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A participação popular: graus de abertura e vulnerabilidades

3 A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: UMA RESPOSTA À CRISE DA

3.1 Da crise da concepção hegemônica da democracia

3.2.2 A participação popular: graus de abertura e vulnerabilidades

A participação popular é complexa. Como se percebe, não há uma fórmula, não se aplica matematicamente. É a experiência que lhe aponta os erros e acertos, as estradas que percorrerá. O que é possível, portanto, é tomar a teoria – que tenha base na prática – como um aprendizado que fornece mais elementos a nossa análise, a ser novamente contrastado com a realidade, e não como uma cartilha a ser transplantada para o concreto.

Neste sentido, é muito interessante a abordagem de SOUZA (2008) do “grau de abertura para com a participação popular”, inspirada na “escada da participação popular” de Sherry Arnstein, mas com algumas alterações em seus elementos. Em ordem crescente de abertura à participação, teríamos os seguintes níveis:

1) Coerção: é encontrada em regimes de exceção, mas não apenas nestes. Não há qualquer abertura, “nem as aparências são salvas” (SOUZA, 2008, p. 203). O autor cita como exemplo as políticas higienistas de remoções de favelas (SOUZA, 2008, p. 203).

2) Manipulação: talvez haja aqui uma maior preocupação com a aparência, pois a força bruta é, de certa forma (pois permanece como um recurso em potencial), secundarizada. Caracteriza-se por “situações em que a população envolvida é induzida a aceitar uma intervenção, mediante, por exemplo, o uso maciço da propaganda ou de outros mecanismos” (SOUZA, 2008, p. 203). Representa uma postura eleitoreira, marcada por “políticas compensatórias e pontuais”, não havendo qualquer intenção por parte do Estado de estabelecer um verdadeiro diálogo (SOUZA, 2008, p. 203). 3) Informação: “neste caso, o Estado disponibilizará informações sobre as intervenções

planejadas” (SOUZA, 2008, p. 203). Entretanto, pouco ou nada se terá além disso, não há canais reais de discussão ou de decisão. “Dependendo de fatores como cultura política e grau de transparência do jogo político, as informações serão mais ou menos completas, menos ou mais ideologizadas. (SOUZA, 2008, p. 203-4).

4) Consulta: Apesar de uma abertura um tanto maior que a da participação – pois a população terá algum espaço para colocar suas demandas -, neste degrau “não há qualquer garantia (ou mesmo um compromisso explícito e acordado) de que as opiniões da população serão, de fato, incorporadas” (SOUZA, 2008, p. 204). Ou seja, trata-se de uma participação sem poder, ou sem poder decisório. SOUZA traz aqui ainda a utilização de argumentos técnicos como uma forma de barrar as exigências populares (SOUZA, 2008, p. 204)

5) Cooptação: ocorre quando o Estado põe em prática mecanismos de captura da autonomia da participação popular. Através do financiamento de atividades e manifestações populares, por exemplo, ou do apadrinhamento político, estabelece-se uma relação clientelista com a população envolvida. Assim, castra-se o potencial crítico: gera-se um adesismo popular às políticas do governo. SOUZA afirma que, em sua obra, deseja-se fazer referência (…) à cooptação de indivíduos (líderes populares, pessoas-chave) ou dos segmentos mais ativos (ativistas) (SOUZA, 2008, p. 204). Assim, a partir desses sujeitos, “convidados para integrarem postos na administração ou para aderirem a um determinado canal participativo ou a uma determinada instância participativa”, alcança-se a “cooptação de uma coletividade mais ampla” (SOUZA, 2008, p. 204). Para SOUZA (2008, p. 204), nestes casos, a participação não é, a rigor, deliberativa. Consideramos importante frisar que, mesmo nos casos em que venha a ser deliberativa, isso não desconfigura por si mesmo a cooptação. Em

verdade, a cooptação é um dos grandes problemas – um dos maiores – enfrentados pela democracia participativa, em suas várias expressões.

6) Parceria: “corresponde ao primeiro grau de participação autêntica” (SOUZA, 2008, p. 205). Aqui começa a haver um diálogo real, crítico e transparente entre Estado e sociedade civil, no sentido da “implementação de uma política pública ou viabilização de uma intervenção” (SOUZA, 2008, p. 205).

7) Delegação de poder: um segundo grau de participação autêntica e, assim como a parceria, uma situação de co-gestão entre Estado e sociedade civil (SOUZA, 2008, p. 205). “Aqui, o Estado abdica de toda uma gama de atribuições, antes vistas como sua prerrogativa exclusiva, em favor da sociedade civil” (SOUZA, 2008, p. 205). Ou seja, aprofunda-se: para além da parceria, o que era poder do Estado é deslocado para as mãos da sociedade civil. Além disso, fica clara a presença dos instrumentos de participação direta: “os elementos da democracia direta são evidentes, ainda que os marcos gerais continuem a ser os da democracia representativa” (SOUZA, 2008, p. 205).

8) Autogestão: seria o nível mais elevado de participação popular. Julgamos interessante, aqui, citar na íntegra o que nos traz (SOUZA, 2008, p. 205):

na prática, a delegação de poder é o nível mais elevado que se pode alcançar nos marcos do binômio capitalismo + democracia representativa. Ir além disso – ou seja, implementar políticas e intervenções de modo autogestionário, sem a presença de uma instância de poder pairando acima da sociedade (Estado), a qual decide quanto, quando e como o poder poderá ser transferido – pressupõe, a rigor, um macrocontexto social diferente: pressupõe uma sociedade basicamente autônoma. O que não elimina a possibilidade de experiências autogestionárias marginais terem lugar, menos ou mais efemeramente e com menor ou maior impacto político- pedagógico, por assim dizer, nas bordas do sistema heterônomo.

A autogestão, a sociedade autônoma, corresponde a um outro momento histórico, a um outro lugar, a um outro modelo político, a um outro modo de produção. É, portanto, hoje, um horizonte, mais do que uma presença. Para uma ampla efetivação da democracia, de forma total, será necessário superar o binômio “capitalismo + democracia representativa”. Entretanto, isso não impede que se costure um processo – ao invés de um salto imediato - para sua construção. Reconhece também o autor as inadequações entre capitalismo e democracia. Sobre o desenvolvimento de experiências democráticas no presente, é interessante sua reflexão:

é preciso admitir que uma participação autêntica mais ousada, correspondente à autogestão, exigem, em última análise, muito mais que uma transformação política na escala local; no sentido castodiariano de autonomia, faz-se mister uma transformação social muito mais profunda, impossível de ser alcançada apenas dentro do raio de ação político, econômico e cultural de uma cidade. Isso, porém, não exclui a possibilidade de se alcançarem importantes ganhos de autonomia mesmo no interior de uma sociedade capitalista, desde que, a respeito das tensões daí decorrentes, elementos de democracia direta sejam consistentemente combinados com os mecanismos convencionais da democracia representativa. (SOUZA, 2008, p. 206)

O que é possível compreender é que esta autonomia, ao mesmo tempo em que deve pautar as organizações populares em sua ação cotidiana, é, também, um fim. As experiências no hoje, dentro dos movimentos sociais e no Estado, podem ser inseridas neste processo como momentos dessa construção, desse percurso maior. Assim, esses diferentes graus de participação precisam ser bem analisados. SOUZA lança essas preocupações, por exemplo, com relação à

escala espacial da participação (participação apenas no nível de um projeto ou de um assentamento ou participação no sistema político como um todo?) e à profundidade da participação (participação apena na implementação de uma intervenção ou também da sua própria concepção?) (SOUZA, 2008, p. 338).

Também consideramos importante avaliar que estes níveis não nos parecem compartimentos estanques. Eles podem variar de acordo com a área de políticas públicas que se tome (ou no caso de tomarmos o conjunto delas ou a própria postura do Estado ou de um governo como um todo); e podem, ainda, se mesclar, ou seja, podem emergir situações um tanto híbridas ou cujo delineamento está em constante disputa.

Parece-nos ainda que tal escada, além de se ligar aos próprios princípios da participação6, nos remete aos obstáculos e às vulnerabilidades da democracia participativa. Obstáculos e vulnerabilidades também nos aparecem, geralmente, como questões concretas, colhidas na experiência real. Representam uma elaboração que pode contribuir com a prática participativa, orientando-a no sentido de sua autenticidade.

SOUZA (2008) elenca três obstáculos à participação e tece suas reflexões: a problemática da implementação, a problemática da cooptação e a problemática da desigualdade (SOUZA, 2008, p. 387).

No primeiro caso, temos os empecilhos encontrados pela administração pública para que ponha em prática um processo político participativo. SOUZA cita como exemplo os

boicotes patronais, escassez de recursos, conflitos ideológicos internos, resistência corporativista e tecnocrática dos profissionais envolvidos (SOUZA, 2008, p. 387). Nesses casos, temos questões sobretudo políticas, em que as saídas envolvem “muito mais negociação que mobilização de conhecimentos técnico-gerenciais”.

Quanto ao segundo caso, trata-se da cooptação, sobre a qual já tecemos alguns comentários. É, na verdade, uma

deformação do esquema participativo a ponto de ele virar uma ferramenta de instrumentalização da sociedade civil por parte das forças políticas no poder de Estado, com a finalidade de eliminarem focos de oposição e crítica e constituírem redes informais de suporte para se perpetuarem no governo. (…) Um compromisso autêntico com a participação é indissociável de um respeito à autonomia da sociedade civil. (SOUZA, 2008, p. 388)

Consiste, enfim, a cooptação, num aprisionamento da sociedade civil na teia política do Estado. Os movimentos sociais - assim como uma população sem um instrumento organizativo, com a qual se deveria desenvolver o diálogo - passam de sujeitos autônomos e críticos a correias de transmissão das definições técnico-políticas governamentais. Dispensável reafirmar que, aqui, trata-se de uma pseudoparticipação, em que, na verdade, não se alcança o objetivo último da democracia participativa: o exercício da soberania popular, em ruptura com a alienação representativista do poder político.

Temos, ainda a problemática da desigualdade. Esta questão está ligada às contradições e às questões objetivas com as quais a democracia participativa precisa lidar num contexto capitalista. Liga-se à falta de recursos da população mais pobre para participar (tempo, dinheiro para o transporte e capacidade de articular demandas com fluência) (SOUZA, 2008, p. 388).

O Estado, sabendo dessas dificuldades, pode colaborar, modelando os esquemas de participação de uma tal forma que os custos de transporte onerem o menos possível (ou não onerem) os participantes, e adequando os momentos formais de encontro às possibilidades reais da população trabalhadora mais pobre. (SOUZA, 2008, p. 388).

Ou seja: o Estado deve não apenas instituir um espaço de participação, mas gerar as condições necessárias para que a participação popular possa ser plena. Em sentido semelhante, SANTOS (2003) trará as vulnerabilidades e as ambigüidades da participação. O autor também vê com preocupação a problemática da cooptação e da integração. Tomando os casos dos países do Sul analisados no livro por ele organizado, afirma que

A vulnerabilidade da participação à descaracterização, quer pela cooptação por grupos sociais superincluídos, quer pela integração em contextos institucionais que lhe retiram o seu potencial democrático e de transformação das relações de poder está bem ilustrada em vários casos analisados. (SANTOS, 2003, p. 60)

A “cooptação por grupos sociais superincluídos” refere-se à captura dos movimentos sociais pelas classes dominantes. Na verdade, o próprio

ideal da participação da sociedade civil pode ser cooptado por setores hegemônicos para cavalgar o desmonte das política públicas, sem o criticar, e, pelo contrário, aproveitando-o para realizar uma operação de marketing social. (SANTOS, 2003, p. 63-4).

SANTOS parece ainda enxergar no fortalecimento das organizações populares autônomas uma resposta a este problema tão profundo, que pode mesmo colocar em cheque a democracia participativa como uma alternativa emancipatória.

Não se trata de uma propaganda vazia: o que significa falar em democracia participativa? Em primeiro lugar, trata-se do reconhecimento da necessidade de se romper com o binômio elitismo + apatia, que se liga a um outro, como vimos, o binômio capitalismo + democracia representativa. O passo seguinte passa pelo resgate da soberania popular, do exercício do poder pelo povo, e é aqui que as experiências de democracia participativa, sobretudo nos países do Sul, surgem como uma alternativa, que, sem romper completamente com os mecanismos de representação, apresenta-se como um caminho de construção da participação política e da autonomia articulada com a igualdade. Cada vez mais, reconhece-se a democracia participativa como direito fundamental e como parte integrante da Teoria do Direito Constitucional. Entretanto, esse caminho não é fácil; esse caminho se faz caminhando, nas veredas de um experimentalismo democrático. Há pedras neste caminho. A democracia participativa tem seus pontos fracos, que nos exigem respostas na práxis, caso queiramos verdadeiramente aprofundar a democracia.

4 A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA VENEZUELA: CONTEXTO, A

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