INTERPRETANDO A EXPERIÊNCIA
4 OS JOGOS DE MÃOS E A PARTICIPAÇÃO ORIENTADA
4.2 A participação orientada no contexto dos jogos de mãos observados
4.2 A participação orientada no contexto dos jogos de mãos observados
Este estudo fundamenta‐se na abordagem sociocultural de Rogoff e em sua estratégia metodológica de planos de análise, segundo o enfoque interpessoal que corresponde à análise do processo desenvolvimental da participação orientada entre crianças e seus parceiros na atividade sociocultural dos jogos de mãos.
Segundo Rogoff (1998), o processo criativo no qual as crianças procuram ativamente significados e situações relacionadas umas com as outras, é “por si só uma atividade sociocultural” (ROGOFF, 1998, p. 139). É nesse sentido que os jogos de mãos vivenciados pelas crianças no pátio escolar são considerados uma atividade sociocultural. No contexto dos jogos de mãos, a partir de processos criativos individualmente ou com seus companheiros, as crianças refletem sobre como tratar uma nova situação ou um novo desafio presente em determinado jogo, com base nos seus próprios saberes e nos saberes compartilhados. As crianças analisam, comparam e juntas empenham‐se na busca por novos significados.
A opção pela análise da participação orientada favorece o enfoque no envolvimento e nos acordos realizados entre as crianças durante os processos de criações musicais no contexto dos jogos de mãos. Entretanto, para compreender esses processos, que se tornaram foco do plano interpessoal de análise (participação orientada), faz‐se necessário sustentar os outros planos de enfoque – o plano comunitário (aprendizado) e o plano individual (apropriação participatória) – como panos de fundo.
Desta maneira, primeiramente será necessário compreender o porquê de se considerar os jogos de mãos uma comunidade de prática, pois seria impossível abordar o contexto dos jogos de mãos como participação orientada sem a descrição do plano comunitário (foco do aprendizado).
4.2.1 Aprendizado: uma comunidade de prática musical
Para caracterizar que as crianças estão envolvidas em uma comunidade de prática musical devemos encontrar características que nos permitam dizer que existe uma prática musical presente nos jogos de mãos.
Relacionando as características do conceito de comunidade de prática segundo Wenger (1998) com o contexto dos jogos de mãos, pode‐se dizer que: (1) ocorrem em um ambiente de aprendizagem musical (2) envolvem um sistema social de produção musical e de formação de identidades, (3) são uma prática fundamentada na habilidade de um grupo para conhecer e aprender, e (4) envolvem uma participação musical ativa.
Um ambiente significativo de aprendizagem musical
Considerando as características musicais presentes nos jogos de mãos observados, verifica‐se que as crianças desenvolvem habilidades musicais significativas e sofisticadas neste ambiente: relações polimétricas, melodias sincopadas, versos ritmados em uma relação interdependente de música, texto e movimento, apresentando um ambiente de aprendizagem musical significativa. Essa aprendizagem significativa é especialmente evidenciada na maneira como as crianças se mostram satisfeitas e orgulhosas por serem reconhecidas como produtoras de conhecimento musical e valorizadas em uma prática específica de seu universo. Além disso, no convívio entre as crianças foram claras as relações de amizades intensas e significativas que provinham de trocas musicais elaboradas.
Segundo Wenger (1998), o objetivo da aprendizagem é vivenciar o mundo e engajar‐se com ele de maneira significativa. Para o autor, aprendemos com os outros quando estamos engajados em atividades significativas que são valorizadas pelas pessoas que nos são importantes.
Acredito que essas aprendizagens se tornam muito significativas no contexto dos jogos de mãos devido ao fato de que nesses ambientes as crianças aprendem tanto para si, como visando às situações e relações sociais e coletivas que se apresentam. O que motiva as crianças para se encontrarem durante o recreio e brincarem com os jogos de mãos diz respeito, primeiramente à prática social, que, segundo Wenger (1998), é o
ponto de partida da aprendizagem. Para ele, a aprendizagem é um aspecto inerente à natureza humana, é parte integrante da prática social.
Sistema social de produção musical e de formação de identidades
O envolvimento na prática social que é definida pelos jogos de mãos acontece em torno das habilidades e dos conhecimentos que as crianças têm sobre esses jogos. Nesse sentido, as crianças participam e contribuem mutuamente no desenvolvimento da prática social, comprometidas em compartilhar suas competências. O engajamento com os jogos de mãos estimula um ambiente dinâmico de produção musical, desenvolvendo a identidade musical da cultura infantil, através da criação, da reprodução e da recriação desses jogos. Segundo Wenger (1998), a participação na prática cultural, na qual o conhecimento existe, é um dos princípios epistemológicos da aprendizagem.
Prática fundamentada na habilidade de um grupo para conhecer e aprender
As crianças que se interessam pelos jogos de mãos no recreio escolar envolvem‐se em atividades conjuntas de trocas, reflexões e de ajuda mútua, na qual compartilham significados e informações. A partir dessas trocas, as crianças aprendem conjuntamente através das interações sociais, desenvolvendo o sentido de pertencer a um grupo específico, construindo uma comunidade na qual se pretende conhecer e aprender os jogos de mãos.
Os jogos de mãos envolvem uma participação musical ativa
No contexto dos jogos de mãos, as crianças desenvolvem e se apropriam de um repertório compartilhado de gestos, canções, ritmos, movimentos e brincadeiras. A
partir do envolvimento mútuo, as crianças participam ativamente junto aos seus parceiros, desenvolvendo habilidades musicais capazes de provocar a ação, como o trabalho com o corpo, com os ritmos e com a voz em diferentes níveis de envolvimento:
aprendendo, ensinando, participando, observando, criando, transformando a partir de uma participação ativa e responsável.
Dessa maneira, a prática dos jogos de mãos oferece um ambiente de aprendizagem musical que é construído social e culturalmente. Essa perspectiva de aprendizagem de Lave e Wenger (1991) altera o foco analítico do “indivíduo enquanto alguém que aprende, para o aprender como participação no mundo social, e do conceito de processo cognitivo para a visão de prática social” 79 (LAVE; WENGER,1991, p. 43, tradução nossa). Nessa perspectiva, a aprendizagem não é vista como um tipo de atividade, mas antes como um aspecto de qualquer atividade: “a aprendizagem é uma parte integral da prática generativa social no mundo em que se vive“ 80 (LAVE;
WENGER, 1991, p. 35, tradução nossa).
O contexto no qual os jogos de mãos estão inseridos apresenta os critérios para uma comunidade de prática musical, pois as crianças quando jogam são envolvidas em situações intensas de aprendizagem social, nas quais, a partir de atividades conjuntas e reflexões, desenvolvem entendimentos musicais em um contexto de interesse compartilhado.
79 “of shifiting the analytic focus fro the individual as learner to learning as participation in the social world, and from the conept of cognitive process to the more‐encompassing view of social practice”
(LAVE; WENGER, 1991, p. 43).
80 “learning, is an integral part of generative social practice in the lived‐in world” (LAVE; WENGER, 1991,
p. 35).
4.2.2 Aprender e ensinar no contexto dos jogos de mão
As crianças quando estão brincando no contexto dos jogos de mãos são envolvidas em situações intensas de aprendizagem. Elas assistem atentamente umas as outras para perceber pistas e respostas de como desempenhar o jogo. Elas se tocam, elas criam algo novo. A brincadeira exige concentração, mas nunca fica monótona, ao contrário, sempre risos e divertimento (D.c, 2008, p. 22).
Conforme o relato das crianças, elas aprendem os jogos de mãos com os colegas de outras escolas, com os primos e irmãos, com as crianças vizinhas do bairro, na rua, na igreja, ou no ônibus escolar. Sendo parte da cultura tradicional mantida pela tradição oral, os jogos de mãos são considerados, segundo Mirsky (1986), uma subcultura da infância existente para e pelas crianças sem a interferência dos adultos. Essa independência das crianças ocorre na prática e na perpetuação dos jogos, vivenciados espontaneamente e transmitidos oralmente de criança para criança, ou seja, são aprendidos de maneira direta, por imitação e por repetição na própria ação.
É surpreendentemente eficaz a maneira como as crianças aprendem e ensinam os jogos de mãos umas às outras. Esta habilidade e capacidade caracterizam‐se por envolver uma aprendizagem holística e colaborativa mediante trocas e vivências mútuas. O caráter holístico, por sua vez, apresenta‐se na maneira integrada como as crianças vivenciam o processo de ensino e aprendizagem: as crianças aprendem o jogo integralmente não separando as partes de texto, música e movimento. Aprender ou ensinar o jogo em partes isoladas, somente a batida das mãos sem a canção, ou começar o jogo em outra parte que não seja no início, é um processo complicado na visão das crianças:
C3: A tá, deixa eu ver, é assim, ai não consigo, é confuso, é estranho quando começa da metade, fica mais difícil, não consigo.
P: Como que eu faço pra aprender, então?
C3: Tem que repetir, repetir, repetir, ficar olhando e ir tentando até chegar no fim.
C1: É, aí você aprende. Quando a gente erra, começa de novo, é mais rápido, aí fica mais fácil.
Como pôde ser observado pelo depoimento das crianças, fragmentar a aprendizagem causa confusão e perda de tempo, pois as crianças somente aprendem e ensinam executando o jogo todo, sem pausas, vivenciando o jogo por completo (música, texto e movimento). Quando o jogo é interrompido, seja por razão de um erro, distração de alguma criança ou quando alguém apresenta dificuldades em aprender uma determinada parte, o jogo para e recomeça desde o início. Segundo Gainza (1996), as crianças concebem a música e o verso, o ritmo e os gestos como uma só coisa. O mais importante para as crianças no contexto dos jogos de mãos é a brincadeira. Isolar partes do jogo compromete o caráter lúdico, torna‐o monótono e pouco desafiador. Errar e começar novamente ou seguir no erro faz parte da brincadeira, é o que o torna divertido e colaborativas presentes no contexto dos jogos de mãos, nas quais os jogadores trocam ideias e colaboram mutuamente no processo de aprendizagem. As crianças aprendem a