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3 HISTÓRIA

3.2 A originalidade dos zapatistas

A tomada do poder? Não, apenas algo mais difícil: um mundo novo.

[Subcomandante Insurgente Marcos]

O levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) contra a implantação do NAFTA, sigla em inglês para “Tratado de Livre Comércio da América do Norte”, é digno de lembrança. Iniciou-se, assim, “a primeira revolução antineoliberal do mundo” (CECEÑA, 2001, p. 189). Não foi somente a imagem de camponeses e indígenas de Chiapas com armas à mão que merecem nossa atenção. O zapatismo não era, e não é, apenas um movimento armado de libertação nacional. Desde o seu nascimento tinha uma proposta teórica alternativa aos movimentos de libertação nacional precedentes. Na verdade, uma visão muito original e particular de libertação nacional, incorporando elementos teóricos e políticos que outros exércitos de libertação nacional tradicionais parecem não dar tanta importância. Em suma, elementos que transcendem a luta propriamente militar. O EZLN é um exército, mas sua estratégia de luta não parece ser central e fundamentalmente militar.

Desde o seu início percebeu que a sua luta no México era também uma luta contra o neoliberalismo em escala mundial. O internacionalismo é uma dimensão presente desde o seu início. Não por acaso, os zapatistas proporcionaram já a partir de 2006 encontros internacionais contra o neoliberalismo (chamados intergalácticos). As suas mais impressionantes contribuições são personificadas na figura do subcomandante Marcos (subcomandante, pois deve “mandar obedecendo”) e nas várias declarações da Selva Lacandona. A discussão acerca das inovadoras contribuições teóricas dos zapatistas para a teoria contemporânea da emancipação social é motivo de grandes controvérsias. Várias dessas contribuições são dominantes no movimento altermundialista.

O zapatismo não foi apenas um levante armado. No melhor sentido gramsciano do termo, é um movimento social em luta por hegemonia e que, no México, mas não só, conseguiu realizar importantes aproximações com outros setores da sociedade civil. O tempo

histórico do zapatismo é semelhante ao tempo histórico do FSM. Os elementos gerais presentes no primeiro também estão presentes no segundo. Entretanto, as manifestações particulares variam de um caso para o outro. Algumas de suas concepções, mais de meia década depois, estariam presentes também no FSM.

O zapatismo tornou-se um símbolo da luta antineoliberal e libertária no século XXI (se levamos em conta que o século XX terminou em 1991 com o fim da ex-URSS, conforme sugestão de Eric Hobsbawm) pois, além de sua ousadia prática – pelo fato de ter pego em armas no meio do período da hegemonia neoliberal, com uma correlação de forças completamente desfavorável e após uma ofensiva propaganda ideológica de criminalização dos movimentos e protestos sociais – enfrentou abertamente o legado teórico dos movimentos sociais do trabalho dos séculos XIX e XX. Tratou de questões relativas à classe social, poder e organização política, sujeito revolucionário, hegemonia e sociedade civil, nacionalismo e internacionalismo, entre outros. Não poderemos abordar aqui, em todas as suas complexidades, o fenômeno zapatista. Exporemos suas principais linhas de argumentação e discutiremos alguns de seus impactos para as lutas emancipatórias do século XXI e os seus reflexos na dinâmica do FSM.

No que tange à classe social – mesmo sendo filho de um período pós-moderno onde a categoria ‘classe’ já não tinha grande importância na explicação do real – o zapatismo não deixou de trabalhá-la e de levá-la em conta conceitualmente. Parece se valer de uma concepção thompsoniana para as classes sociais e para a consciência de classe.

Procurando demonstrar a fragilidade de uma velha esquerda que supõe que há a priori um sujeito revolucionário e que ele irá – ou terá que, necessariamente – fazer uma revolução social porque estaria impelido por uma missão histórica advinda não se sabe lá de onde (os termos usados são mais ou menos esses), seu conceito privilegia o processo e o movimento que faz com que as pessoas tanto se tornem uma classe social como passem a possuir uma consciência desse fato.

Do estreito conceito de classe, cunhado no tempo dos processos de trabalho fordistas, passa-se a um conceito amplo em que “a classe é definida pelos homens ao viver sua própria história” (...) “as pessoas se encontram em uma sociedade estruturada em modos determinados (crucialmente, mas não exclusivamente, em relações de produção), experimenta a exploração (ou a necessidade de manter o poder sobre os explorados), identifica pontos de interesse antagônico, começa a lutar por estas questões e no processo de luta se descobre como classe e chega a conhecer

este descobrimento como consciência de classe. A classe e a consciência de classe são sempre as últimas, não as primeiras, fases do processo histórico17 (THOMPSON apud CECEÑA, 2001, p. 191, os grifos não estão no original).

17 Atentar para a parte 6.3 onde há uma discussão mais detida sobre a questão das classes sociais e sobre a teoria

Sobre as relações de poder, o zapatismo busca não um contra-poder hegemônico, mas uma luta pelo anti-poder. Assim, não se trataria de substituir um poder por outro, ou um tipo de submissão por outra, mas a abolição de todas as formas de exercício do poder. Isso significa que tomar ou conquistar o poder político (estatal) não é uma mediação necessária para a emancipação social. Ao contrário, trata-se fundamentalmente de uma via para a derrota, seja em curto ou longo prazo. O poder não poderia ser controlado ou transformado no processo de construção de uma sociedade emancipada, pois em sua própria lógica interna se encontra a reprodução das estruturas hierárquicas que os movimentos emancipatórios procuram combater.

O problema do poder é central para o zapatismo, da mesma forma que para os outros movimentos revolucionários, só que assumido de maneira muito diferente. Para

criar um mundo novo não se requer “a tomada do poder”, mas a abolição das relações de poder; não o uso da força, mas o da democracia. O poder comunitário se constrói, não se impõe. (...) Assim, a diversidade dos explorados e mais ainda dos

dominados, obriga a repensar sobre as vanguardas, sobre o caráter privilegiado dos

operários industriais e sobre a pertinência de uma organização dos revolucionários

que reproduza as hierarquias e as relações estamentárias próprias da organização capitalista. Opor ao poder capitalista organizado a ditadura do proletariado é reproduzir as normas sociais em um sentido inverso bastante duvidoso (CECEÑA, 2001, p. 193, os grifos não estão no original).

Foucault também é um dos teóricos mobilizados18. Aparece aqui a própria concepção de que não há um centro para a dimensão do poder, encarnado no Estado, mas sim uma miríade cotidiana de formas de controle e submissão sem um núcleo articulador específico. Encontram-se presentes o proletariado, a revolução proletária, os demais setores sociais oprimidos e a luta cotidiana e microfísica contra todas as formas de subalternação. Comparece também a questão do sujeito revolucionário (ainda que de forma indireta), indicando que qualquer pessoa, desde que lute de forma “radical e sem compromissos”, faz parte do movimento revolucionário.

Mais adiante fica claro que os operários, ou trabalhadores assalariados (proletários), em suma, que a esfera das relações sociais de produção, ainda que estejam presentes, não

18 Vejamos uma das passagens de Foucault incorporada pelo zapatismo: “Mas se se luta contra o poder, então

todos aqueles sobre os quais se exerce o poder como abuso, todos aqueles que o reconhecem como intolerável, podem comprometer-se na luta onde se encontram e a partir de sua atividade (ou passividade) própria. Comprometendo-se nesta luta que é a sua, cujo objetivo conhecem perfeitamente e cujo método podem determinar, entram no processo revolucionário. Como aliados certamente do proletariado já que, se o poder se exerce tal como se exerce, é certamente para manter a exploração capitalista. Servem realmente à causa da revolução proletária lutando precisamente onde a opressão se exerce sobre eles. As mulheres, os presos, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais abriram neste momento uma luta específica contra a forma particular de poder, de imposição, de controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que sejam radicais, sem compromissos, nem reformismos, sem tentativas para modelar o próprio poder conseguindo no máximo uma mudança de titular” (FOUCAULT apud CECEÑA, 2001, p. 191).

possuem qualquer prevalência sobre demais tipos de relação sociais desiguais. Se aqui essas categorias ainda se encontram presentes, mesmo que de forma singular, no FSM elas parecem já não fazer parte das preocupações teóricas.

O sujeito revolucionário, o portador da resistência cotidiana e calada, que se torna visível em 1994, é muito diferente ao das expectativas traçadas pelas teorias políticas dominantes. Seu lugar não é a fábrica, mas as profundezas sociais. Seu

nome não é proletário, mas ser humano; seu caráter não é o do explorado mas o do excluído. Sua linguagem é metafórica, sua condição indígena, sua convicção

democrática, seu ser, coletivo (CECEÑA, 2001, p. 186, os grifos não estão no original).

Fica evidente que a ênfase não está na exploração, mas na exclusão social. Os sujeitos das transformações são os “seres humanos” em geral. O critério de classe dos movimentos de libertação do trabalho, neste quesito, não comparece mais.

Por fim, sua concepção de democracia. Coerentes com a não necessidade de conquista do poder político para a emancipação social, as ações do zapatismo procuram estar vinculadas e voltadas para o pólo da sociedade (civil) e não para o do Estado. Como foi visto, não se busca “impor a democracia pelo uso da força”. Trata-se de “construí-la”. A partir disso, surge a idéia da transformação pelo “consenso”: “é uma democracia de iguais diferentes sem hierarquias, é a democracia do consenso e não a das maiorias, a democracia de todos” (CECEÑA, 2001, p. 192, os grifos não estão no original).

Muitas dessas concepções são originais e estarão presentes de uma forma especifica no FSM. Neste sentido, o zapatismo marca a existência de uma época própria e tem um sentido particular: inicia a “primeira revolução antineoliberal” e coloca as bases teóricas da luta de seu tempo, servindo de referência para os movimentos altermundialistas que virão depois. Quando visto dentro da perspectiva dos movimentos antineoliberais e altermundialistas, o zapatismo representa o nível mais alto de teoria e ação possível. Teremos a oportunidade de discutir essa assertiva quando, nos capítulos posteriores, estivermos desenvolvendo a forma como os preceitos zapatistas se materializaram nos movimentos altermundialistas e no próprio FSM.