TRANSFERÊNCIA DE RENDA COMO DIREITO E MEIO PARA A SATISFAÇÃO DE
2.3 A originalidade da renda básica universal
A partir dos anos 1940, ganha corpo a proposta de uma renda mínima garantida a todos aqueles que não conseguem prover seu próprio sustento, seja pela impossibilidade de trabalhar, seja pelo desemprego, seja ainda pelo salário reduzido. Tratase de estabelecer o piso monetário que todos deverão perceber. A renda
mínima garantida é, portanto, um valor complementar entre esse piso estipulado e a soma dos recursos percebidos. Normalmente o cálculo é feito em bases familiares, ou seja, o benefício é definido por unidade familiar, bem como o montante da renda considerada para a determinação do valor a ser transferido é a soma do que é percebido por todos os membros da família.
Embora a renda mínima possa assumir características diversas de um modelo para o outro, podendo ser mais ou menos restritivas na seleção do seu público alvo, diferir na forma do financiamento, no estabelecimento de prazo para o recebimento do benefício, etc., Lavinas e Varsano (1997) identificam o que pode ser considerado comum a todas as propostas. Em comum apontam: o caráter universal para todos aqueles que se encontram em situação de necessidade, decorrente da insuficiência de renda; concessão feita com base na demanda do próprio interessado, configurandose um direito subjetivo; existência de certas prerrogativas e, em alguns casos, contrapartidas; e valor modulado pelo montante das demais prestações sociais e pela renda individual ou familiar. A renda básica universal difere da renda mínima exatamente nesses critérios apresentados. Por “renda básica de cidadania entendese uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus membros, em termos individuais, sem comprovação de renda, nem exigência de contrapartidas” (VAN PARIJS, 2006, p. 35).
Desse conceito, é importante frisar alguns elementos. Primeiro o da universalidade, que visa exatamente combater a discriminação que modelos focalizados podem acarretar, rotulando seus beneficiários de incapazes de satisfazer as próprias necessidades ou restringindo o benefício somente àqueles que aceitam as condições impostas. A não exigência de comprovação de renda é uma conseqüência do primeiro elemento, já que em um modelo universal, no qual todos podem receber, não há necessidade desta comprovação. Esse procedimento, aliado ao fato de o benefício ser pago em termos individuais, sem a análise prévia das condições familiares ou de seu estado civil, também preserva o usuário no sentido de não ter a sua vida privada invadida pelo poder público. Por fim, a incondicionalidade do benefício, ou seja, o não exercício de nenhum controle sobre a inserção do indivíduo, quer no mercado de trabalho, quer em atividades voluntárias. Essa incondicionalidade é o mecanismo que faz com que a renda básica não caia na armadilha do desemprego e da pobreza. Sem a ameaça de perda do benefício, mesmo com a possibilidade de um trabalho remunerado, as pessoas sempre procurarão melhorar o seu nível de renda, não se limitando apenas ao que recebem pelo benefício. A renda
básica configurase, pois, como algo que todos podem contar a priori, podendo ser complementada por outras rendas, seja do trabalho, da poupança, do mercado.
São, portanto, marcantes as diferenças entre um e outro modelo, ressaltadas no quadro 1.
QUADRO 1
Comparação entre Renda Mínima e a Renda Básica Universal
Renda
Mínima Convencional Básica Universal Renda
Contribuição prévia? Não Não
Comprovação de renda? Sim Não
Observa critérios individuais? Não Sim
Cumulativo com a renda do trabalho,
independente do teto? Não Sim
Exigência de contrapartida? (normalmente) Sim Não
É importante notar que tal como foi apresentada aqui, não há nenhum elemento que vincule a renda básica a mínimos sociais. Na realidade, a idéia da renda básica é concretizar a liberdade, devendo exatamente por isso ser incondicional e o mais elevada possível para garantir a propriedade de si mesmo e resguardar a capacidade do indivíduo de escolher a vida que quer ter, que é a autonomia. E, por isso, a questão das necessidades vitais já deve estar resolvida. Gorz (2003) lembra que a proposta de uma renda garantida tem adeptos à esquerda e à direita e, portanto, sua defesa deve ser feita levando em consideração essas diferenças de abordagem. De acordo com o autor, à direita, a garantia de renda atua como um “remédio” para a situação de milhares de supranumerários 20 em que se
encontra uma parcela da população. Serve para tornar aceitável a condição de exclusão determinada pela aplicação da ordem do capital. Nessa perspectiva, o estigma da preguiça e do parasitismo está sempre presente, porque não há a proposta de alteração da dinâmica social a permitir que se abram novos horizontes para aqueles que não trabalham. O Estado, ator responsável por “tomar” daqueles que trabalham para dar aos que não o fazem, procurará justificarse estabelecendo controles e critérios de entrada e manutenção do benefício mais ou menos vexatórios. 20 Termo cunhado por Castel (1998) para designar parcelas da população que não se encontram
Do lado dos beneficiários dessa renda garantida, haverá sempre o medo de que uma revolta fiscal ou uma mudança política lhe retire ou diminua o montante recebido. A diferença principal nas propostas de garantia de renda sob a perspectiva de esquerda deve ser o seu compromisso com a extinção das condições que conduziram à necessidade desse benefício. Não é apenas uma medida para tornar toleráveis o desemprego e as formas de marginalização que acarreta. Nas palavras de Gorz:
Não é a garantia de uma renda independente de qualquer trabalho que deve ser central no projeto da esquerda, mas o laço indissolúvel
entre o direito à renda e o direito ao trabalho. Cada cidadão deve ter o direito a um nível de vida normal; mas cada um e cada uma deve ter também a possibilidade (o direito e o dever) de fornecer à sociedade o equivalente-trabalho daquilo que ele ou ela consome: o direito, em suma de ‘ganhar a vida’; o direito de não depender para a sua subsistência da boa vontade daqueles que tomam decisões econômicas (GORZ: 2003, p. 202). (grifos do autor).
Assim, Gorz traz a público o papel fundamental que o trabalho possui como referência material, psicológica e cultural para a sociabilidade humana.
No próximo capítulo apresentaremos o Programa Bolsa Família que, embora não represente nem um programa de garantia de renda mínima, nem de alocação universal, significa a proposta brasileira mais abrangente de uma garantia de renda para a sua população.
CAPÍTULO III