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A organização e preparação para a Assembleia Geral da Comunidade de Nossa

Artigo III A Assembleia Comunitária Geral como Dramatização do Poder

1.2 A organização e preparação para a Assembleia Geral da Comunidade de Nossa

Fonte: Fotografia registrada pela pesquisadora em trabalho de campo em junho de 2010. Figura 1 – Vista da Praça e Igreja da comunidade Nossa Senhora da Soledade.

A religião tem a capacidade de “modelar” os sujeitos, tamanha sua influência social na afirmação de Geertz (1989). A Igreja é um dos pilares sobre o qual se assenta a relação hierarquizada entre homens e mulheres. As religiões são detentoras do capital simbólico e, portanto, manipulam a produção simbólica e a circulação dos bens simbólicos, e o fazem, por meio de representações, linguagem e palavra autorizada, reforçando e sacralizando a relação desigual de gênero. A estrutura desse campo religioso é também um espaço caracterizado por lutas e tensões entre os agentes e as instituições.

Constata-se que o poder é distribuído de modo desigual entre homens e mulheres. De acordo com Gebara (2000), elas ocupam, em geral, posições subalternas na organização mais ampla da vida social e também na organização das religiões em todo o mundo – como referência, a Igreja Católica.

Em acordo e sintonia com a afirmação de Gebara (2000), Soledade vivencia essa realidade. A mulher encontra-se inserida na Igreja: nos espaços pastorais, grupos e

movimentos. No entanto, não ocupa os cargos de liderança e coordenação da mesma forma que os homens, como na coordenação geral da comunidade:

Nunca houve em Soledade uma mulher que ocupasse o cargo de coordenadora, não sei por que, não entendo, às vezes acho que elas não querem assumir de verdade, é muito serviço pra elas né (expressão de João, um dos líderes da comunidade de Soledade, entrevistado em agosto de 2010).

Essa realidade e as diferenças são percebidas por alguns. Apesar de não compreenderem o porquê ou a origem dessa cultura, muitos líderes afirmam que gostariam de ver uma mulher na coordenação, pois elas estão em todos os espaços e assumem seus compromissos com responsabilidade. Porém, na prática, presencia-se uma realidade diferente. Há aqueles que acham que “a mulher não tem assumido de verdade porque tem deixado a desejar”. Ou seja, entendem que “a mulher simplesmente não quer participar”, ou que “a mulher não se esforça para fazer parte”.

Nos bastidores e nas reuniões preparativas para a assembleia, as mulheres foram atuantes, participando nas discussões e debates de propostas a serem encaminhadas por cada grupo, com posicionamentos firmes e fundamentados, principalmente nos problemas sociais da comunidade. As mulheres estiveram presentes em todos os grupos e pastorais, preparando- se para o dia da assembleia.

Nesse processo, os leigos se organizam e realizam, em cada pastoral e grupo, pequenas assembleias e elegem a sua coordenação. Esses seguimentos reúnem-se em plenárias, fazem uma divulgação, colocam os cargos à disposição e iniciam um movimento de campanha interna para novos coordenadores. Nesse tempo, as pessoas conversam em pequenos grupos, analisam e discutem até chegarem a um suposto nome ou nomes que possam compor a coordenação daquele grupo. Na assembleia geral, os coordenadores são apresentados e os nomes dos novos(as) coordenadores(as) são entregues ao secretário para registro em ata.

É raro acontecer a composição de duas chapas para eleição. O mais comum é o consenso entre os membros sobre o melhor nome ou a indicação de uma pessoa que aceite o cargo. É normal, também, um grupo ficar sem definição até as vésperas da assembleia sem nenhum nome indicado, pois “não há ninguém que aceita assumir o cargo”. Muitas pessoas entendem não ser capazes para assumir determinada responsabilidade. Isso acontece com as mulheres. Além disso, é comum a pessoa que aceita ser o coordenador nem sempre ser aquela com perfil para tal cargo; mas o grupo se submete, pois não podem ficar sem coordenador ou

coordenadora. A reeleição também é permitida. Apesar de criticada, a maioria dos líderes acha que “é importante dar a vez para o outro”. O cargo de coordenador é visto como sendode muita responsabilidade e não deixa de ser de status social.

Entre a coordenação, há espírito de solidariedade e trabalho em equipe. Isso não significa ausência de conflitos, mas prevalece o trabalho coletivo.

É um trabalho de muita responsabilidade, de ser um coordenador da comunidade né! Aí no caso tem que coordenar, não é um trabalho muito fácil não né! Mais não é difícil pra quem quer trabalhar mesmo na comunidade não é difícil. Mais igual eu mesmo, eu e o compadre JL fizemos uma disputa e eu fui vice coordenador. Aí nós falamos ôh compadre Édson, se acontecer que eu ganhar também, nós vamos trabalhar junto nós dois, não vou trabalhar sozinho não porque, aí eu te ajudo, cê me ajuda aí no caso ele ganhou, aí sempre quando ele vai tomar alguma decisão, ele me pergunta: compadre... O que você acha desse negócio ai? Graças a Deus, cê vê é um trabalho de muita responsabilidade ser um coordenador de comunidade, mas muito importante, um ajuda o outro (Entrevista com Luis J., em 28 de julho de 2011).

A coordenação em exercício, nas reuniões do CPC nos seis meses que antecedem a assembleia, faz o convite aos líderes das pastorais para comporem chapas e se candidatarem. Enquanto isso, nos bastidores, essa coordenação em exercício, ao perceber que alguém ou algum líder em especial possui um perfil que eles entendem ser ideal para o cargo, inicia um trabalho de convencimento à candidatura. A coordenação procura líderes em destaque em seus trabalhos nos últimos dois anos ou pessoas que, na opinião dos próprios líderes, poderão dar continuidade ao trabalho realizado pelo grupo que deixará o cargo.

Na última assembleia, a eleição foi realizada com uma chapa única de quatro pessoas; não houve mais candidatos. Na assembleia anterior, eram duas chapas. Quando há apenas uma chapa, acontece como em toda eleição: é necessário 50% mais 1 para assumir o cargo na coordenação da comunidade. Foi composta novamente por quatro homens, mas uma curiosidade chama a atenção: é a primeira vez que em Soledade uma pessoa de origem afrodescendente assume um cargo na coordenação geral. O líder era coordenador da pastoral litúrgica e foi convidado a fazer parte da chapa da coordenação geral como vice-coordenador. Atualmente, dentre os 23 líderes do CPC, ele é o único de origem afrodescendente numa posição de status na comunidade, como o da coordenação geral. Uma realidade não muito comum, pois nossa sociedade ainda é marcada pelo racismo, uma das razões de discriminação e tratamento desigual além da discriminação de gênero.

Na assembleia nenhuma mulher se candidatou ou entrou na atual chapa. Elas avaliam como “um espaço que exige mais do que podem oferecer” e se assumido por elas comprometidas com uma jornada laboral triplicada, não seria viável. Essa realidade é vivenciada pelas mulheres, pois os homens não participam da vida doméstica e familiar como deveriam, sobrecarregando e reforçando o trabalho tido como feminino.

O olhar que lançamos às diferenças existentes entre nós sejam elas de pertencimento a determinada classe social, gênero, raça, etnia ou orientação sexual, entre outras, é cultural e socialmente determinado. A defesa dos direitos humanos supõe uma postura política e ética na qual todos(as) têm igualmente o direito de ser respeitados(as) e tratados(as) com dignidade, independentemente da cor, do gênero, da orientação sexual, da origem etc56.

No entanto, no espaço religioso vivenciamos discriminações, desigualdades como vivenciamos em toda a sociedade. No momento de organização da comunidade, na escolha ou formação de chapas para eleição aos cargos tidos como importantes, na definição dos lugares e papeis de tidos como de homens e de mulheres, visualizamos essas diferenças. E na assembleia esse “drama” se faz presente nas relações de gênero e na forma de organização da mesma que conta com o envolvimento de todas as pastorais e grupos da comunidade.

O envolvimento das pessoas da comunidade inicia-se na assembleia, concomitantemente em seus segmentos (pastorais e grupos) – lugar onde acontecem os debates e também as sugestões das propostas. Eles apresentam as propostas de trabalho para o próximo ano, que são colocadas para apreciação e votação. Essas questões devem ser discutidas para realização e desenvolvimento dos trabalhos e projetos na comunidade. Então, todas as propostas que envolvem recursos humanos e financeiros, além do disponível em cada grupo ou pastoral, são colocadas para apreciação da plenária. Há um momento para fala: argumentação e defesa de cada um sobre suas propostas. Após cada defesa, a plenária se posiciona e delibera.

Durante o período de preparação para a assembleia não existe um cronograma formal até a data de realização da assembleia, que acontece sempre no mês de novembro. Nessa

56 Sobre esta temática, ver entrevista da feminista negra peruana Rocío Muñoz no site do CLAM. Disponível

em:

<http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=_BR&infoid=6182&sid=7 >. Acesso em: 26 mar. 2010.

época, todos encaminham à coordenação geral o nome dos novos coordenadores, que, por sua vez, são apresentados à plenária.

Após o encerramento, todos participam de um lanche oferecido pela comunidade num clima bastante descontraído. A próxima e última etapa do processo é a posse dos novos(as) coordenadores(as), que acontece no dia primeiro de janeiro – na chamada “celebração da família” – junto à comunidade. Depois desse momento, inicia-se novamente outro processo, até a realização de uma nova assembleia.

Em Soledade, existem grupos que são mais independentes – alguns mais próximos dos outros, outros mais distantes. Acredita-se que o motivo seja a identificação ou não com os objetivos de cada um. São dimensões diferentes de trabalho e atuação. Poderíamos citar uma dimensão mais espiritual e religiosa e outra mais social e política. Nesse contexto, as pastorais encontram-se nessa última dimensão: pelo seu perfil de atuação e intervenção em questões sociais e políticas na comunidade. Esse foi um dos motivos de escolha do foco para este trabalho entre 16 grupos, também pelo envolvimento pessoal e conhecimento do trabalho pastoral.

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