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O Manto da Apresentação

ARMANDO REVERÓN E ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO: VIDA E CONTEXTO DA OBRA

1.6 A obra artística materializada de Arthur Bispo do Rosário

O corpus da obra de Arthur Bispo do Rosário pode ser dividido em uma obra ficcional e uma obra materializada. A primeira é composta pela mitopoética criada por ele mesmo, a criação de um espaço ou Gruta que protegia seus objetos e possuía uma palavra chave de acesso e um

conjunto de performances que acionavam a materialização de sua obra. Abordarei a obra ficcional posteriormente, sendo que neste momento focalizarei a obra materializada.

A obra materializada de Bispo foi organizada pela crítica em conjuntos, seguindo um critério formal, pois o artista não tinha interesse de registro autoral de seu trabalho e, portanto, não assinava nem dava títulos para suas criações. No princípio da década de 1960, quando trabalhava na clínica AMIU, em Botafogo, “produz boa parte de seu trabalho” 224 e observam- se no seu quartinho da clínica algumas miniaturas, segundo Hidalgo:

Um dia Bispo pediu autorização para puxar a fiação elétrica até o sótão e iluminou o lugar com uma lâmpada de alta voltagem para eliminar as velas. Queria mais luz. Dr. Bonfim se rendeu à curiosidade e subiu até a gruta iluminada (...). Ousou espiar sem autorização e foi tragado pelo mundo encantado da bricolagem. No salão comprimiam-se os mais diversos bordados, navios e carros de madeira, brinquedos artesanais. 225

O grande conjunto da obra objetual de Arthur Bispo pode ser dividido em dois momentos: um quando morava na clínica AMIU, de 1962 até 1964, e outro quando é transladado ao Pavilhão 10 do Ulisses Viana, da Colônia Juliano Moreira. Este último vai da segunda metade da década de 1960 até sua morte (1989). Considerando o corpus formal de sua obra, podemos assegurar que ele se divide em miniaturas, vestimentas, arquivos, acumulações, estandartes,

ready-mades e assemblages. Esta classificação não está longe da estabelecida por Frederico

Morais, curador e organizador da exposição realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 1989: 1- o texto: nos estandartes bordados e os fichários; 2- as roupas: o Manto da Apresentação e os fardões; 3- os objetos: readymades mumificados (enrolados por linhas muitas vezes conseguidas ao desfiar seu uniforme hospitalar) e construídos (barcos e miniaturas); 4- as assemblages (ou vitrines, como dizia Bispo).

Os estandartes (fig.71) de Bispo do Rosário são espécies de bandeiras bordadas utilizando como suportes os mesmos lençóis sobre os quais dormiu em algum momento. Em seu conjunto estes trabalhos se apresentam como “textos brutos” 226, estruturando-se em planos verticais, horizontais, curvos, misturando palavras, frases e signos, com uma lúcida unidade e harmonia intuitiva. Estes conjuntos de estandarte lembram antigas cartografias (fig 72).

224

LAZARO, Wilson (org). Arthur Bispo do Rosário, século XX, 2007, p.295.

225

HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: o senhor do labirinto, 1996, p.73.

226

Marta Dantas aponta que “Por analogia à noção de arte bruta, inventada por Jean Dubuffet, Thévoz (1978) propõe a de “escritos brutos” para designar a produção de textos que escapam à tradição literária. In: DANTAS, Marta. Arthur Bispo do Rosário: poética do delírio, 2009, p.124.

71. Arthur Bispo do rosário. Estandartes. S.d. tecido e bordado.

72. Cartografia de detalhe de pequenas regiões da costa do Brasil.

Nesses mundos cartográficos elaborados por Bispo, a criação dos textos fala de uma primeira pessoa Eu: Eu preciso destas palavras escrita, Eu vou passar revista corpos homes cahidos. A quém se refere esse Eu? Ao próprio autor ou ao Eu supremo criador de todas as coisas?

Dentro deste mesmo conjunto, suas cartografias nos falam de geografias: nomes de países, ilhas, cidades, espaços urbanos, portos e outros. Os fichários (fig.73) são verdadeiros inventários de coisas. A obra se constrói com base em fichas de tecido reciclado, combinadas em várias cores e o signo plástico é o texto, sem figuras, e a geometria do conjunto. O conjunto é um verdadeiro labirinto de coisas, que às vezes de coisas que remetem a outra coisa (8007 Butoes ver-numero 8.005), além de referências funcionais e utilitárias de artefatos, marcas comerciais e uma vasta classificação e descrição por códigos, cores, tamanhos, espessuras, qualidades, quantidades, e outros. Exemplo: 10.032. Bolsa de couro

preto esmalte pintada 32 por 20. Tem uma bolsa pequena (...); 3.030. Cola cimento de borracha remendada; 3.022. Cem moedas de um centavo e um cruzeiro e conto.

73. Arthur Bispo do Rosário. Fichários. Merendeira cor de rosa. Tecido, linha, metal e plástico. 100x47 cm.

Essa ideia de remarcar textualmente o objeto, por meio de sua descrição e classificação, nos fichários, corresponde ao recalque figurativo da coisa, realizado pelo artista, nos ORFAs (fig.74).

Em Cem anos de solidão (1967), obra de Gabriel García Márquez, contemporânea da obra de Bispo do Rosário, a personagem Amaranta era uma tecedora de sudários e embelezadora de cadáveres. Seus rituais reaproveitavam o cabelo dos santos esquecidos. Certa vez, Amaranta

anuncia o dia da sua morte e se prepara para o momento. Inicia assim o ritual pelo qual, utilizando a linha, teceria o objeto de sua passagem, a mortalha:

Amaranta tecia a sua mortalha. (...) Alta, espigada, altiva, sempre vestida com abundantes anáguas de escumilha e com um ar de distinção que resistia aos anos e às más recordações. Amaranta parecia trazer na testa a cruz da virgindade. Realmente a trazia na mão, na venda negra que não tirava nem para dormir e que ela mesma lavava e passava. Sua vida se escoava a bordar o sudário. Afirmava-se que bordava durante o dia e desbordava durante a noite, e não com a esperança de vencer deste modo a solidão, mas, ao contrário, para sustentá-la.227

Bispo, por sua vez, utilizou a linha, bordou nomes com a data da passagem deles, bordou o monograma da cruz e revestiu na monocromia do azul os objetos, ORFAs. Nos mesmos ORFAs (fig. 74), Bispo também colocou o nome do objeto sobre o objeto, o recalque, a representação dupla: escrita e objetual. É tentador aproximar a memória da coisa no inventário do mundo realizado por Bispo às evasões da memória que levaram Aureliano e José Arcadio, no mesmo romance de García Márquez, a colocar os nomes com tinta e pincel sobre os objetos da casa e de todo o povoado de Macondo.

Bispo criou simulacros de objetos. Os objetos imitavam os próprios objetos transparecendo em uma “segunda pele”, azul, dada para eles228. No que tinha sido descartado, naquilo que Bispo des-funcionalizou e que aparentemente parecia apagado aos olhos do artista e da sociedade de consumo, ele colocou uma aura azul229 e sacralizou para a passagem. Na mesma obra de García Márquez, Amaranta vê a morte, quando se apresenta para anunciar o seu próprio desencarne:

No instante final, porém, Amaranta não se sentiu frustrada, mas pelo contrário libertada de toda a amargura, porque a morte lhe concedera o privilégio de se anunciar com vários anos de antecedência. Viu-a num meio-dia ardente, costurando com ela na varanda, pouco depois de Meme ir para o colégio. Reconheceu-a imediatamente e não havia nada de pavoroso na morte porque era uma mulher vestida de azul, com o cabelo

227

GARCIA Márquez, Gabriel. Cem anos de solidão. Tradução Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Editora Record, s.d, p,145. In: http: //www.poderosodeus.com/.

228

A ideia de pele no objeto é sugerida em princípio por Frederico Morais na criação do termo ORFA. Mais adiante Ivo Mesquita afirmaria que Bispo “mumificava os objetos”, passando a ideia de segunda pele e posteriormente, Wilson Lázaro (2007) refere-se a “segunda pele” na apresentação do catálogo Arthur Bispo do Rosário: Século XX, dedicado à obra do artista. O que seria pele para Lázaro, objeto mumificado para Mesquita, será matéria enformada para Paulo Herkenhoff (2007).

229

Prefiro o termo aura azul para fazer referencia aos ORFAs, criando com este uma conexão entre ritual, performance de Bispo e os conceitos levantados por Benjamin (1955) em relação ao objeto de arte.

comprido, de aspecto um pouco antiquado e uma certa semelhança com Pilar Ternera na época em que ajudava nos serviços de cozinha.230

Para Amaranta a morte não representava nada pavoroso, assim como para Bispo. Assim, a morte para o personagem de García Márquez era representada com a cor azul e não como tradicionalmente se reconhece, com a cor preta. Essa mesma relação entre cor azul e a morte poderia ser associada também aos ORFAs de Bispo. Este conjunto de obras pode ser aproximado dos objetos criados por Reverón com valor utilitário, pois ele os construía para utilizá-los em suas telas (fig.75).

74. Arthur Bispo do Rosário. Objeto ORFAs. S.d. Madeira, linha azul e pigmento.

230

GARCIA Márquez., Gabriel. Cem anos de solidão. Tradução Eliane Zagury. Rio de Janeiro: Editora Record, s.d, p.155, In: http://www.poderosodeus.com/.

75. Armando Reverón. Esfuminos. Para d.1920-1930. Madeira, tecido, papel, fibras vegetais, linha, fibra de algodão e pigmento. Vários tamanhos.

As obras classificadas como miniaturas são talvez, pelas referências passadas anteriormente por Luciana Hidalgo, as primeiras obras criadas por Arthur Bispo do Rosário. Em sua maioria, estas se compõem de figuras de barcos. O tema dos navios (fig.76) é recorrente em sua obra: no bordado e na costura, nas mãos que cobriam com fio azul o objeto ou que cortavam o tecido, nas mãos que combinavam diferentes peças de madeira. Estes navios parecem estar relacionados com seu amor pelo mar, com seu passado de marinheiro.

As assemblages de Bispo e as acumulações de objetos são um dos conjuntos mais característicos da obra do artista. Este tipo de obra responde a uma junção de objetos, produto de um processo de bricolage característico dos objetos artísticos de muitos artistas da década de 1960, em que Bispo desenvolveu grande parte de sua obra. O ritmo, as simetrias, a verticalidade são signos que se destacam nestes trabalhos (fig.77). Frederico Morais associou este conjunto também às obras de Martial Raysse, Daniel Spoerri e Arman (fig.78), dentro das propostas da Pop-Art: objetos da sociedade de consumo, acumulações e justaposições.

77. Arthur Bispo do Rosário. Assemblage e acumulações. S.d. Vários dimensões.

Outra marca objetual da obra materializada do artista são as vestimentas (fig.79). As roupas são suportes de textos, labirintos de nomes dos escolhidos por ele para a passagem, nomes fictícios ou reais? Num outro fardão Bispo marca sua presença, EU, de autoria e de criador:

EU VIM 22 12 1938 MEIA NOITE.

79. Arthur Bispo do Rosário. Avesso frente do Manto da Apresentaçã / Do lado Eu vi Cristo. Tecido, plástico e metal. 71x127x5 cm.

Os fardões e os mantos, objetos de apropriação e de criação de Bispo, são característicos das vestimentas das festividades de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, da qual faz parte a coroação do rei Congo, personagem que desfila com sua rainha e suas mucamas pelos centros históricos das cidades que a comemoram desde a época da escravatura (fig.80). Essas festas eram muito esperadas e comemoradas na terra natal de Bispo, Japaratuba.

80. Príncipe Nicolau do Congo (1930?-1960)/

Todo o conjunto de obras de Bispo não teria significação se não estivesse mergulhado na

mitopoética que ele mesmo criou para si e para sua obra, assim como a relevância do espaço,

a Gruta dos objetos, que os gerava e que os protegia. O mito pessoal criado por Bispo teve seus atos através de rituais performáticos que ele desenvolveu no mundo que habitava, entre as pessoas que aparentemente compartilhavam sua crença e onde morou a maior parte de sua vida: a Colônia Juliano Moreira. Sabemos que o corpus de objetos, antes de adquirir o valor artístico e expositivo, representava para seu criador, Bispo do Rosário, objetos de culto, e como tal não deveriam abandonar o templo, a Gruta231.

1.7 A obra de Armando Reverón e de Arthur Bispo do Rosário no contexto desta