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PARTE I: Do ethos prévio à enunciação performática

2.3. O cordel e os estudos folclóricos

2.3.2. O folclore como campo de estudos

2.3.2.2. A nacionalização e a cultura popular

Segundo o Dicionário da Real Academia Espanhola, o termo “nação”, antes de 1884, era utilizado para designar os agregados de uma província, sinônimo de terra natal. Só após 1884 o termo passa a ser utilizado no seu sentido moderno, isto é, como corpo político que reconhece um governo central comum, independente e interessado na

unificação das diversas “nações” existentes no território, a fim de consolidar os

objetivos do Estado.

73 HROCH, Miroslav. From National Movement to the Fully-formed Nation: The Nation-building

Process in Europe. In: Balakrishnan, Gopal. New York and London: Mapping the Nation, Verso, 1996. Na Europa, a Fase A ocorreu principalmente no século XIX, ao passo que, no Brasil, ela chegou mais tarde, já no final do século XIX e começo do século XX, coincidindo com o começo da pesquisa folclórica no país, cujo precursor foi Sílvio Romero.

A noção de Estado-nação é, portanto, recente e “a equação nação-Estado-povo e, especialmente, povo soberano, vinculou a nação ao território (...)”74. Porém, delimitar um território não era suficiente para formar uma nação, um povo único e soberano. Para

progredir era preciso reunir, no sentido de absorver, as pequenas “nações”, as pequenas

comunidades dispersas no território delimitado em torno da criação do Estado-nação.

Além disso, a partir de 1880, importava considerar os sentimentos e atitudes das pessoas sobre as quais o novo apelo do nacionalismo político poderia ser construído. Era preciso transformar o que Hobsbawn75 chamou de “princípio de nacionalidade”, que mudou o

mapa da Europa entre 1830 e 1880 em “ideia nacional”, fenômeno político do

nacionalismo que se tornou crescente na era da política de massas e da democratização da Europa. Era necessário fazer os indivíduos quererem pertencer a esse Estado-nação,

uma vez que “O Estado não só [cria] a nação, mas precisa dela”76

. No entanto, a grande chaga desse tipo de nacionalismo, muito útil ao poder central, é o fato de que ele “toma culturas preexistentes e as transforma em nações, algumas vezes as inventa e frequentemente as oblitera”77.

Como “o nacionalismo requer muita crença naquilo que, obviamente, não é assim”78

, os Estados precisavam “inventar uma comunidade”. Essa seria uma condição para se preencher o vazio emocional causado pelo declínio ou desintegração, ou inexistência de redes de relações ou comunidades humanas reais. Para se inventar uma comunidade é preciso inventar também uma tradição, uma ligação com o passado, com um mito de origem no qual os indivíduos acreditem.

Ajustando o foco sobre a história do Brasil, citamos Menezes79 que, ao tentar

“compreender o papel das telenovelas enquanto mecanismo de diálogo entre ficção,

74 HOBSBAWM, Eric. J. Nações e Nacionalismos – desde 1780 – programa, mito e realidade. 5ª ed. São

Paulo: Paz e terra, 2008, p. 32. (1990 1ª ed.)

75 Idem, p. 56.

76 Tradução nossa de « non seulement l‟Etat [crée] la nation, mais il en [a] besoin » in : HOBSBAWM,

Eric J ; RANGER, Terence. L‟invention de la tradition. Paris : Éditions, Amsterdam, 2006, p. 196.

77 BLOK, Maurice. Nationalities, principale of. In : LALOR, J. (Org) Cyclopedia of political science, vol.

11, p. 939 apud HOBSBAWM, Eric. J. (1990/2008). Nações e Nacionalismos – desde 1780 – programa, mito e realidade. 5 ed. São Paulo: Paz e terra, 2008, p. 19.

78 Id, Ibid, p. 22.

79Tradução nossa de “« comprendre le rôle des telenovelas en tant que mécanisme de dialogue entre la fiction, l‟imaginaire et la réalité sociale du pays, pouvant même participer à la création de l‟identité

imaginário e realidade social do país, podendo mesmo participar da criação da identidade nacional do povo brasileiro”, faz uma releitura dos preceitos de Hobsbawm e nos apresenta um exemplo interessante a propósito de estratégias utilizadas para se inventar uma tradição:

Como propõe Hobsbawn, a continuidade étnica de uma população, de seus mitos e de suas memórias é uma teoria da construção encenada e ficcional da tradição. De fato, os mitos são histórias inventadas para aparecer uma comunidade a partir da história de seus ancestrais históricos. O caso brasileiro ilustra bem essa invenção de tradições. Desde o começo da história da república foi criado um calendário de festas consideradas importantes para a tradição brasileira, onde o sentimento de fraternidade universal deveria se aliar a este da fraternidade nacional80.

Em resumo: para fortalecer o Estado-nação, pensando nos movimentos nacionalistas modernos, seria preciso, então, inventar uma tradição à qual os indivíduos aderissem. Para gerar tal adesão, criar-se-ia, ainda, um espírito nacionalista que unisse os indivíduos em torno de uma unidade soberana, na qual todos pudessem conviver

“harmoniosamente”, favorecendo, dessa forma, a sustentação de uma comunidade

também imaginada e pronta para servir aos ideais do Estado-nação.

Nesse sentido, Hobsbawm defende que os critérios para se definir uma nação e mesmo os utilizados para criá-la são heterogêneos, sendo que cada Estado-nação vai utilizar um ou outro de forma mais ou menos intensa e dominante. No entanto, o conjunto desses critérios e a sua boa “utilização” estão presentes na ideia de Estado-nação, tais como, a língua, a religião, a raça, a cultura popular, etc.

Para a Itália (1861) e a Alemanha (1871), por exemplo, a base para a existência de uma nação era haver uma elite cultural estabelecida que possuísse um vernáculo

nationale et de l‟imaginaire sociopolitique au Brésil : une affaire des telenovelas (mémoire). Genève,

2008, p. 1.

80 Tradução nossa de: “Comme le propose Hobsbawm, la continuité ethnique d‟une population, de ses

mythes et de ses mémoires, est une théorie de la construction scénarisée et fictionnelle de la tradition. En

fait, les mythes ne sont qu‟une histoire inventée pour rassembler une communauté à partir de l‟histoire de

ses ancêtres héroïques. Le cas brésilien illustre bien cette invention des traditions. Dès le début de

l‟histoire de la République fut créé un calendrier des fêtes considérées importantes pour la tradition

brésilienne, où le sentiment de fraternité universelle devait s‟allier à celui de la fraternité nationale » In: MENEZES, 2008, p. 5.

administrativo e literário escrito. No entanto, só 2,5% da Itália falavam italiano quando houve a criação do Estado-nação, o que significa dizer que a língua foi um critério de invenção da comunidade pelo poder da elite, baseado no universo da escrita, e uma forma de assimilar povos tidos como menores pela exclusão.

Outras estratégias, como a criação de departamentos de história nacional, também foram muito eficazes para o processo de nacionalização dos territórios. O objetivo principal desses departamentos, ao que tudo indica, não era aperfeiçoar o conhecimento das

pessoas com a “verdade” sobre a história nacional, mas, antes disso, fazê-las se

comportarem como uma nação, isto é, como parte integrante dessa história, corroborando-a e repetindo-a, como uma tradição inventada81.

Para Hobsbawn, a história é o ingrediente principal para legitimar as ideologias

nacionalistas, uma vez que “o passado fornece um pano de fundo mais glorioso a um

presente que não tem muito que comemorar”82. Além disso, o nacionalismo, segundo o mesmo autor, a partir da criação dos departamentos de história, passou a ser concebido

como “o exemplo-padrão de uma cultura de identidade que se ancora no passado por meio de mitos disfarçados de história”83

e continua:

As nações são entidades historicamente novas fingindo terem existido durante muito tempo. É inevitável que a versão nacionalista de sua história consista de anacronismo, omissão, descontextualização e, em casos extremos, mentiras84.

Certamente, o processo de constituição de uma nação ou de um Estado-nação é muito mais complexo do que o que apresentamos neste capítulo. Contudo, nosso objetivo é apenas contextualizar e justificar a postura de alguns intelectuais e do Estado brasileiro diante do campo da cultura popular em alguns momentos da História do Brasil, a fim de entendermos melhor as políticas e as ações que foram tomadas face à cultura popular,

81 O termo tradição inventada ou “invenção da tradição” é aqui utilizado no sentido atribuído por

HOBSBAWM, Eric J. Inventing traditions (1983). In: HOBSBOWN, Eric J ; RANGER, Terence. The

invention of tradition. USA : Cambrigde, 2009, p. 1 - segundo o qual » « „Invented tradition‟ is taken to

mean a set of practices, normally governed by overtly or tacitly accepted rules and of a ritual or symbolic nature, which seek to inculcate certain values and norms of behaviour by repetition, which automatically implies continuity with the past ».

82 HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 19. 83 Idem, p. 285.

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no âmbito de sua conservação, da publicação de estudos, da criação de ambientes para a sua divulgação e armazenamento, bem como entendermos, especificamente, a cristalização de determinados estereótipos em torno do poeta e de sua produção discursiva.