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3 O CONTEXTO DE PRODUÇÃO DO DISCURSO POLÍTICO NA

3.1 A NATUREZA DA TRANSIÇÃO À DEMOCRACIA: O TRANSFORMISMO

Desde o início da exploração colonial da área onde hoje se encontra Cape Town, em 1652, pela Dutch East India Company, a História da África do Sul é atravessada por relações de segregação política, econômica e cultural baseadas nas ideologias racistas e de supremacia branca, sendo a racialização da ultra exploração da força de trabalho negra e não-branca, e sua estruturação via sistema colonial e de Estado32, elementos centrais a uma análise crítica da formação social; das

expressões da questão social e da constituição de um sistema de bem-estar social que reflete e, para alguns, reproduz a estratificação por classe e raça do país que, na contramão da história, instituiu um capitalismo racial33.

Este capitalismo racial que, baseado em ideologias religiosas, no racismo científico e cultural e no nacionalismo africâner, instituiu um sistema de racismo total fundamentado na exploração extrema da força de trabalho negra e na destituição dos direitos políticos, civis e sociais dos sul-africanos negros (ARENDT, 2012; DAVIE, 2015; FEINSTEIN, 2005; SEEKINGS & NATTRASS, 2005; SEEKINGS & MOORE, 2013; TERREBLANCHE, 2005; WIEVIORKA, 2007).

32 Uma característica da economia política da África do Sul foi o papel central desempenhado pelo Estado neste sistema de exploração da força de trabalho negra e opressão contra os que não possuem o padrão de branquitude fenotípica idealizado por uma série de regimes racistas. A mobilização, distribuição e controle da força de trabalho negra e o sistema de privilégios aos brancos foram materializados pelo Estado. À maioria sul-africana foram negados todos os direitos civis e políticos (DAVIE, 2015; TERREBLANCHE, 2005). Aos sul-africanos negros não era permitido formar partidos políticos ou sindicatos, e foi apenas em 1994 que os sul-africanos negros votaram pela primeira vez em uma eleição geral (HEAD, 2010). Mesmo que sob discursos e ideologias racistas, o Estado sul- africano, desde os primórdios da sua formação, esteve comprometido com a valorização do capital, sendo a organização política da classe trabalhadora branca e dos nacionalistas africâneres a particularidade política que compatibilizaria relações capitalistas modernas com extrema segregação racial no trabalho e na vida política. 33 O caso sul-africano, mesmo com a singularidade extrema da ideologia totalitária racista, expressa a relação de

unidade entre Estado, a forma política burguesa, e a apropriação privada da riqueza socialmente produzida que fundamenta a sociabilidade capitalista (HART, 2013).

Como aponta Charles Feinstein (2005), a História Econômica da África do Sul é profundamente influenciada pelo legado da interação entre força de trabalho e recursos minerais. Nesse sentido, mais do que a existência de expressivos recursos minerais e da alardeada “revolução mineral”, que viria ocorrer mais de dois séculos depois da chegada dos primeiros colonos europeus, a presença de aproximadamente 1,5 milhões de africanos negros com domínio de instrumentos de produção e recursos como terra e rebanhos reavivou a cobiça dos primeiros colonos holandeses, os bôeres, ainda na segunda metade dos anos 1600.

Os holandeses se tornaram bôeres quando assumiram para si o “destino” de serem os senhores das terras, dos rebanhos e da força de trabalho dos povos africanos, categorizados em “raças negras” a partir de narrativas religiosas, do racismo científico e do cultural (ARENDT, 2012; FEINSTEIN, 2005; TERREBLANCHE, 2005). Brutalizados pela violência que a ideologia de supremacia racial europeia trazia consigo, os negros, os indianos e os coloured, mas especialmente os primeiros, foram destituídos dos direitos políticos, civis e sociais que se apresentaram, ao longo da história, como o maior instrumento de combate à segregação racial (WIEVIORKA, 2007), mesmo que reconhecendo os hiatos entre igualdade formal e igualdade real.

Um século depois da invasão holandesa, o número de sul-africanos negros era de aproximadamente 4 milhões. A presença desse expressivo número de autóctones era um fato único no arquipélago colonial europeu britânico, como os Estados Unidos da América, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, onde a população nativa inicial era menor e ainda declinou com o passar do tempo da ocupação europeia (FEINSTEIN, 2005).

Enquanto os sul-africanos negros foram sendo destituídos de suas terras e gado ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX para os colonos ingleses e africâneres, por meio de medidas legislativas e da violência das migrações dos afrikaners para o interior do país, realizada para fugir da dominação política inglesa nas antigas províncias do Cabo e de Natal e fundar nações sob o domínio bôer34, todo o sistema e modo de vida e de produção das nações autóctones eram

destruídos pelo genocídio, pela escravização ou, simplesmente, pela destituição da identidade nativa dos negros e negras. Estes homens e mulheres, sobretudo nas províncias dominadas pela comunidade africâner, eram tratados como propriedade das famílias brancas, enquanto eram tratados como servos nas colônias sob domínio inglês. Nos dois cenários, os negros representavam a força de trabalho, enquanto os brancos representavam os senhores. O uso sistemático da violência, da espoliação material e simbólica e a destituição dos negros sul-africanos de 93% das terras do seu país, no começo do século XX, foram determinantes para que essa população, que equivalia a 60% do total, só tivesse como opção a venda da sua força de trabalho nos grandes centros urbanos, onde o trabalho era menos cruel e melhor remunerado do que nas fazendas. A existência de uma grande demanda por força de trabalho nas minas de ouro e diamantes fez com que eles tivessem que concorrer, desde 1867, início da revolução mineral, com os trabalhadores pobres afrikaners que não conseguiam mais terras livres no interior do país, já completamente dominadas pelo latinfúndio africâner. Em busca de oportunidades nas cidades e nas zonas auríferas e diamantíferas, os brancos pobres da comunidade africâner não aceitavam ter que competir com os negros no mercado de trabalho e muitos não aceitavam nem mesmo o fato de terem que dividir o espaço de trabalho com trabalhadores que não fosse de origem europeia (FEINSTEIN, 2005; POSEL, 2012; TERREBLANCHE, 2005).

A força do nacionalismo africâner se tornou uma força política quando eles assumiram um discurso político reacionário, a partir da ideia de constituírem um povo branco na África do Sul, sem nenhuma ligação com uma nação ou Estado europeu (ARENDT, 2012; DUBOW, 2014; FEISTEIN, 2005). Para se organizar enquanto sujeito coletivo, a classe trabalhadora africâner, que sempre foi a maior comunidade branca do país, criou associações e partidos políticos na defesa da causa africâner contra a maioria negra da população e contra o poder político e econômico da comunidade britânica, criando em 1915, cinco anos depois da independência Sul-africana, o

National Party, o Partido Nacional, cujas ideologias reacionárias, racistas e nacionalistas

representavam as matrizes discursivas que orientariam o Estado sul-africano e todas as esferas da vida social por 46 anos. Os efeitos deletérios da crise capitalista de 1929 sobre a classe trabalhadora africâner fizeram o nacionalismo se exarcebar, sobretudo, porque os negros, uma mão de obra bem

mais barata e tão capacitada quanto a maioria dos brancos, estava progressivamente assumindo postos de trabalho e se estabelecendo nas cidades. Este era o cenário perfeito para atacar o liberalismo amplamente defendido pela elite da comunidade britânica e as estruturas de coalizão política entre britânicos e africâneres nas eleições nacionais. Então, nas eleições gerais de 1948, o Partido Nacional se desfez da coalizão com o Labour Party, o Partido Trabalhista, iniciada em 1924, e se lançou como um partido da causa africâner e de fortalecimento da proteção aos trabalhadores brancos, contra o liberalismo e contra a concorrência dos negros no mercado de trabalho. Estas propostas, obviamente, tiveram grande aceitação entre a classe trabalhadora branca, levando o Partido Nacional ao poder, tornando o seu discurso nacionalista, segregador e racista o discurso do Estado. Essa considerável transformação no cenário político sul-africano teve implicações severas sobre a classe trabalhadora negra sul-africana que, por quase meio século, viria a ser a mais intensamente explorada e destituída de todo o mundo.

Em 1948, ano em que o racismo virou regime de Estado na África do Sul, por meio da eleição que levou o Partido Nacional ao governo do país, o Conselho Mundial das Igrejas, organização ecumênica das Igrejas Protestantes, declarou que, por uma questão de justiça social, os países capitalistas industrializados deveriam beneficiar e contribuir para o desenvolvimento das forças produtivas e meios de produção das sociedades africanas e asiáticas. O Documento também afirmava que o espólio das riquezas e a destituição dos povos locais deveria parar.

A essa Declaração, uma das mais importantes vozes do neoliberalismo do século XX, o economista e filósofo ucraniano Ludwig Von Mises respondeu:

A verdade é que a acumulação de capital e seu investimento em máquinas, a fonte da riqueza comparativamente maior dos povos ocidentais, deve-se exclusivamente ao capitalismo laissez-faire, que o mesmo documento das Igrejas veementemente deturpa e rejeita no campo moral. Não é culpa dos capitalistas se os asiáticos e os africanos não adotaram as ideologias e políticas que teriam tornado possível a evolução do capitalismo nativo. Também não é culpa dos capitalistas se as políticas dessas nações impediram as tentativas dos investidores estrangeiros no sentido de dar-lhes “os benefícios de uma maior produção industrial”. Ninguém nega que o que torna centenas de milhões de pessoas na Ásia e na África necessitadas é o fato de elas se apegarem a métodos primitivos de produção e de perderem as vantagens que o emprego de melhores ferramentas e de tecnologia atualizada lhes poderia conferir. Existe apenas um caminho para aliviar sua miséria – ou seja, adoção total do capitalismo laissez-faire. Eles necessitam é da empresa privada, da acumulação do novo capital, de capitalistas e empresários. É absurdo culpar o

capitalismo e as nações ocidentais capitalistas pelas condições que os povos atrasados criaram para si próprios. A solução indicada não é a “justiça”, mas a substituição de políticas doentias por políticas sadias, ou seja, pelo laissez-faire (VON MISES, 2013, p. 118-119).

Parece que Ludwig von Mises escolheu ignorar a história das relações entre o ocidente capitalista e a África. Relação marcada pelo tráfico negreiro, pelo imperialismo, pelo racismo e pela destruição de direitos e serviços ocasionados pelas políticas de ajuste neoliberal (CHINWEIZU, 2011; SATGAR, 2013; TERREBLANCHE, 2005, 2012). Esse conjunto contínuo de relações de exploração também foi ignorado (in)voluntariamente pelas ideologias produzidas ou adotadas pelas elites políticas e econômicas dos países africanos nas décadas seguintes à libertação nacional e desenvolvimento de experiências pan-africanistas, socialistas e de inspiração marxista que se seguiram à década de 1960 (CHANAIWA, 2011).

No clássico do pensamento pós-colonial, Os Condenados da Terra, Frantz Fanon (1968) revela que, além da permanência de políticas econômicas que subalternizavam as economias africanas e asiáticas, após a onda de independências iniciada na década de 1960, e que romperam com a dimensão política do colonialismo, as políticas de austeridade social acompanharam os processos de emancipações políticas nacionais. A incipiente rede de serviços básicos, profundamente concentrada nos enclaves coloniais urbanos, as cidades, foi rapidamente desmontada pelos partidos de libertação nacional na maioria das nações recém-libertas do colonialismo europeu.

Sendo assim, a África não precisou esperar pela hegemonia neoliberal para vivenciar a retirada do Estado das responsabilidades de reprodução social (serviços, políticas sociais e sistemas de proteção). As elites locais, organicamente vinculadas a projetos societários alheios às necessidades sociais da maioria das sociedades e nações africanas, sobretudo das que viviam nas áreas rurais, rapidamente livraram o Estado e o capital dos encargos sociais (DAVIE, 2015; DAVIS, 2006; FANON, 1968).

Nem mesmo as expressões de um “liberalismo embutido”, que experimentaram países da América Latina, a partir da criação de sistemas de bem-estar mais ou menos extensos, foi uma

realidade na África do século XX. O desigual desenvolvimento geográfico do capital colocou o continente em um lugar de marginalidade no tocante à proteção social do trabalho e da cidadania, mais do que em qualquer outra região (DAVIE, 2015; DAVIS, 2006; HARVEY, 2007, 2008; GOUGH et al, 2004). O espólio das antigas colônias africanas assumiu um papel central no processo de acumulação primitiva capitalista (FANON, 1968), função que parece ter sido preservada na atualidade, em tempos de acumulação por espoliação (HARVEY, 2005), mas com “novos atores do sul”. Sob uma superfície discursiva de governos neodesenvolvimentistas e da chamada “cooperação sul-sul”, novos atores vêm subalternizando o continente (CHINWEIZU, 2011; TERREBLANCHE, 2012).

No atual contexto de crise das antigas potências capitalistas, o espólio de commodities, riquezas minerais, patrimônio ecológico único, e abundante, barata e desprotegida força de trabalho africana são compartilhados por multinacionais de países neo-desenvolvimentistas como Índia, China e Brasil (HARVEY, 2011; SATGAR, 2013; TERREBLANCHE, 2012). Nesse sentido, Chinweizu (2011) aponta para um verdadeiro neocolonialismo chinês no continente. A recente publicação da obra China’s Second Continent: how a million migrants are building a new empire

in Africa (2014), de autoria de Howard French, evidencia o destino e a natureza predatória e

pauperizadora dos projetos de acumulação chinesa na África, uma realidade facilmente encoberta pelo discurso da harmonia da cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento econômico.

O Brasil, representado pelas suas multinacionais, também é apontado por Sampie Terreblanche (2012) e French (2014) como um dos novos agentes de acumulação de capital e exploração da barata e desprotegida força de trabalho africana, majoritariamente negra, nas antigas colônias portuguesas do continente.

Os autores também apontam que, a partir dos anos 2000, os países emergentes, integrantes do bloco dos BRICS35, e as potências capitalistas ocidentais inauguraram uma nova fase de

acumulação de capital no continente, em que o capitalismo de Estado da China, o capitalismo financeiro neoliberal norte-americano e europeu (em suas diferentes nuances, mais ou menos

liberais), e o capitalismo de Estados Neodesenvolvimentistas como China, Índia e África do Sul vêm concorrendo por nichos de acumulação de capital, seja por meio da exploração direta da força de trabalho e da natureza, seja pela acumulação por espoliação de direitos. Mas a História recente do poder do capital sobre os sistemas econômicos e políticos do continente africano remonta a períodos anteriores aos anos 2000.

Muito do que Von Mises e os discursos racistas, conservadores, reacionários e neoliberais apresentaram como ideologias inquestionáveis durante o século XX, foi implantado e/ou está em desenvolvimento nas frágeis democracias e ditaduras africanas há mais de 30 anos. O laissez-faire das reformas neoliberais, os programas de austeridade e ajuste estrutural, iniciados na década de 1980, garantiram e ainda garantem o lugar do livre mercado no continente. Além disso, a modernização dos meios de produção não foi acompanhada de uma equiparação aos países do Norte, e nem poderia, dada a natureza profundamente desigual do intercâmbio material entre os centros do capital e a África (BOND, 2014; CHINWEIZU, 2011; HART, 2013; SATGAR, 2013). Frustrando as expectativas de Von Mises e demais neoliberais, a combinação entre livre mercado, burguesia (local e/ou estrangeira) e privatizações resultou em um continente ainda mais pobre36.

Tão pauperizado que, em 1984, a África era o único continente incapaz de alimentar seus habitantes.

O “problema africano” não residia na produção, mas na intensidade da apropriação privada da riqueza socialmente produzida. Aos burgueses e elites políticas pós-coloniais dos mais de 40 países que implantaram os Programas de Ajuste Estruturais (PAEs) não interessava alimentar o excedente humano de classes e grupos sociais “traídos pelo Estado” (DAVIS, 2006). As reformas neoliberais, em sua pluralidade de formas e conteúdo, garantiram a manutenção ou a restauração do poder das classes e grupos dominantes, possibilitando o surgimento de uma burguesia nacional

36 O caso africano evidencia a solidez da crítica de Gosta Esping-Andersen (1995) à racionalidade industrialista hegemônica durante o século XX na análise dos sistemas de bem-estar. Para esta corrente, existiria uma relação linear/causal entre industrialização, modernização dos meios de produção e formulação de serviços e políticas sociais. Quanto mais intensa a industrialização, mais extenso seria o welfare state. No sentido contrário, (HARVEY, 2007, 2008, 2011; HIRSCH, 2010), a história recente nos mostra que é possível acumular capital intensificando a espoliação do Estado de Bem-Estar Social.

onde ela não existia (HARVEY, 2008, 2011; TERREBLANCHE, 2012), geralmente relacionada diretamente aos partidos de libertação nacional (MASHELE, 2011). Mesmo diante das emancipações políticas em relação aos antigos centros metropolitanos, a subalternidade econômica ao capital das grandes multinacionais evidenciou que o imperialismo econômico funciona independente da bandeira cravada no território (CHINWEIZU, 2011; DAVIS, 2006; HARVEY, 2011).

Nem mesmo a África do Sul, o país mais rico do continente durante todo o século XX, e, atualmente, o terceiro mais rico, ficando atrás da Nigéria e do Egito, uma das nações mais industrializadas e modernas do mundo, historicamente comprometida com a preservação da hegemonia do capital e na contenção de projetos comunistas, socialistas e pan-africanistas na África Austral, durante todo o período da guerra fria, saiu ilesa à crise capitalista de 1973 (TERREBLANCHE, 2005; NATTRASS, 2005).

Além da crise sistêmica do capital, que pôs fim a décadas de crescimento econômico da economia sul-africana, o esgotamento da ajuda financeira americana, britânica e da Alemanha Ocidental, para a manutenção do “cordão sanitário” anticomunista na África Austral, e as sanções internacionais contra o apartheid e as empresas nacionais, limitavam a acumulação de capital sob o regime segregador (DAVIE, 2015; HART, 2013; SATGAR, 2013; TERREBLANCHE, 2012).

Ao mesmo tempo, o contexto nacional, a partir dos anos 1970, era de revoltas civis e dos grupos armados (guerrilhas) pelo fim do regime (PEREIRA, 2012; TERREBLANCHE, 2005). Estes levantes tornaram o país ingovernável e a instabilidade política representava um risco à acumulação de capital no país (BOND, 2014; CHINWEIZU, 2011; HART, 2013; TERREBLANCHE, 2005, 2012).

No fim dos anos 1980, a ação coletiva (armada ou pacífica) dos africanos negros e demais grupos progressistas também criou um contexto favorável ao African National Congress, o Congresso Nacional Africano,37 (ANC), ao South African Communist Party, (SACP), o Partido

37 O ANC foi criado, enquanto movimento social, em 1912 e tornou-se partido político oficialmente registrado apenas em 1994, para concorrer na eleição presidencial realizada naquele ano. Atualmente, é o mais poderoso partido político sul-africano. Ele iniciou suas atividades na defesa dos direitos políticos e civis da maioria negra do

Comunista Sul-Africano, e à Central Sindical Sul-Africana, o Congress of South African Trade

Unions (COSATU), todos submetidos à clandestinidade pelo regime autocrático racista, para

proporem profundas transformações na estrutura política, social e econômica do país38, mesmo que

dentro dos limites do Estado capitalista39.

Com o processual desmantelamento do regime do apartheid, no fim da década de 1980, e a conquista da presidência por Nelson Mandela, após as eleições livres de 1994, em uma transição conduzida pelo poder corporativo das multinacionais e pelo poderoso “complexo mineral- energético” do país (BOND, 2014; DAVIE, 2015; FEINSTEIN, 2005; HART, 2013; TERREBLANCHE, 2005, 2012), os negros sul-africanos, que Chinweizu (2011) considera o grupo mais explorado e destituído de direitos do Século XX, testemunharam o transformismo das lideranças e, consequentemente, do discurso político do ANC. O “partido da libertação” passou a negar muitos dos elementos apresentados em sua “Carta da Liberdade”, de 26 de junho de 1955: a socialização do poder político e, especialmente, do poder econômico passou a ocupar um “não lugar” no discurso político do ANC e, consequentemente, nas políticas sociais e econômicas do Estado Pós-apartheid.

país, logo após a instauração da União Sul Africana, em 1910, e é o mais antigo partido de libertação nacional do continente africano (TERREBLANCHE, 2005). Embora seja formado, majoritariamente, por negros, o ANC tradicionalmente, não fundamentou suas ações nos pensamentos de negritude. O “partido da libertação” desenvolveu análises marxistas da formação social sul-africana dos três séculos de colonialismo e capitalismo racial, baseados na exploração da força de trabalho negra, e em um ativismo orientado ao socialismo e ao pan- africanismo (JARA, 2013; CHINWEIZU, 2011). Uma expressão clara da concepção de mundo do ANC, ao menos enquanto foi um movimento social de libertação, é o seu documento mais conhecido, a Freedom Charter, “A Carta da Liberdade”. Nela está manifesta a orientação socialista e não-racializadora do projeto de emancipação política da África do Sul. A análise ideológica e política desse documento deixa claro que a utopia do ANC era a tomada do poder do Estado e não a superação do mesmo.

38 As décadas de 1970 e 1980 foram o momento em que um importante movimento da classe trabalhadora sul- africana se organizou contra o regime de exploração e adquiriu uma direção política enquanto “classe para si” (DAVIE, 2015; HART, 2013; HARVEY, 2008, 2011).

39 Segundo Terry Eagleton (2012), até um regime autocrático, como foi o do apartheid, precisa contar com um mínimo de consentimento pacífico por parte dos seus governados. Para o autor, não se pode encarcerar todo