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A natureza humana e o não cumprimento da teoria ideal em Estlund

PARTE II – A TEORIA IDEAL POSTA À PROVA

CAPÍTULO 3 – O PROBLEMA DO INCUMPRIMENTO DA TEORIA

3.3. A natureza humana e o não cumprimento da teoria ideal em Estlund

Estlund é um autor cujas posições o distanciam desta visão crítica da teoria ideal, reforçando precisamente a ideia de que a teoria ideal não perde o seu valor pelo facto de não ser implementada.

A questão central à qual Estlund procura responder é a de saber se a natureza humana poderá constituir um constrangimento a uma teoria ideal da justiça. Uma teoria falhará na prática se os humanos aos quais se aplica não se adequarão a ela. Esta é a crítica recorrente à teoria ideal – ela não é realista porque não é cumprível.

As razões para os membros de uma sociedade não cumprirem os requisitos da teoria podem ser diversas. Estlund refere, por exemplo, a estrutura motivacional e o egoísmo (Estlund, 2011: 209). As pessoas não cumprem a teoria, por exemplo, porque não são altruístas e porque não estão motivadas para tal. Estlund discorda de que o simples facto

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de as pessoas não agirem de acordo com a teoria a porá em causa, uma vez que por não o fazerem não significa que não o pudessem fazer.4 Deste modo, só será um

constrangimento à teoria aquilo que efetivamente os humanos não podem fazer.

Todavia, poderá ser problemático determinar o que as pessoas não fazem embora pudessem fazer, e o que não podem efetivamente fazer. Estlund dá-nos o exemplo de Platão, que na República dita que todos os filhos deverão ser retirados da guarda dos pais biológicos para serem criados pela comunidade (ibid.: 211-212). Deste modo, todos os filhos seriam da comunidade, por assim dizer. Será esta prescrição - sem dúvida exigente e dificilmente aceite de bom grado, pelo menos nas sociedades desenvolvidas ocidentais - um exemplo do que os humanos não podem fazer em qualquer circunstância? Note-se que bastaria registar-se um exemplo de uma sociedade no mundo que cumprisse esta prática para se concluir que esta exigência da teoria não corresponde a algo que efetivamente não se pode fazer.

Estlund argumenta que, mesmo que consideremos que há algo intrínseco na natureza humana que impossibilite as pessoas de terem a motivação para fazer coisas como criar os filhos de toda a gente imparcialmente, como se fossem seus filhos, o facto de não “conseguirem querer” não implica que não o possam fazer, uma vez que só se poderá dizer que alguém não possa fazer algo se, mesmo que o tentasse fazer sem desistir, não fosse bem-sucedido. Assim sendo, qualquer problema de motivação não é suficiente para bloquear a teoria ideal. Como tal, mesmo o pressuposto de Platão, que obrigava que todos os filhos fossem tirados da guarda dos pais e fossem criados pela comunidade é possível de ser satisfeito (ibid.: 212-213).

Com efeito, ao longo da história humana houve diversos eventos que sucederam em alguns países e não noutros, por exemplo. Dependendo da cultura onde se inserem as pessoas, poderão conseguir ou não fazer determinadas coisas. Por exemplo, em sociedades não laicas, e nas quais a religião tem um papel central na sociedade, imaginemos que esta dita que as mulheres não podem ter os mesmos direitos do que os homens (por exemplo, não podem conduzir). Será apenas uma questão de egoísmo ou de falta de motivação o não cumprimento de uma teoria ideal que prescreva que os homens e as mulheres devem ter os mesmos direitos? Sem dúvida que num sentido mais lato da

4A este propósito, Estlund distingue a expressão won’t do da expressão can’t do. A primeira corresponde ao que as pessoas não

fazem, embora pudessem fazer, e a segunda corresponde efetivamente ao que as pessoas não podem fazer de todo (Estlund, 2011: 212).

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expressão eles podem comportar-se de modo a respeitarem a igualdade de direitos. A prova disso é que as nossas sociedades liberais do ocidente o fazem, a despeito de poderem subsistir ainda algumas diferenças de tratamento de homens e mulheres. Porém, em função dos condicionalismos culturais, pode ser muito difícil para pessoas de uma sociedade cumprir requisitos da teoria, e pode ser mais fácil o cumprimento dos mesmos noutra, como se denota do exemplo dado. No fundo, é muito difícil determinar o que é a natureza humana, dado que, precisamente, como nos diz Estlund, o facto de numa dada sociedade as pessoas não cumprirem a teoria ideal, não significa que não o possam fazer.

Esta observação parece suportar a ideia segundo a qual a teoria ideal é sempre viável, visto que à exceção de exigências claramente impossíveis de satisfazer, como por exemplo, a exigência de que os seres humanos desafiem a lei da gravidade, voando, pode- se alegar que mesmo o mais improvável de ser feito não é de todo impossível. Como tal, se não é impossível, se não for cumprido não será culpa da teoria, mas dos indivíduos que não se comportam de acordo com as exigências da teoria.

Este argumento utilizado por Estlund no sentido de mostrar que uma teoria que prescreva algo improvável de ser concretizado não é, todavia, impossível é aquilo a que chama de teoria aspiracional sem esperança.5 Ele reconhece que há prescrições teóricas que dificilmente poderão ser cumpridas, mas há desde logo um problema em recusar uma teoria porque dificilmente será concretizada: pode-se cair no risco do realismo complacente, que consistirá em nada se mudar por demasiado apego ao que existe (Estlund, 2014: 115). Por outras palavras, o máximo realismo será um imobilismo. Toda a mudança pressupõe uma alteração na realidade vigente. Poder-se-ia, no entanto, achar mais sensato optar por uma teoria mais provável de ser concretizada, ainda que não complacente.

Mas o argumento central de Estlund é o de que uma teoria normativa sem esperança poderá ser a teoria correta. No fundo, os teóricos políticos que trabalham no campo da teoria ideal não se devem envergonhar de prescrever normas que dificilmente serão cumpridas, porque eles deverão trabalhar sobre como é que a sociedade deve estar organizada politicamente, e não sobre como está efetivamente.

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Mesmo que aceitemos como bons os argumentos de Estlund, subsiste a questão de saber se a teoria ideal pode ajudar ou não a teoria ideal; se a teoria ideal poderá ter, no fundo, alguma utilidade prática.

3.4. Más idealizações, falsos pressupostos e o papel limitado da teoria ideal