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A nova lógica temporal: a resistência emocional

Mulher é terra. Sem semear, sem regar, nada produz.

(Provérbio zambeziano)

Em O Alegre Canto da Perdiz, o centramento na personagem feminina negra conduz à construção de uma visão de mundo realizada a partir da perspectiva feminina. Verificamos que as vozes femininas do discurso procuram construir, por meio do contar, um espaço de pertencimento no qual elas são autoras de sua própria história e, por meio delas, buscam conduzir seu próprio destino.

Assim, essas vozes desejam, no espaço narrativo e para além dele, romper o silêncio imposto pela História da mulher negra. Os pensamentos e atitudes das personagens femininas do romance revelam a existência de seres humanos questionadores e vibrantes, que desnudam a existência de mulheres indiferentes às normas tradicionais, distanciando-se, desta maneira, de um destino pré-concebido em relação ao sexo feminino na sociedade a que pertencem.

As descrições físicas das personagens são escassas, mas observa-se uma riqueza de detalhes em relação aos mais profundos sentimentos e sensações. Movimentando-se temporal e espacialmente entre as várias fases da vida das personagens, o fluxo narrativo confere ao texto uma dinâmica peculiar, permitindo ao leitor/ouvinte acompanhar a trajetória das personagens. Desde o início do romance, as personagens demonstram um nível de consciência e percepção que desafia a ideologia dominante, buscando por brechas na estrutura social em que possam se infiltrar na tentativa de se opor ao status quo.

O silêncio é outro aspecto marcante das personagens femininas. Nota-se que a palavra vocalizada é continuamente substituída pelo silêncio, a não-voz, possibilitando à personagem, refletir sobre si e a vida. Este silêncio literariamente construído remete para a existência de um discurso marginal, inscrito em uma “literatura silenciosa”, tal como preconiza Pereira (2002)

A literatura silenciosa constitui lugar a partir do qual os indivíduos destituídos de voz, por força das desigualdades sociais (e raciais), estabelecem a sua auto-representação. Ao tecerem as estratégias dessa literatura, realizam-se como sujeitos da comunicação, isto é, manejadores de códigos através dos quais respiram e colocam em prática seus projetos de superação da exclusão social. (p.42)

Nessa mesma linha, Zinani elenca, ao longo de seus estudos, aspectos relevantes, dentre os quais destaca a ficção escrita por mulheres, ao afirmar que tal ficção “constitui um modelo polifônico, uma vez que contém duas histórias: uma dominante e outra silenciada” (2006, p. 25). Trata-se, portanto, de uma literatura palimpséstica, na qual “a escrita feminina impõe um duplo esforço de decodificação, uma vez que remete para a necessidade da leitura intertextual, da interpretação do não-dito, o que viabiliza o entendimento do sentido latente do texto – a história silenciada.” (idem, ibidem, p. 25)

A construção da identidade das personagens é feita a partir da escritura ex- cêntrica, a que situa o silêncio como mediador entre o seu pensamento, a linguagem e o mundo. Por essa ótica, as personagens femininas são atores que criam estratégias de resistência às concepções culturais tradicionais e lutam pelo reconhecimento e legitimação de novas formas de sentido. A voz da mulher negra não quer mais ser silenciada pela voz masculina.

Trata-se de um redimensionamento do lugar do feminino dentro da literatura produzida por mulheres e destinada às mulheres negras participativas de transformações dos sistemas de poder. Observemos a fala, a seguir:

A transformação social, bem como a mudança pessoal, referente à situação da mulher é perpassada pelo discurso, uma vez que normas e modelos, através dos quais se criam as redes de dominação, são estabelecidos na e pela linguagem. Assim, por meio da desconstrução do discurso patriarcal, a voz da figura feminina passa a ser ouvida, possibilitando-lhe revelar a sua experiência e expressar uma nova ordem social e simbólica, cujos parâmetros desvelam o universo da mulher, com a intenção de projetar uma estética de caráter feminino, na medida em que esse universo é representado na literatura, e que pode se converter em elemento político influente na transformação dos sistemas de poder existentes. (ZINANI, 2006, p. 17)

Showalter (1999) menciona a necessidade de se construir também um discurso crítico capaz de se desviar dos modelos masculinos, pois de nada vale ler uma obra essencialmente feminina, caso de Chiziane, e adotar um discurso analítico que a lança, reiteradamente, para uma posição periférica.

[...] em la práctica, la crítica feminista revisionista repara un agravio y se construye a partir de los modelos existentes. Nadie podría negar que la crítica feminista tiene afinidades con otras prácticas y metodologías críticas contemporáneas, y que el mejor trabajo es también el que posee mayor información. Sin embargo, la obsesión feminista de corregir, modificar, añadir, revisar, humanizar, o incluso atacar la teoría crítica masculina nos mantiene dependientes de ella y retrasa nuestro avance en resolver nuestros propios problemas teóricos. A lo que me refiero aquí por “crítica literaria masculina” es a un concepto de creatividad, historia literaria o interpretación histórica basado enteramente en la experiencia masculina, y proclamado como universal. (p. 80-81)

E segue defendendo que uma crítica feminista genuinamente centrada na mulher “Debe encontrar su propio objeto de estudio, su propio sistema, su propia teoría y su propia voz”. (p. 81).

Conforme nos assevera Gauthier (s/d) citado por Showalter (1999, p. 91)

Mientras las mujeres permanezcan silenciosas, estarán fuera del proceso histórico. Pero si comienzan a hablar y escribir como lo hacen los hombres, entrarán a la historia sojuzgadas y alienadas; ésta es una historia que, hablando lógicamente, su lenguaje debe romper.

Pensando desse modo, o silêncio das personagens femininas não equivale ao fechar-se em si mesmo; pelo contrário, estes momentos de isolamento se caracterizam pelo estabelecimento de uma oposição de vozes, pelo surgimento de uma tensão entre o pensamento das personagens e a palavra alheia. Bakhtin (1988) postula que a palavra é fenômeno ideológico por excelência, pois está impregnada de valores culturais que expressam as divergências e as opiniões da sociedade.

Na história da língua literária trava-se um conflito com aquilo que é oficial, com aquilo que está afastado da zona de contato, com os diversos aspectos e graus de autoritarismo. Assim, a palavra está integrada na zona de contato e conseqüentemente têm lugar as transformações semânticas e expressivas (entoativas): o enfraquecimento e a redução de seu modo metafórico, a reificação, a concretização, a redução ao nível do cotidiano, etc. (p. 145)

Fazendo do (re)lembrar um momento privilegiado a partir do qual o conhecimento é gerado, O Alegre Canto da Perdiz apresenta uma narradora que concede visibilidade e voz às personagens femininas negras apontando para as possibilidades de ser e de estar no mundo. Personagens que desejam inscrever sua própria história na História da Zambézia.