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SABERES DOCENTES, GESTÃO DA MATÉRIA E DA SALA DE AULA

2.2. A natureza plural e não hierárquica do saber docente

Objeto de muitas pesquisas, o tema saber docente tem-se revelado extremamente complexo na modernidade quanto à definição de sua natureza e quanto à sua relação não hierárquica entre a teoria e a prática docentes: questiona-se se está unicamente relacionado aos estudos incansavelmente teorizados pelos pesquisadores de áreas do conhecimento ou unicamente associado à prática concreta dessas teorias. Outro problema relacionado à imprecisão e à equivocidade caracterizadoras da noção de saber docente refere-se ao que se

24 entende por saber: se é algo produzido e desenvolvido pelos profissionais do ensino oriundo de sua prática, ou é algo interiorizado. Essa complexidade de definição e classificação do saber aumenta quando se estende à docência: se o saber pode ou não ser produzido na sala de aula.

Com relação à noção, tem-se considerado a hibridização do sujeito, que permeia por entre o sujeito científico e o profissional se profissionalizando e profissionalizando a sua prática. Segundo essa perspectiva, fatores considerados externos e não apenas cognitivos são considerados saber: os hábitos, as emoções, as regras, as normas. Para os defensores dessa linha de reflexão, dentre os quais destacamos Tardif (2002), a escolha mais acertada e consciente pelo docente, no que concerne à noção do saber, passa a ser aquela que prioriza o caráter mais relativo, mais revisável, mais equilibrado.

De acordo com Tardif (op. cit.), essa compreensão relativa de sujeitos docentes representa o entendimento sobre o saber como um caminho de relativismo em torno de três concepções:

1) o saber cognitivo, subjetivo e racional, concepção segundo a qual a subjetividade é o lugar do saber. É por meio dela que o saber assume duas formas fundamentais: a) a forma de intuição intelectual, na qual uma verdade é captada com imediatez, por exemplo, verdades matemáticas; e b) a forma de indução intelectual, aquela na qual uma verdade não é captada com imediatez. No entanto, ambas estão intimamente ligadas à subjetividade e às correntes da área cognitiva;

2) o saber concebido enquanto juízo, discurso, asserção, juízo como o lugar do saber, ao afirmar com razão algo a respeito de algo. O juízo pra este saber rotula, cria regras, e está ligado à dimensão proposicional do saber, ou seja, o juízo é considerado verdadeiro se, e somente se, alguma forma lógica corresponder a uma forma analógica diferentemente da primeira concepção: o saber está no discurso, e não apenas na subjetividade;

3) o saber argumentativo, no qual a argumentação é o lugar do saber. Saber algo não é somente emitir juízo de valor a respeito desse algo, mas também da explicação dos motivos que

25 levam esse juízo ser verdadeiro. Esse saber implica o outro, ou seja, a dimensão social, ligando- se às correntes interacional e sociológicas, uma vez que o saber é construído e reconstruído coletivamente.

A possibilidade de agregar saberes de maneira relativa aflora outra forte característica do saber em equilíbrio: a dinamicidade e capacidade de reconstrução constantes do saber. Nessa perspectiva, o saber não é estático, mas está em constante movimento, discussão, revisão, agregação, e depende, sobretudo, do(s) outro(s) para acontecer concretamente em contexto da sala de aula.

Seguindo essa noção de saber revisável, o saber docente, visto unicamente como um repertório de conhecimentos, passa a fazer parte do ensino como um conjunto de enunciados que expressam algo a respeito da prática docente na sala de aula. Essa reconfiguração está associada à noção de reflexão constante diante do contexto de sala de aula, a qual surge a partir de um olhar de pesquisador.

Com relação a não hierarquia do saber docente, Tardif (2002) ao invés de tentar propor critérios internos que permitam discriminar e dividir os saberes em categorias experienciais ligados à prática, ou cognitivas, relacionados à teoria, elenca cinco saberes, tentando dar conta do pluralismo do saber profissional:

1) Saberes pessoais dos professores: são os saberes adquiridos da família, do ambiente de vida, da educação do professor, são os de formação de indivíduo a partir do contato com as primeiras instituições presentes na vida do docente;

2) Saberes provenientes da formação escolar anterior: são os saberes adquiridos durante toda a vida escolar do docente. Envolvem desde a educação básica, e vão até os estudos acadêmicos e são os responsáveis pela formação pré-profissional do docente;

26 envolvem toda a formação profissional do docente – cursos, estágios, especializações, etc, sendo responsáveis pela contínua formação profissional do docente;

4) Saberes provenientes dos programas e livros didáticos e usados no trabalho: saberes adquiridos a partir da utilização dos suportes pelos docentes – os livros didáticos, fichas, cadernos de exercícios;

5) Saberes provenientes de sua própria experiência na profissão, na sala de aula e na escola: são os saberes adquiridos a partir da própria prática do ofício da sala de aula e da escola, chamada por Tardif de “experiência dos pares”.

Esses saberes são propostos por Tardif, a partir de uma perspectiva não hierárquica, de igualdade. O docente que faz uso de seus conhecimentos pessoais, do saber personalizado, ou cognitivo, o faz a partir do trabalho com programas de livros didáticos, de saberes relacionados ao conteúdo ensinado, bem como dos saberes provenientes de sua experiência. Ou seja, não há como identificar imediatamente as origens dos saberes docentes, uma vez que vários deles são mobilizados nas interações diárias de sala.

Ainda na discussão sobre a hierarquia entre o saber teórico e o prático, Tardif, inspirado em Perrenoud (1996), defende que a relação entre os saberes e o trabalho docente não pode ser pensada como se os saberes teóricos antecedessem o saber da prática, pelo fato de os primeiros saberes não serem formados a partir de codificações com soluções prontas para eventuais problemas da ação.

Para Tardif, a pesquisa possibilita ao professor o convívio equilibrado com os vários tipos de saber, inclusive o cognitivo e o experiencial ao mesmo tempo, saberes complementares e imprescindíveis na aplicação de um saber teórico sobre o ensino em sala e na formação de saberes teóricos oriundos da própria sala de aula. No momento em que os professores aprendem a refletir sobre suas próprias práticas, também com flexibilidade o saber se configura e, junto a

27 ele, os enunciados, os comportamentos ou subtipos de saberes observados pelo professor.

Nesse sentido, o professor entra no processo reflexivo de ensino, para também produzir processualmente o saber, de formas, tempos e em momentos bem distintos para cada um. Daí a necessidade da interação com o(s) outro(s) profissionais para que esse processo reflexivo ocorra mais facilmente, e cabe ao professor proporcionar situações que possibilitem ao aluno o contato e o conhecimento com o saber ou os saberes. Ao saber do professor compete a mescla e a agregação dos vários tipos de saberes e suas ações pedagógicas já apresentados por estudiosos e os que surgirem em momentos específicos, individuais ou coletivos, de ensino.

Além disso, o professor deve buscar, como defende Tardif (op. cit), a consciência de atitudes, competências, regras incorporadas ao seu trabalho, muitas vezes por eles não conscientes, para que assim possam ampliar seu saber-fazer; atos do inconsciente ou cognitivos estariam relacionadas a aspectos sociais, a práticas profissionais, caracterizando-se, assim, num posicionamento que aborda uma consciência prática profissional e reflexiva e auto-reflexiva sobre o fazer pedagógico.

Os caminhos percorridos pelos posicionamentos defendidos por Tardif mostram não haver, por parte deste autor, tentativa de criar mais uma técnica ou “receita” do saber-fazer docente, mas de refletir, de desconstruir a noção de saber enquanto algo estático, inerente às capacidades cognitivas do ser e de mostrar uma possibilidade de noção reconfigurada dos vários saberes docentes existentes no contexto da sala de aula pelo professor.