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Ti Adão aparece em muitos dos escritos de Salim Miguel. No seu livro Alguma Gente\ publicado pelas Edições Sul, encontramos um conto chamado Ti Adão. Nele, o autor narra a história do veUio, “muito velho, mais que cem anos” que “passou por tudo nêstes brasis. Cabelo todo branco encarapinhado, bigode aparado, uma dentadura de fazer inveja a muito rapaz novo. É ainda robusto, trabalha, bebe, come, dança, ama, como um jovem, é doido por mulheres. Fala mansa, pausadamente.”^. As histórias de Ti Adão eram bem conhecidas na Biguaçu da infância de Salim Miguel. Nos fragmentos de Sezefredo, Ti Adão está sempre presente, aqui fazendo uma reza;

“[...] Ele recebendo gentes, benzendo, pitando, bebendo, cuspinhando, rindo num hi-hi-hi interminável, repetindo aprecatem-se, sem exphcar do quê.” (p. 65);

ali, procurando um tesouro;

“[...] A casa de madeira. Minha mãe lava roupa. Meu pai debruçado sobre a terra, cava. Querendo retirar nosso sustento da faina ou em busca dos escondidos tesouros com que lhe acena Ti Adão, ‘não desanime seu Sezerdelo (incapaz de pronunciar Serzedelo), na sua terra

' MIGUEL, Salim. Alguma Gente. Histórias. Florianópolis; Edições Sul, 1953. ■ Idem, p. 51.

tem arcas com patacões, dobrão pra não acabar nunca, enterrados pelos portugas, é preciso ter fé pra descobrir eles’” (p. 65);

acolá, contando histórias;

“[...] não havia necessidade de falarmos. Ti Adão emendava um causo no outro, e eram relembranças de antanho, fantásticas fantasias e fantasmagorias, lendas, mitos. [...] Ti Adão mudava de assunto falava de sua vida, tempos de escravo, eu atento.” (p. 84-5).

Ti Adão só precisava de um ouvinte, afinal “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas”. Segundo Walter Benjamin, a narrativa “mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”, imprimindo a sua marca na história, “como a mão do oleiro na argila do vaso.”. Ti Adão aprendeu a tecer a “rede em que está guardado o dom narrativo”^, por isso

“[...] ele desfiava suas histórias como quem desenrola um comprido novelo de lã, colorido, mágico novelo sem começo nem fim. Os fios coleavam, se amontoavam, cresciam, diminuíam, se enroscavam, iam e vinham, mutantes as cores, ou então de um pardo uniforme, sombrio, atemorizador, fascinante.” (p. 85).

^ BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras

Assim era Ti Adão; vivia atacando o armazenado em sua memória, puxando o fio de Ariadne das recordações que são seletivas, deformam e

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reinterpretam incessantemente o passado à luz do presente. E assim que Ti Adão, sentado num caixote de madeira, daqueles que se usavam antigamente para transportar coisas, na venda do seu Zé-Gringo, pai de Salim Miguel, desfiava suas histórias, desenrolando um mágico novelo de reminiscências. E o menino Salim, que o pai já mandara dormir, estava em seu quarto cuja parede dava para a venda: ficava a esticar o ouvido para poder escutar Ti Adão tecendo o fio da sua narrativa'^.

“Por vezes o mesmo causo tinha várias versões, umas espichadas, outras sucintas, sem ordem nem lógica aparentes, mais adiante adquirindo uma lógica interior que vinha da maneira de narrar, do sentido que Ti Adão dava à fala, às situações, ao som, aos ruídos, às vozes, à expressão fisionômica, ao gesto alado das mãos, ao movimento do corpo, interrompendo, recuando, avançando, tomando-a abandonando personagens que em aparência nada tinham a ver com a história mas que acabavam por adquirir importância e relevo.” (p. 85).

Às vezes, temos saudade de coisas que não vivemos. Pois é, lendo o que o nosso autor escreve sobre Ti Adão tenho saudade dele. Na verdade.

uma vontade imensa de tê-lo conhecido, de ter podido colher todas as suas histórias e construir a sua história. É saudade própria de uma aprendiz de historiadora que vê uma possibilidade de ir mais longe na relação entre o narrador e sua matéria-prima, a vida humana que já não pode ser capturada. Através do autor consigo imaginar as mãos de Ti Adão sustentando, através de seus gestos, o seu fluxo narrativo^ e sinto, junto com ele, vontade de lembrar.

“Realidade, fantasia, fantasmagoria, alucinação, lendas e mitos, tudo se confundia. Falava da escravidão, da chegada ao Brasil no tempo do Império, de D. Pedro (qual deles e a que chegada se referia, da própria ou dos seus nunca consegui tirar a limpo, teria ele nascido no Brasil ou em Angola), da proclamação da Repúbhca, da libertação dos escravos, dos primitivos donos da terra para onde os seus vieram, [...] tudo infestado de índio, trabalhava-se no amanho da terra, na plantação de cana, no engenho de açúcar, a cana da moenda, nos tachos, o moer, o fervilhar, o cheiro adocicado tudo impregnando, [...] Ti Adão ria rememorativo, [...]” (p. 85-6)

Entretecendo história e hteratura. Ti Adão, Salim Miguel e eu construímos, cada um, a sua interpretação. Salim Miguel fazendo uma

^ BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras

Escolhidas. Magia e técnica, arte e polMca. 3“. ed.. São Paulo: Brasiliense, 1987. P. 220. A

observação ilumina a alma para dar à mão do narrador a prática que foi apreendida na experiência do trabalho. Para Walter Benjamin, o local de trabalho do artesão também era o lugar da narrativa e por isso, hoje, ela se perde em meio de um trabalho que se tomou industrial.

leitura de si mesmo, nos tempos que morava em Biguaçu e interpretando literariamente a história de um grupo que buscava novas perspectivas estéticas para a arte, e eu, construindo o meu diálogo da história com a hteratura pelo conhecimento proveniente da leitura poética da realidade. O narrador alimenta-se do vivido para construir um espaço retomando referências passadas da memória. De repente, um gesto, um objeto, um pensamento, torna-se a madeleine dos nossos narradores, fazendo-os reencontrar algo que julgavam perdido na memória^.