a Lei de Diretrizes da Educação Nacional denomina de educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. Segundo Almeida (1998, p. 23-24), “a aceitação do magistério, aureolado pelos atributos da missão, vocação e continuidade daquilo que era realizado no lar, fizeram que a profissão rapidamente se feminizasse”. Para Vidal e Carvalho (2001, p.212), essa feminização já acontecia nas primeiras décadas do século XX. As autoras comprovam que, em 1920, havia uma maioria de mulheres entre os docentes das séries iniciais.

Não há como negar a afirmação da profissionalização feminina pelo exercício do magistério, apesar da profissão docente para mulher ter surgido marcada pelo estereótipo da domesticidade e maternidade. O magistério era, pois, para as mulheres, uma possibilidade de acesso ao espaço público, no dizer de Almeida (1998, p. 22), era a conquista de “algo mais do que aquilo que lhes concedia o poder masculino”. Certamente, com o magistério, as mulheres caminhavam a passos miúdos para a ruptura com o seu retraimento do âmbito público.

Observamos, nesta exposição, vários nexos que constituíram o que se dizia ser a essencialidade, a natureza feminina, e, ao mesmo tempo, apreendemos indicadores rebeldes à essa essencialidade centrada em funções biológicas, parametrada pela maternidade, domesticidade e qualidades emocionais. A mulher que luta por sua afirmação no tecido social amplo, não apenas doméstico, que se afirma e até se encanta com suas qualidades emocionais e que, também, se realiza por suas capacidades cognitivas, executivas, políticas, enfim, essa mulher apontava uma essencialidade social, cultural e histórica em andamento na sociedade brasileira. Na mulher como em todos os sujeitos, o histórico e o natural se dão como síntese.