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A necessidade da especificação para o nome modinha

1. OS NOMES MODINHA NOS ESTUDOS

1.2. A necessidade da especificação para o nome modinha

Após a reflexão sobre a natureza e a geração do nome modinha, quero verificar como a especificação pode colaborar para diminuir equívocos na determinação do objeto.

Temos visto que o gênero de canção chamado modinha tem sido tratado pelos estudiosos com certo descaso no que diz respeito à especificação, como foi apontado também por Veiga (1997) e Alferes (2008). Ambos também anotaram que essa vagueza permite que objetos distintos sejam tratados com o mesmo nome, causando confusão. Podemos inverter o raciocínio e interpretar a nomeação idêntica de distintos gêneros como sendo consequência de uma confusão e não, inicialmente, a sua causa.

Mário de Andrade, em suas publicações Modinhas Imperiais e Cândido Inácio da

Silva e o lundu, especificou os gêneros, chamando-os de modinha de salão e lundu de salão.

Focando agora apenas o nome modinha, parece-me claro que esta precisão faz-se necessária na medida em que esse nome passou a referir, já há bastante tempo, distintos gêneros de canção que recobrem largo espaço geográfico – modinhas cariocas, paulistas, baiana,

sendo o prefácio de Modinhas Imperiais considerado o primeiro estudo propriamente musicológico sobre esse gênero, como já apontado na introdução, esse cuidado com a especificação não foi seguido por outros pesquisadores.

Doderer (1984), no prefácio da publicação Modinhas Luso-brasileiras procurou dar um contorno mais definido, não pela nomeação, mas pela divisão da evolução histórica desse gênero em três fases, conforme mostrei na introdução.

Não é difícil verificar que a palavra modinha é usada indiscriminadamente para referir os mais diversos gêneros de canção de amor. À guisa de exemplo, uma edição com peças vocais de Heitor Villa-Lobos, publicada pela Casa Arthur Napoleão, do Rio de Janeiro, foi intitulada modinhas e canções. Ora, em princípio, modinha é hipônimo de canção, mas neste enunciado passou para o mesmo nível hierárquico. Creio que essa seja uma das consequências nefastas da não-especificação.

Podemos tentar compreender melhor esse uso – como vimos no exemplo acima, da não-especificação – a partir de Coseriu (1979). A especificação é um dos instrumentos de um conjunto maior a que ele chama de determinação. A determinação, por sua vez, constitui-se numa das formas de atualizar um léxico, já que, para o autor,

... um nome nomeia um conceito (que é, precisamente, o significado virtual do próprio nome) e só potencialmente designa todos os objetos que se enquadram nesse conceito. Apenas no falar20 um nome pode denotar objetos. Em outras palavras, um nome considerado fora da atividade linguística é sempre nome de uma “essência”, de um “ser” ou de uma

identidade, que pode ser identidade pertencente a vários objetos (reais,

possíveis ou eventuais), como no caso dos nomes genéricos, ou “identidade de um objeto consigo mesmo” (identidade histórica), como nos casos dos nomes próprios (...). Para transformar o saber linguístico do falar – para

dizer algo acerca de algo com nomes – é, pois, necessário dirigir os signos

respectivos para os objetos, transformando a designação potencial em designação real (denotação). Pois bem, “atualizar” um nome é, precisamente, essa orientação dum signo conceitual para o âmbito dos objetos. (COSERIU, 1979, p.217; negritos do autor; sublinhados, meus) Para efetivar essa atualização, existem operações em vários níveis; a determinação, dita acima é uma delas. Há ainda outros níveis “mais abaixo”, como a especificação, que conta com instrumentos verbais chamados pelo autor de especificadores. Esses especificadores

restringem as possibilidades referenciais de um signo, acrescentando-lhes notas não-inerentes ao seu significado.; por exemplo, “castelo medieval”,

“menino louro”, “as aves aquáticas”, “o presidente da República”, “o

vigário do nosso povoado”. Aplicados a virtuais, os especificadores

20A palavra falar que aparece diversas vezes justifica-se pelo tema do texto, cujo título é Determinação e entorno: dois problemas duma linguística do falar.

delimitam dentro das classes correspondentes outras classes, menos amplas (cf. Homem/homem branco); aplicados a atuais, apresentam os objetos denotados como pertencentes a classes que, por sua vez, são incluídas em classes mais extensas (COSERIU, 1979, p.226; negritos do autor; sublinhados, meus)

Levando em conta o exposto na citação, parece-me lícito afirmar que, quando Mário de Andrade chama seu objeto de modinha de salão, ele está atualizando e especificando, de modos a permitir que seu leitor tenha mais oportunidade de compreender o seu objeto de estudo. A palavra salão, usada como ele o fez, restringe o tipo de lugar, o tempo – já especificado por ele, modinhas do tempo do Império, – bem como as pessoas que as cantariam e/ou ouviriam essa modinha; para Mário de Andrade, apenas a burguesia e a aristocracia. Para nós, como veremos nos capítulos nos capítulos 4 e 5, acrescento também os músicos profissionais de estrato social inferior. O complemento de salão também ajuda a delimitar a própria forma musical, bem como os instrumentos de acompanhamento: cravo, viola de arame, piano.

Por outro lado, a ausência da especificação, bem como das âncoras temporal e espacial, talvez permitam aventar a interpretação de que, apesar de a palavra modinha ter sido enunciada nos estudos, não tenha havido de fato a atualização, nos termos acima postos por Coseriu. Desse modo, não há, com o uso feito nesses estudos, designação, tornando o objeto vago – apenas no nível do conceito – que leva ao extremo da vagueza vista na edição da partitura de Villa-Lobos referida no início desta parte, na qual o vocábulo modinha passa a ter o mesmo estatuto hierárquico da palavra canção.

Dos estudos que compõem o corpus, vale ressaltar que, no caso da dissertação de Alferes, de maneira geral não se faça necessária a especificação, haja vista que a delimitação esteja feita no todo do estudo: uma coleção de modinhas de um autor, do qual o pesquisador elaborou um estudo aprofundado.