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3. O GRUPO DE CAPOEIRA ANGOLA DO CEARÁ

3.1. A observação participante sob o foco da pesquisa

O tempo passado (a memória transmitida através da oralidade e do corpo) e o presente (a participação ativa no grupo), me fez optar por duas metodologias, as quais, de forma acíclica, foram aplicadas na pesquisa. Para esse primeiro momento do capítulo, que envolve a descrição do grupo, o desenvolvimento das atividades, enfim, como funciona o Grupo de Capoeira Angola do Ceará, tendo como objetivo a descrição de sua pedagogia; utilizarei a observação participante do tipo etnográfico, tendo como base a etnografia clássica, devidamente adaptada para as necessidades da observação.

A etnografia clássica foi teorizada pelo antropólogo Bronislaw Malinowski e ficou conhecida como “observação participante”. A descrição dessa metodologia se encontra na introdução do livro escrito por Malinowski (1984, p.17-34), “Argonautas do Pacífico Ocidental”, publicado pela primeira vez em 1921. Assim, numa pesquisa de campo etnográfica, ele preconiza uma vivência total com os sujeitos do povo estudado. Nos campos “tradicionais” da etnologia, isso significava morar junto ao povo pesquisado e participar da vida cotidiana de seus sujeitos, que segundo Malinowski, ele teve que aprender a comportar- se como eles, desenvolvendo dessa forma certa percepção para aquilo que era considerado como “boas” ou “más” maneiras.

No livro “Sociedade de esquina”, do pesquisador americano William Foote Whyte (2005), o qual a pesquisa é realizada em um bairro pobre ítalo-americano da cidade de Boston, nos Estados Unidos dos anos de 1930 (a obra foi publicada em 1943); constitui uma importante contribuição com um descritivo metodológico, considerado como um guia da observação participante em sociedades urbanas. Assim, segundo Whyte (Ibidem, p. 301-308), a observação participante implica num processo longo, chegando a levar meses para se ter

37 acesso ao local e às pessoas a serem observadas. Essa metodologia exige a iteração do pesquisador com o pesquisado, dependendo as respostas das indagações realizadas dessa relação, que deve ser clara e justificada ao grupo social, afirmando e reafirmando o seu papel naquele espaço, pois mesmo com uma postura “nativa”, sempre se verificará uma curiosidade, ou mesmo uma desconfiança com uma presença de fora. Não se faz uma observação participante sem um informante-chave (intermediário entre o pesquisador e o pesquisado), é ele quem esclarece as informações incertas e exerce também um papel de “assistente informal”, podendo inclusive influenciar na interpretação do pesquisador. Muitas vezes, as entrevistas formais são desnecessárias ao desenvolvimento da pesquisa, não devendo a coleta de dados se restringir a isso, portanto, implicando ao pesquisador saber ouvir, ver e fazer uso de todas as oportunidades, pois as informações com o tempo chegarão, o importante é o que saber fazer com elas. Através das anotações e manutenção do diário de campo, o pesquisador adquire uma disciplina de observar e anotar sistematicamente. Os erros cometidos durante o trabalho de campo também são um processo de aprendizagem dentro da observação participante, onde o pesquisador deve fazer proveito deles e refletir sobre certos porquês, tais como recusas ou silêncios. Por fim, o pesquisador é sempre cobrado sobre “para que serve a pesquisa?” ou se ela “trará benefícios” para a comunidade ou de forma individual, sendo esperado que o mesmo “devolva” os resultados de seu trabalho, o que dificilmente acontece, contudo que prevalecendo as relações de amizade feitas durante o trabalhoso trabalho de campo.

Para Loïc Wacquant (2002), em seu livro “Corps et âme”, o qual observa o cotidiano e práticas de uma academia de boxe, bem como de seus adeptos; o autor explicita que o método de pesquisa por ele desenvolvido pode ser considerado mais como uma “participação observante” do que uma “observação participante”, porque ao estudar um gueto norte- americano, no qual o pesquisador utilizou como inserção o mundo do pugilismo, ele pensou seriamente em ingressar na vida de boxeador, isso quer dizer que durante a experiência ao realizar a pesquisa, ele vivenciou o boxe de forma profunda, como todos os outros boxeadores da academia, “um deles”. E continua esclarecendo que para reter o discurso moralizador produzido por um olhar de longe, de um observador exterior, que se coloca um passo atrás ou por cima do universo expecífico, Wacquant sugere que o pugilismo só faz sentido quando se é dado o trabalho em se aproximar perto o suficiente para entendê-lo com o seu próprio corpo, numa situação que poderia ser entendida como experimental.

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Assim como no caso específico da capoeira, seria quase impossível (senão impossível) de vivenciá-la com um olhar de fora, sem os conhecimentos necessários com a prática do corpo, ou o contato social com o grupo, o que gera acompanhá-lo a cada passo dentro e fora do local de encontros. Ser como “um deles”, como sugere Wacquant (Op. cit.), oportuniza saber como as pessoas pensam de forma mais íntima sobre a capoeira, seus movimentos, sobre a vida, aliás, a vida é pensada através da capoeira, acredita-se, segundo vários praticantes, que a vida passa a ser regida ou pensada deslocando a roda de capoeira para a “roda da vida”, ou vice-versa, a capoeira passa a ser um reflexo da vida, o que dá mais sentido ser um angoleiro ou angoleira de “corpo e alma”. Segundo Vasconcelos (2003, p. 319), esse deslocamento do jogo pode ser visto também como uma “vocação”, pois a relação capoeira aplicada à vida:

Não representa somente simplesmente um domínio corporal que mistura dança e luta. É tudo parte de um jogo, mas, acima de tudo uma vocação. Um atributo quase divino fornecido por merecimento. Deve ser transferido de acordo com a necessidade e capacidade de cada um. Não seria lícito cobrar por este saber.

Já em relação ao “manual” descrito por William Foote Whyte (2005), o qual para realizar sua pesquisa utilizou a observação participante da etnografia clássica de Malinowski; em pouco se assemelha à metodologia utilizada por mim, na verdade, não faço uso de um manual, mas do desenvolvimento de um método de observação próprio, o qual em sua “periferia” tem a referência da metodologia clássica, mas em seu interior exigiu uma adaptação, onde fiz proveito do que estava ao meu alcance, surgindo dessa forma a possibilidade de realização da pesquisa. Para explicitar melhor esse comparativo da não- semelhança na presente pesquisa, não foi necessário um longo tempo de espera, ou “negociação” para efetivar um contato com o grupo, nem tampouco o uso de um intermediário, pois eu já estava em processo de “imersão total”, eu era parte daquele universo, portanto, era também a locutora principal de tal realidade, o que a posteriori, a minha experiência metodológica de pesquisa se aproximaria mais à realizada por Löic Wacquant.

Esse processo, no entanto, não se tornou mais fácil para realizar a observação, como supunha inicialmente, pois sendo uma presença de dentro, uma “nativa”, tive que realizar um caminho inverso, uma imersão invertida, ou seja, tive que extrair minhas convicções enquanto aluna praticante da capoeira angola e integrante de um grupo que transmite valores (conforme falarei mais adiante no capítulo), para ter uma postura de pesquisadora diante de seu objeto de estudo. Isso não quer dizer que eu tive que assumir um outro papel dentro do grupo, contudo

39 procurei um distanciamento da formação como aluna, e passei a observar tudo com um olhar atento às problemáticas propostas por mim ao longo da pesquisa. Confesso que foi um caminho árduo, pois colocar de lado o sentimento em relação à capoeira angola, não foi algo tão simples, era como assumir dois personagens: a aluna e a pesquisadora. Em determinados momentos entrei em conflito, e decidi que não mais tentaria separar os pensamentos, assim, enquanto estava acompanhando os treinos, as rodas, os encontros, eu era a aluna que tinha “curiosidades”, e saindo daquele espaço, eu começava a destacar pontos sobre o que havia observado, que seriam mais tarde anotados no meu diário de campo (instrumento básico de trabalho).

Passando agora para as semelhanças da observação participante explicitada por Foote Whyte (Op. cit.) em sua obra-prima, a utilização do diário de campo também foi um instrumento muito importante, como citado acima, bem como a proximidade com o grupo e seus integrantes, em especial o contato com o Mestre Armandinho, fez com que o uso de entrevistas formais fosse quase desnecessário, recorrendo a esse método, na verdade, para envolver outra forma de coleta de dados, que seria a ampliação do cotidiano no grupo para as memórias transmitidas através da oralidade, as quais misturam os relatos pessoais aos fatos ligados ao objeto pesquisado propriamente dito, método que se assemelha a um tipo de “fichamento” (ou descrição pessoal) de personagens fundamentais da pesquisa, como preconizado por Michel Agier (2004).

Dessa forma, trata-se de uma descrição da história recente do grupo, onde certas percepções só poderiam ter sido notadas através de um contato mais íntimo, ou seja, fazendo parte dele. Ser integrante do grupo, como aluna e posteriormente como aluna-pesquisadora, me permitiu colher alguns resultados sobre o assunto tratado: como se transmite sabedorias e conhecimentos na capoeira angola? Assim, sendo este o objetivo maior do meu estudo em todos os elementos que envolvem a capoeira angola (memória, corpo, musicalidade e ritual), apresento nesse sub-capítulo três momentos onde foram observadas práticas pedagógicas no grupo de capoeira angola estudado: os treinos, as rodas e os diálogos pós-treinos ou pós- rodas.

Antes de categorizar o funcionamento do grupo, apresentarei o grupo em si, anterior à minha entrada, antes e depois do início da pesquisa, onde trago contribuições das observações realizadas em trechos diferentes ao longo dos anos de 2006 a 2009, e entrevistas com Mestre Armandinho nos anos de 2004 e 2008, nas quais as principais fontes primárias são os diálogos e observações, ou seja, as relações sociais vivenciadas e observadas, tendo meus cadernos de

40 anotações, que depois passaram a ser os meus diários de campo, como registros “físicos” das fontes, bem como as entrevistas gravadas em fitas áudios.