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1. Empirismo construtivo e observação

1.6 A necessidade de caracterizar ‘observar’

Ainda que van Fraassen tivesse endossado a definição rigorosa de Muller, mesmo modificada conforme sugerido (admitindo, para fins argumentativos, a possibilidade de ignorar os problemas que ela apresenta e que a tornam inviável), ‘o círculo ainda não fecharia’.36

Muller e van Fraassen, com efeito, parecem utilizar-se do verbo observar de maneira acrítica, como se o ato de observação em si não fosse problemático. Evidentemente não é assim, tanto que a frente de debate mais atual em filosofia da ciência parece ter se

36 Isso apesar de Muller ter fornecido, também, um ‘critério científico’ para estabelecer o valor de verdade de

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deslocado da questão acerca do que significa ser observável para aquela acerca do que significa observar. Para poder constituir uma base firme e forte para sustentar o edifício filosófico do empirismo construtivo e carregar o peso epistêmico que isso comporta, com efeito, qualquer (esboço de) definição da observabilidade necessita, também, de uma caracterização viável e precisa do ato de observação.

Se não tiver clareza acerca do que significa observar, como podemos saber o que é observável e o que é inobservável? E, por conseguinte, como podemos estabelecer se uma certa teoria é empiricamente adequada ou não? Muller tentou chegar a um critério rigoroso que permitisse determinar se uma certa entidade é observável ou inobservável, justamente para fins de fundamentar a distinção entre a parte de uma teoria científica aceita na qual acreditar (como objetivamente verdadeira) e a parte acerca da qual suspender o juízo – que todavia se aceita porque ajuda a atingir o objetivo epistêmico da ciência, aquele, segundo o empirismo construtivo, de construir teorias empiricamente adequadas (cf. Muller 2004a, 646).

Ora, a linha divisória entre observável e inobservável não é arbitrária e nem indefinida, diz respeito a fatos objetivos do mundo. Mas tampouco pode ser irrelevante saber onde cai, contentado-se do fato de que há exemplos e contraexemplos claros dos dois lados da mesma, e certamente não se pode ‘simplesmente’ admitir que observável é um predicado vago, como de fato van Fraassen o fez em A Imagem Científica (cf. van Fraassen 2007a, 40). Qual atitude deveríamos adotar, senão, com respeito aos casos controversos?

Segundo Muller, a vagueza do atributo observável não constitui uma ameaça para o empirismo construtivo, pois seria suficiente revisar sua política epistêmica da seguinte maneira:

somente proposições incontestavelmente (unambiguously) empíricas de teorias aceitas devem ser consideradas verdadeiras, onde uma proposição incontestavelmente empírica é por definição uma proposição acerca de objetos reais e incontestavelmente observáveis; uma atitude neutra é de se reservar para proposições não-empíricas ou duvidosamente empíricas de uma teoria aceita. Desta forma, nós traçamos a linha com uma margem de segurança sem negar que a observabilidade é um conceito vago. A distinção entre aceitação pragmática e crença epistêmica continua suficientemente clara (Muller 2004a, 642, tradução nossa).37

Mas ainda que essa fosse uma viável solução para algumas das dúvidas que Foss e Creath levantaram (cf. nota 23), já que é a essas que Muller se dirige, como saber quais casos são controversos? Entre outras, as dúvidas desses dois autores se concentraram, justamente, sobre o fato de que a distinção entre crença e aceitação não é nem um pouco vaga e não admite graus e não pode, portanto, espelhar-se em uma distinção vaga, como ao contrário parece ser aquela entre observáveis e inobserváveis. Podemos até admitir uma certa vagueza em relação à observabilidade, disseram praticamente os dois autores, mas não podemos admitir vagueza epistêmica com respeito às asserções de uma teoria científica.

É verdade, porém, que nem toda pesquisa empírica foi levada a cabo ainda (cf. Monton & van Fraassen 2003, 415, citados anteriormente) e que, portanto, uma margem de vaguidade com relação à extensão do predicado observável talvez seja inevitável. Contudo, existem casos que não são controversos por essa razão e sim por uma falta de consenso acerca do que significa observar. As detecções de mitocôndrias por meio de um microscópio, por exemplo, são tranquilamente consideradas como instâncias de observações por um grande número (grande realmente) de pessoas, mas van Fraassen tem uma opinião diferente a esse respeito e há mais de trinta anos sustenta que somente se

37 O fato de a vagueza do atributo observável não constituir uma real ameaça para o empirismo construtivo

não significa, porém, que não seja no mínimo oportuno tentar minimizar ou até eliminar essa ‘penumbra’. Pois, como o próprio Muller afirma (e vimos anteriormente), para poder estabelecer se uma certa teoria é empiricamente adequadas ou não é crucial poder traçar a linha divisória entre observável e inobservável de maneira clara (cf. Muller 2004a, 646).

observa quando a entidade detectada pode, pelo menos em princípio, ser percebida sem auxílio de instrumentos (cf. van Fraassen 2007a, 38 e 2008, 93, entre outros) e esse certamente não é o caso das organelas celulares. Uma detecção de uma mitocôndria, portanto, não é uma observação, segundo van Fraassen.

Em vista disso, como deveríamos nos comportar frente a uma proposição como “A membrana externa de uma mitocôndria é lisa”? Segundo um biólogo, provavelmente, estaríamos legitimados em acreditar nela – ou, equivalentemente, em acreditar na verdade dela. Já segundo van Fraassen não seria legítimo, mesmo não sendo irracional, acreditar que essa frase descreva corretamente algum fato no mundo e a melhor atitude a se manter, no tocante à proposição por ela expressa, seria suspender o juízo acerca de seu valor de verdade. Outros poderiam não ter uma ideia clara acerca de se uma mitocôndria e suas partes são observáveis ou não, considerar que esse é portanto um caso controverso e, seguindo a sugestão de Muller, também suspender o juízo acerca do valor de verdade da proposição.

Outros exemplos de casos controversos são constituídos por sentenças acerca de fenômenos óticos como reflexos, arco-íris, miragens, etc. ou acerca de imagens. A posição atual de van Fraassen a esse respeito não está muito clara e sobre isso voltaremos, mas parece que frases como “Algumas vezes, um segundo arco-íris mais fraco é visto fora do arco-íris principal” possam apresentar o mesmo problema de sentenças acerca das mitocôndrias.

Podemos admitir esse tipo de vagueza epistêmica acerca das afirmações de uma teoría científica? Provavelmente não. O que é certo é que um empirista construtivo não pode admitir isso, considerando o diferente peso epistêmico que, para ele, as proposições

carregam, dependendo, grosso modo, de se essas são acerca de observáveis reais ou não (das devidas exceções já falamos).

É oportuno, portanto, esclarecer o que significa observar, porque essa questão não parece ter sido abordada de forma adequada, apesar de constituir, provavelmente, a pedra angular do edifício filosófico de van Fraassen e, talvez, do empirismo de maneira geral. A falta de clareza a esse respeito representou um ponto fraco do empirismo lógico, que tinha como objetivo a criação de uma linguagem observacional pura. A recusa de enfrentar adequadamente a questão empírica da distinção entre observável e inobservável e do que significa observar deixou a porta aberta para o ataque realista dos anos 60.

Com efeito, o autor que provavelmente constitui a maior referência para o positivismo lógico, Rudolf Carnap, afirmou, em An introduction to the Philosophy of Science (1974), que a linha de separação entre observável e não-observável é altamente arbitrária.

Filósofos e cientistas usam os termos observável e não-observável de maneira bem diferente. Para um filósofo, observável tem um significado bem restrito. Ele se aplica a propriedades como ‘azul’, ‘duro’, ‘quente’. Trata-se de propriedades diretamente percebidas pelos sentidos. Para o físico, o termo tem um significado bem mais amplo. Ele inclui qualquer grandeza quantitativa que pode ser medida de maneira relativamente simples e direta. Um filósofo não consideraria observável uma temperatura de 80 graus, por exemplo, ou um peso de 93½ libras, porque não há percepção sensorial direta dessas grandezas. Para um físico, as duas são observáveis, porque podem ser medidas de uma maneira extremamente simples(Carnap 1974, 225, tradução nossa).

Segundo Carnap, há um continuum que vai de observações sensoriais diretas até ‘observações’ indiretas e muito complexas. Não há como traçar uma linha divisória clara. Por isso, cada um “traçará a linha onde for mais conveniente, dependendo do ponto de vista

dele, e não há motivo pelo qual ele não deveria ter este privilégio” (Carnap 1974, 226, tradução nossa).

Carnap está aqui respondendo ao famoso ‘argumento do continuum’ exposto por Grover Maxwell em “The Ontological Status of Theoretical Entities” (1962), artigo que, nas palavras de van Fraassen, constitui “o locus classicus da nova argumentação realista de que a distinção teoria / observação não pode ser feita” (van Fraassen 2007a, 36). No texto há uma passagem muito conhecida, que lembra de perto a admissão de Carnap de que há uma transição contínua da observabilidade à inobservabilidade:

Há, em princípio, uma série contínua, começando com olhar através de nada, e contendo os seguintes elementos: olhar através de uma vidraça, olhar através de óculos, de binóculos, de um microscópio de baixa potência, um microscópio de alta potência etc., nessa ordem. A conseq[u]ência importante é que, até aqui, estamos sem critérios que nos permitam traçar uma linha não-arbitrária entre ‘teoria’ e ‘observação’ (Maxwell 1962, 7, tradução de Luiz Henrique de Araújo Dutra em van Fraassen 2007a, 39).

Como consequência, diz Maxwell, não há como traçar uma linha não-arbitrária entre ‘observação’ e ‘não-observação’. Dependendo do contexto, conclui, no mais das vezes acontece de traçar uma linha onde for mais conveniente (cf. Maxwell 1962, 7).

Carnap admite tudo isso, mas, em uma passagem que se parece muito com a afirmação de van Fraassen de que seria suficiente haver exemplos e contraexemplos claros de entidades (reais ou hipotéticas) dos dois lados da mesma, afirma que isso não constitui um problema:

É verdade, como mostramos anteriormente, que os conceitos observável e não-observável não podem ser definidos com precisão, porque eles repousam sobre um continuum. Na prática, todavia, a

diferença é normalmente grande o suficiente para que não haja dúvidas (Carnap 1974, 228, tradução nossa).

A impressão é que a separação entre observável e não-observável seja considerada óbvia e adquirida, como se as questões que merecem a atenção de Carnap fossem outras, em patamares mais elevados. Ao invés, como afirma Henry Byerly, seria necessário caracterizar de maneira precisa o que significa observável, para poder lidar com os problemas filosóficos levantados pelos neoempiristas (cf. Byerly 1968, 415).

Menosprezar a questão da observabilidade, quando a ‘visão recebida’ tinha como fundamento uma subdivisão do vocabulário não-lógico da ciência em termos teóricos, que poderiam fazer referência a objetos e eventos inobserváveis ou aspectos deles, e termos observacionais, que designam propriedades e relações observáveis, utilizadas para descrever objetos e eventos observáveis (cf. Carnap 1956, 38), constituiu, evidentemente, um ‘calcanhar de Aquiles’ para o empirismo lógico. A suposta impossibilidade de traçar uma linha divisória nítida, ou de traçar uma separação tout court, admitida pelo próprio Carnap, foi um argumento utilizado por muitos autores para derrubar a tese da intepretação parcial. “As dificuldades insuperáveis que afetam a tentativa instrumentalista de traçar uma nítida distinção entre vocabulários observacional e teórico constituiu o núcleo da virada realista contra uma filosofia da ciência instrumentalista”, observou Michael Luntley (cf. Luntley, 1982, 245, tradução nossa).

A esse propósito, van Fraassen comentou que “certas questões da filosofia da ciência (que têm a ver com a observação e a definição do conteúdo empírico de uma teoria) foram mal interpretadas como questões de filosofia da lógica e da linguagem” (van Fraassen 2007a, 342) e já vimos como, segundo ele, o conteúdo empírico de uma teoria não pode ser isolado através de uma operação puramente linguística. Por isso, a distinção

observacional / não-observacional deve ser levada a cabo em termos de entidades e não de linguagem (cf. Kukla 1996, 200, citado anteriormente).

Ciente do fato de que se trata de um assunto decisivo, e diretamente atacado no terreno da observabilidade após a publicação de A Imagem Científica, desde então van Fraassen tenta manter sua posição filosófica defendendo o próprio esboço de caracterização do que significa ser observável. Mas a impressão é que, apesar dos importantes progressos no esclarecimento dessa questão, tivemos recentemente um deslocamento do foco do debate, mais do que uma solução. Chegamos porém ao ponto onde se põe a pergunta básica e crucial “O que significa observar?”, que não admite ulteriores deslocamentos ou empurrões ‘para debaixo do tapete’.

Uma resposta é necessária, para que o aspirante empirista possa se tornar um empirista ‘legítimo’, mas também para que quem afirma endossar a ciência como padrão de investigação racional – segundo a caracterização do empirismo como stance e não mais como posição filosófica que van Fraassen defende (particularmente nos livros The Empirical Stance, de 2002, e Images of Empiricism, de 2007) – não mantenha uma postura distante da maneira em que os cientistas de fato operam, como ao contrário acontece, por exemplo, no caso da recusa de considerar as detecções por meio de um microscópio como instâncias de observações. Se o empirismo construtivo se propõe como visão acerca dos objetivos da ciência, deveria provavelmente tentar dialogar um pouco mais com os cientistas!38

38 Com isso não se entende negar que exista uma componente normativa, tanto no empirismo construtivo

como um todo, quanto, de forma mais acentuada, no próprio conceito de objetivo da ciência, apesar da geral ‘permissividade’ de van Fraassen (particularmente em campo epistemológico). Por outro lado, certamente van Fraassen não propôs a sua vertente antirrealista arrogando-se o direito de dizer aos cientistas aquilo que deveriam fazer e qual objetivo deveriam perseguir. Considerando que, diversamente, a sua posição está em algum lugar intermediário entre a normatividade e a ‘descritividade’, achamos que seria mais coerente levar em conta (um pouco mais, pelo menos) o fato de que há unanimidade, entre os cientistas, no mínimo acerca

Segundo Elliott Sober, já que a distinção entre observáveis e inobserváveis é central para o empirismo de van Fraassen, seria oportuno que ele fornecesse um relato do que significa observar um objeto. Em A Imagem Científica, entretanto, esse deixou claro que se trata de uma questão empírica a ser respondida pela ciência e não de um assunto para a análise filosófica. Mas se é uma questão empírica descobrir quais são as capacidades observacionais dos seres humanos, isso não isenta os empiristas da obrigação de dizer quais são os aspectos que se encontram envolvidos na ação descrita como ‘observar algo’ (cf. Sober 2008, 130-131). O risco seria, senão, de ver o empirismo construtivo decair pelos mesmos motivos que levaram ao abandono do projeto neopositivista, a saber, por se dizer fundamentado em uma distinção que não conseguiu demonstrar ser viável.

dos estatutos observacional e ontológico das entidades detectadas por meio de um microscópio ótico (e provavelmente o mesmo vale para aquelas detectadas por meio de um microscópio eletrônico de transmissão e, talvez, até de um microscópio eletrônico de varredura). Sem, com isso, aceitar acriticamente as afirmações desses, evidentemente.

2. A teoria pragmática da observação e a sua caracterização por