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2. O corpo e a produção de “verdades”

2.4 A normalização dos corpos

A produção de verdades, tal como analisada por Foucault, seja em sentido negativo ou positivo, gera efeitos sobre o corpo. Posto que as verdades estão fundamentadas em sistemas de distinções, o corpo expõe essa materialidade. A união das disciplinas e das biopolíticas, por meio do biopoder, formou o que ele denominou por “sociedade de normalização”, ou seja, uma sociedade que é ordenada a partir das

o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina [por exemplo] é uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 2017, p. 144, grifos nossos).

Isso pode ser verificado quando observamos como as relações com o corpo foram modificadas no decorrer do tempo nas sociedades europeias. Assim, podemos retomar o pensamento do autor quando ele afirma que o biopoder não se desenvolveu da mesma maneira em todos os lugares, sequer no mesmo momento. Dessa forma, ele apresenta como exemplo as distinções entre a constituição da sociedade de normalização alemã e francesa. Na Alemanha,

[...] será efetivamente posta em aplicação no final do século XVIII e começo do século XIX. [...] Aparece a ideia de uma normalização do ensino médico e, sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e atribuição dos diplomas. A medicina e o médico são, portanto, o primeiro objeto de normalização. Antes de aplicar a noção de normal ao doente, se começa por aplicá-la ao médico (FOUCAULT, 2017, p. 148-149).

Em outros termos, os processos de normalização alemães tinham como objetivo o controle da produção dos saberes médicos. E, por este motivo, foi implementado nos ambientes de ensino da medicina. Na França,

[...] a normalização das atividades, no nível do Estado, dirigiu-se, a princípio, à indústria militar. Normalizou-se primeiro a produção dos canhões e dos fuzis, em meados do século XVIII, a fim de assegurar a utilização por qualquer soldado de qualquer tipo de fuzil, a reparação de qualquer canhão em qualquer oficina etc. Depois de ter normalizado os canhões, a França normalizou os professores. As primeiras Escolas Normais, destinadas a dar a todos os professores o mesmo tipo de formação e, por conseguinte, o mesmo nível de qualificação, apareceram em torno de 1775, antes de sua institucionalização em 1790 ou 1791. A França normalizou seus canhões

e seus professores, a Alemanha normalizou seus médicos (FOUCAULT,

2017, p. 149, grifo nosso).

Outro exemplo de como a “normalização” objetiva a condução do comportamento e está relacionada à Medicina, à Pedagogia e à Pastoral Cristã, é analisado por Foucault a partir das práticas contraceptivas que eram realizadas no século XVIII, articuladas a uma biopolítica de estímulo à natalidade e de que modo isso influenciou (1) a prática de amamentação pelas mulheres e (2) as relações sexuais dos casais com bebês lactentes:

[...] havia uma espécie de circuito que fazia com que as crianças nascessem uma após as outras. Com efeito, a tradição médica e popular dizia que uma mulher, quando estivesse aleitando, não tinha mais o direito de manter relações sexuais, do contrário o leite estragaria. Então as mulheres, sobretudo as ricas, para poderem recomeçar a ter relações sexuais e assim segurar seus maridos, enviavam seus filhos para a ama de leite. Havia uma verdadeira indústria do aleitamento. As mulheres pobres faziam isso para ganhar dinheiro. Mas não havia nenhum meio de verificar como a criança estava sendo criada, nem mesmo se a criança estava viva ou morta. De tal forma que as amas de leite, e sobretudo os intermediários entre as amas e os pais, continuavam a receber pensão de um bebê que já tinha morrido. Algumas amas tinham um índice de dezenove crianças mortas em vinte que lhe haviam sido confiadas. Era terrível! Foi para evitar essa desordem, para restabelecer um pouco de ordem, que se encorajam as mães a aleitar seus filhos. Imediatamente acabou a incompatibilidade entre a relação sexual e o aleitamento, mas com a condição, é claro, de que as mulheres não ficassem grávidas imediatamente depois (FOUCAULT, 2017, p. 405).

A conclusão que Foucault expressa, na maior parte de seus estudos, é a de que o indivíduo é um dos efeitos do biopoder. Conforme Fonseca (2011, pos. 1305), “o sujeito não é dado definitivamente na história, mas constitui-se no interior dela. [...] antes de origem e fonte, o sujeito é produto e efeito”. Dito de outra forma, a individualidade é constituída a partir das formas como as normalizações incidem sobre seu corpo e, consequentemente, sobre si mesmo. Como os discursos são elaborados com base em um conjunto de produção de verdades que atuam diretamente sobre os corpos dos sujeitos, os modos de sujeição, tal como indicados por Foucault, necessariamente ocorrem na relação do sujeito com as normas e com o seu corpo. Ou seja, não há como o indivíduo elaborar seus modos de pensar, de sentir e de agir no mundo sem considerar a materialidade de seu corpo, as regras necessárias a cumprir com ele e o que está disposto (ou não) a fazer. Por este motivo, os dispositivos de poder modernos estão centrados no corpo: ele é produtivo, seja pela força física para o trabalho, seja pela capacidade intelectual em produzir conhecimento ou governar os indivíduos.

Contudo, se considerarmos a proposta foucaultiana de constituição de relações nas quais o indivíduo constitui a si mesmo e seu corpo por meio de “jogos de verdade”, podendo assim refletir sobre as normas e constituir sua moralidade na relação com o outro, poderíamos questionar se é possível, desse modo, a cada um exercer a liberdade sobre o próprio corpo. Foucault afirma que as relações entre os indivíduos se constituem: (1) entre sujeitos livres, (2) são circunscritas por dispositivos de poder, e (3) se há poder, haverá resistência, pois (4) as relações são dinâmicas. Em outros

termos, a liberdade se relaciona com o biopoder, influenciando na relação do indivíduo consigo mesmo, com seu corpo e nas suas relações sociais.