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5. O MODELO RECORDS CONTINUUM

5.2. A noção australiana de recordkeeping

Dentro do contexto arquivístico australiano, imprescindível se faz abordar a noção de recordkeeping. De acordo com Piggott (1998), o termo foi introduzido pela equipe do CAO na década de 1950 e passou a ser bastante utilizado no âmbito do CRS, à medida em que o foco dos arquivistas direcionava-se para o registro de informações acerca do contexto de administrações, órgãos e séries documentais. Duranti e Franks (2015) declaram que Ian Maclean reconheceu a teoria do

recordkeeping em 1959, a qual foi desenvolvida em um curso de gestão documental

promovido para os órgãos da Commonwealth em 1958. Ao tratar da base teórica necessária para os arquivistas, Maclean (1959, p. 389, tradução nossa) estabelece que a formação profissional do arquivista deve estar vinculada “ao estudo das características do material de arquivo, nos estudos comparativos dos sistemas de

recordkeeping presentes e passados, e na classificação dos problemas associados

com eles”.

Para Duranti e Franks (2015) a articulação de Maclean define o entendimento central de sistemas de recordkeeping, que passaram a ser utilizados como entidades contextuais para o entendimento e interpretação dos documentos. Para as autoras, o conceito é frequente na teoria arquivística australiana, sendo usado no series system para determinar órgãos independentes, de acordo com a existência ou não de sistemas próprios de recordkeeping. Nessa perspectiva, o entendimento do funcionamento do sistema é fundamental para o entendimento do contexto de criação dos documentos. Para McKemmish:

Sistemas de recordkeeping capturam o conteúdo dos documentos, representam sua estrutura e unem documentos relacionados. Entre outras coisas, sistemas de recordkeeping de qualidade retêm as informações sobre o conteúdo e a estrutura dos documentos em relações reconstruíveis e se unem a informações arquivísticas originais sobre acesso e uso subsequentes. Eles também permitem que documentos possam ser recuperados em uma data posterior, em uma forma que represente sua estrutura original e de uma maneira que reflita seu contexto de criação e uso. (MCKEMMISH, 1994, tradução nossa).

McKemmish (2001) reconhece que o uso australiano do termo recordkeeping para categorizar um conceito amplo e inclusivo de processos de gestão de documentos e administração de arquivos permanentes para finalidades correntes, regulatórias e históricas dentro da visão de continuum, torna-se confuso em outros contextos. O termo recordkeeping e suas variações — record keeping e record-

keeping — são usados por outras comunidades para se referir a conceitos mais

específicos, como aos sistemas de gestão de documentos.

Ficam claras tais distinções quando analisamos as definições de recordkeeping e recordkeeping system nos dicionários e glossários terminológicos americanos e australianos. De acordo com a definição do A glossary of archival and records

terminology, da SAA, o recordkeeping equivale à “criação, utilização, manutenção, e destinação sistemáticas de documentos para atender às necessidades e responsabilidades administrativas, programáticas, legais e financeiras” (PEARCE- MOSES, 2005, tradução nossa). Já o recordkeeping system consiste em “políticas e procedimentos que permitem a coleção, organização e categorização dos documentos para facilitar sua gestão, inclusive sua preservação, recuperação, utilização e destinação” (PEARCE-MOSES, 2005, tradução nossa). Examinando o uso australiano do conceito, temos a definição do Glossary of Records Management

Terms, do NAA, em que o recordkeeping representa

A criação e a manutenção da completa, precisa e confiável evidência de transações de negócios sob a forma de informação registrada. O

recordkeeping inclui a criação de documentos durante a atividade organizacional e os meios para assegurar a criação de documentos adequados; a concepção, criação e operação de sistemas de recordkeeping; e a gestão dos documentos utilizados nos negócios (tradicionalmente considerados como de domínio do records management) e como arquivos (tradicionalmente considerados como de domínio da administração de arquivos). (NATIONAL ARCHIVES OF AUSTRALIA, 2007, tradução nossa).

Ainda, segundo o referido glossário, o recordkeeping system consiste em

Uma matriz para capturar, manter e fornecer acesso às evidências de transações ao longo do tempo, tal como exigido pela jurisdição em que o sistema é implementado e de acordo com as práticas comuns de negócios.

Recordkeeping systems incluem: tanto gestores de documentos, quanto usuários de documentos; um conjunto de políticas autorizadas, atribuições de responsabilidades, delegações de autoridade, procedimentos e práticas; declarações políticas, manuais de procedimentos, diretrizes para usuários e outros documentos que são utilizados para autorizar e promulgar as políticas,

procedimentos e práticas; os próprios documentos; sistemas de documentos e de informação especializada usados para controlar os documentos; e

software, hardware e outros equipamentos, e papéis. (NATIONAL ARCHIVES OF AUSTRALIA, 2007, tradução nossa).

Para Kate Cumming (2010), a compreensão da noção australiana de

recordkeeping está diretamente vinculada à noção de documento-como-evidência.

Maclean (1959, p. 34, tradução nossa) define documento como “partes de papel que constituem evidência de ações administrativas particulares das quais fazem parte”. Cumming (2010) julga que, em conformidade com essa concepção, a necessidade de preservar a evidência dos documentos foi fundamental para o entendimento do papel do recordkeeping, pois o desenvolvimento da preocupação com a gestão adequada dos documentos, independentemente de sua idade ou condição, estava conectado à captura e manutenção da evidência24. Consoante a autora:

As primeiras práticas arquivísticas australianas assim iniciaram um afastamento dos métodos descritivos baseados em filosofias bibliotecárias, em direção àquelas que equilibravam recuperação, valor informacional e representação de contexto, junto com a evidência e requisitos de

accountability. Procurou-se integrar múltiplas perspectivas, múltiplos valores, múltiplos modos de ver. Foi assim instituída uma primeira forma de

recordkeeping baseada no continuum. (CUMMING, 2010, p. 44, tradução nossa).

Constatamos, desse modo, que o conceito de recordkeeping australiano difere do americano. Esse está precisamente adjudicado ao records management, enquanto aquele está assentado à manutenção de evidências de transações por meio de informações registradas e à expansão de seu domínio para além da gestão dos documentos administrativos, compreendendo, do mesmo modo, a administração de arquivos históricos. Quanto a esse confronto, McKemmish (2001) estabelece que se os entendimentos norte-americanos sobre o termo recordkeeping, baseados em conceitos de ciclo vital da gestão de documentos, forem utilizados para interpretar os trabalhos dos membros da comunidade arquivística australiana, há uma grande possibilidade de equívoco. Com o intuito de minorar eventuais desvirtuamentos, a

24 Sobre evidência, destacamos a análise aprofundada realizada por Rosely Curi Rondinelli a qual

consta na quinta seção do terceiro capítulo de sua obra RONDINELLI, R. C. O documento arquivístico ante a realidade digital: uma revisão conceitual necessária. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

autora sugere o uso do termo “recordkeeping and archiving community” para se referir à comunidade que se utiliza do conceito de recordkeeping australiano, que está diretamente associada à abordagem do modelo records continuum.

Julgamos impreterível tratar, neste ensejo, da opção pela não tradução do termo recordkeeping para o português. Verificamos que o assunto já foi objeto de discussão por Rocha (2009), quando do relato sobre a construção de uma base de dados de terminologia arquivística no âmbito do Projeto InterPARES 3. Para a autora, os problemas de tradução estão baseados, sobretudo, nas diferenças entre as práticas de gestão de documentos em diferentes países. No caso específico do Brasil, temos uma aceitação ampla no que concerne ao uso do termo records management como correspondente a uma administração sistemática de documentos arquivísticos. O que não acontece no Brasil, segundo Rocha (2009), é a divisão da gestão de documentos nos subsistemas record-making e record-keeping, tal qual ocorre na ideia presente no InterPARES. No Brasil, existe um único sistema que abrange todas as fases da gestão de documentos. Desse modo, não existem termos em português para designar esses dois subsistemas, já que esses conceitos não foram desenvolvidos no Brasil.

De forma pragmática, uma possível solução seria a tradução do termo keeping para manutenção, tendo o conceito de recordkeeping o equivalente “manutenção de documentos arquivísticos”. No entanto, a manutenção é apenas uma das funções presentes no recordkeeping, fato que inviabiliza tal feito. Salientamos que o conceito de recordkeeping analisado por Rocha (2009) está relacionado à noção americana, restrita ao records management, o que torna ainda mais difícil representar a noção australiana de recordkeeping, que está vinculada à manutenção da evidência, em uma palavra ou termo em português.