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A palavra na comunicação dialógica

2.7 O acontecimento da interação de vozes

2.7.1 A palavra na comunicação dialógica

A palavra, nas ideias de Bakhtin, torna-se bivocal à medida que as palavras do outro são introduzidas em nossa fala, e a partir de então somos revestidos de algo novo atravessado por nossa compreensão e avaliação. Para o pensador, no percurso da vida cotidiana aceitamos ou rejeitamos as palavras dos outros sob as condições da comunicação dialógica. Podemos verificar essa manifestação autêntica da palavra em três diferentes situações. Na primeira, Bakhtin afirma que o nosso discurso muitas vezes defronta-se com as palavras dos outros se solidificando totalmente a nossa voz e apagando, por meio do esquecimento, a quem deveras elas pertencem. Numa segunda, a relação com outras palavras reforçam as nossas próprias palavras e as aceitamos como autorizadas. Por último, conferimos terceiras palavras aos nossos propósitos, cujas proporções são estranhas e contrárias àquelas, e cujo enfrentamento se instaura dialogicamente entre duas vozes (BAKHTIN, 2013, p.225).

Além disso, as relações dialógicas da palavra com a mesma palavra em “lábios outros”, ou seja, em contexto de outros, necessariamente submete-se às mudanças que a palavra experimenta no processo de transição de um enunciado concreto a outro e no processo permutável entre esses enunciados. Nessa linha de pensamento, refletimos sobre o excerto a seguir em que Bakhtin refere-se ao artista-prosador na arte da prosa, traçando uma analogia com o tradutor do contexto desta pesquisa:

Para o artista-prosador, o mundo está repleto das palavras do outro; ele se orienta entre elas e deve ter um ouvido sensível para lhes perceber as particularidades específicas. Ele deve introduzi-las no plano do seu discurso e deve fazê-lo de maneira a não destruir esse plano. Ele trabalha com uma paleta verbal muito rica e o faz com perfeição (BAKHTIN, 2013, p.231)

No sentido metafórico do trabalho com a paleta verbal no plano discursivo, podemos moldar o que foi dito sobre o artista-prosador e adaptar à tarefa do tradutor. Por exemplo, é possível o encadeamento desta noção no horizonte do tradutor, visto que, de natureza semelhante ao prosador, o sujeito-tradutor deve ter uma visão dos matizes em meio a variedade de discursos que o circundam. Ele, tradutor, tem de perceber nas vozes do discurso do outro, as ocorrências verbais, as ressalvas, as evasivas ou insinuações ateadas aos nossos ouvidos que são, ou não, familiares aos nossos próprios lábios (BAKHTIN, 2013, p.231).

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Ainda, podemos introduzir em nossas reflexões o discurso-apelo, concepção bakhtiniana na qual no mundo de Dostoiévski não há nada de concreto exceto os sujeitos. Existe apenas o discurso que entra em diálogo com outro discurso, ou seja, o discurso sobre o discurso, restituído para o discurso. Sob o discurso-apelo está o olhar de um terceiro que “[...] esguelha para o lado, para o ouvinte, a testemunha, o juiz” (BAKHTIN, 2013, p.274). Esse apelo ao sujeito-terceiro é o momento quando o homem dialoga consigo mesmo, com o outro e com o mundo, simultaneamente. Ressaltando novamente a categoria de terceiro para os nossos estudos, temos então o tradutor, um sujeito-terceiro resiliente ( na acepção psicológica do termo), capaz de lidar com seus próprios conflitos, vencendo os desafios, não renunciando às adversidades, e respondendo mutuamente à pluralidade de vozes.

Esses princípios, ligados ao discurso do sujeito que, diante dos seus olhos em relação mútua, percebe e prevê a si mesmo entre tantos outros discursos, são asseverados por Bakhtin pelo interior de duas perguntas. Conforme verificamos no trecho a seguir essas perguntas suscitam o discurso do herói nos romances dostoiévskianos:

Quase não ocorre nenhum processo de formação do pensamento sob a influência da nova matéria e de novos pontos de vista. Trata-se apenas da escolha, da solução da pergunta “quem sou eu?” e “com quem estou?”. Encontrar sua voz e orientá-la entre outras vozes, combiná-la com umas, contrapô-la a outras ou separar a sua voz da outra à qual se funde imperceptivelmente são as tarefas a serem resolvidas pelas personagens no decorrer do romance. É isso o que determina o discurso do herói (BAKHTIN, 2013, p.277).

A construção dos diálogos do romance de Dostoiévski é sempre edificada, por assim dizer, no cruzamento, na combinação, no intervalo das respostas dos diálogos interior e aberto de suas personagens. No processo de realização do enredo manifestam-se conjuntos de pensamentos e palavras oriundas de variadas vozes desconexas, no entanto, refletidas a sua maneira em cada uma delas (BAKHTIN, 2013, p.315). O conceito de interação de vozes, outrora imprescindível para a análise de Bakhtin a respeito dos tipos de diálogos nos romances dostoiévskiano, é caro às nossas concepções. Porquanto, à medida que o tradutor, entendido como o homem de Dostoiévski, está sempre na fronteira, incorporando o que foi obtido através da consciência dos outros (o espelho), e participando inteiramente do diálogo, ratifica e justifica a natureza dialógica da própria vida humana. Assim, de modo notável, Bakhtin formula o seguinte:

86 A única forma adequada de expressão verbal da autêntica vida do homem é o diálogo inconcluso. A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal (BAKHTIN, 2013, p. 329).

Por conseguinte, o homem, participando com toda a sua individualidade, com a sua voz integral no diálogo, descobre a palavra viva, indissociável do convívio dialógico que quer ser ouvida e respondida. Por sua natureza dialógica, a palavra viva pressupõe também a última instância dialógica (BAKHTIN, 2013, p. 337). Assim é a palavra do tradutor, permanece no diálogo contínuo, no qual ela será ouvida, respondida, e, essencialmente, reapreciada. (grifos nosso). Esta é a visão da imagem do homem-tradutor, que não tem um mundo interior absoluto, “[...] está todo e sempre na fronteira, e olhando para dentro de si ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro” (BAKHTIN, 2013, p. 323).

Ele traduz para se ver no outro... 58

58 As reticências aqui significam, segundo Bakhtin referindo-se à obra O Duplo de F.M.Dostoiévski, o seguinte: [...] Aqui, em toda parte, especialmente onde há reticências, é como se estivessem encravadas as réplicas antecipáveis do outro (BAKHTIN, 2013, p.246)

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CAPÍTULO 3

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

[...] a análise lexical sinaliza para uma análise temático- semântico-discursiva, isto é, a escolha dos itens lexicais não

se faz aleatoriamente, mas tendo em vista um plano mental, discursivo, que é intencional...Cabe ao analista do discurso determinar as linhas-mestras do discurso a partir da análise, exploração e confronto dos itens lexicais preferenciais e de seus campos temáticos... poder fazer“conhecer”, para fazer“re-conhecer”... Zapparoli e Camlong

Neste capítulo apresentamos a composição da pesquisa que teve o seu percurso balizado pelo corpus de estudo e ancorou as suas concepções teórico-metodológicas: na teoria da Análise Dialógica do Discurso (ADD), nos estudos de tradução, e nas abordagens do léxico. Primeiramente, expomos as características do trabalho e a delimitação e escolha do material a ser investigado. Em seguida, descrevemos o contexto de pesquisa, explicitando as condições de produção, circulação e recepção do documento Site Master File, bem como evidenciamos o processo de interação verbal entre os interlocutores envolvidos.

Para relatar os procedimentos empregados na interpretação e análise dos dados, inserimos tabelas e quadros com o fim de exibir as análises estatísticas feitas com o uso de ferramentas computacionais para o tratamento do léxico – conforme já introduzido. Esses procedimentos foram recuperados dos resultados obtidos em estudo predecessor (Mazza, 2009). Ainda, para estabelecer a relação de identidade entre a comunidade discursiva específica, demonstramos a estrutura organizacional do SMF, sintetizando os sumários dos textos de cada localidade.

Desse modo, o quadro teórico emoldurado pelo pensamento bakhtiniano permite-nos descortinar as múltiplas identidades sociais constituídas pelos sujeitos nas suas práticas discursivas. Esse referencial, sendo fecundo, concebe formas e meios de se interpretar as dimensões que o cerca, como a presença do outro - provocando tensões e gerando novos significados, as diferenças - no efeito das contradições, e o fluxo contínuo dos enunciados concernentes às atividades humanas. O texto, dado como uma unidade que manifesta as

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relações de valores e que está vinculado tanto aos aspectos sociais como a interação com outros enunciados numa percepção dialógica, leva-nos a compreender a existência de uma unidade mais complexa à mera compreensão dos elementos linguísticos. Por isso, partindo do entendimento do processo dialógico da linguagem no espaço do documento SMF, analisamos a relação de alteridade para fazer aflorar do interior do discurso farmacêutico as outras vozes – em suma, as palavras do tradutor.