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A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

3. A COMPREENSÃO DA SOBERANIA POPULAR NO BRASIL: EXCLUSÃO

3.2. A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

As discussões acerca da correção do conceito de soberania do povo são infindáveis, uma vez que a sua evolução é contínua. Na América Latina, por exemplo, desde a década de 1990, pelo menos, verificam-se esforços práticos em se compatibilizar as experiências constitucionais com a expansão das autonomias sociais, como forma de prestigiar a pluralidade social e resgatar grupos historicamente marginalizados. Por outro lado, assim como ocorre no Brasil, a própria estruturação política, social e econômica dessas sociedades se revela como uma dificuldade profunda para a realização dos novos projetos constitucionais, resultando, muitas vezes, em descrença quanto à capacidade de efetivação de teorias que defendem o autogoverno popular.

Compreende-se, porém, que são justamente nos momentos em que a prática política ou econômica parece usurpar os espaços de atuação e o controle jurídico-social que se devem aprofundar os discursos acerca das estruturas basilares da democracia, a fim de enfatizar e rememorar os fins primordiais estabelecidos quando da feitura do texto constitucional. Repensa-se, assim, a noção de soberania popular, que passa a se relacionar mais profundamente com a ideia de identificação com a realidade e as demandas locais, o que é percebido, por exemplo, com a criação de organizações comunitárias ou de bairro.

Ressalve-se que os processos constituintes dos países que se enquadram nesse contexto de ampliação das autonomias sociais, como a Colômbia, a Venezuela, o Equador e a Bolívia, diferente do que ocorreu no Brasil quando da elaboração do texto de 1988, buscaram amplo respaldo e participação popular, por meio de discussões públicas, plebiscitos,

referendos e reserva de cadeiras destinadas aos representantes de grupos historicamente excluídos, como os índios. Além disso, os textos frutos dessas experiências constituintes previram inúmeras formas de exercício da soberania política, social e econômica, como também a iniciativa popular legislativa, constitucional e constituinte, diversas formas de referendo e consulta popular.

Segundo essa concepção de ampliação dos instrumentos de participação popular direta e na ênfase radical na soberania popular, inclusive para fins de controle dos poderes constituídos e de solução dos problemas relacionados à desigualdade e exclusão social, é difícil enquadrar o processo constituinte brasileiro de 1987-1988 nessa categoria, tendo em vista a inobservância de elementos centrais que caracterizam esses novos modelos democráticos, como a consulta popular prévia e posterior à elaboração do texto da Constituição; e eleições específicas para a composição da Assembleia Constituinte.

É verdade que a Constituição Federal de 1988 apresentou um grande avanço em matéria de direitos fundamentais, especialmente os de caráter social, entretanto, quando considerada a forma tímida como os instrumentos de participação popular direta foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro no artigo 14, em que todos os instrumentos de participação estão atrelados às instâncias representativas - seja para participação, autorização, convocação ou aprovação -, resta nítida a diferença entre a concepção de exercício da soberania popular presente nesse texto e a que marca as outras experiências mencionadas.

Outro exemplo da ênfase na institucionalidade presente no texto constitucional brasileiro é o próprio processo legislativo estabelecido na seção VIII da Constituição, segundo o qual apenas o Parlamento, com participação do chefe do Executivo nos casos de normas infraconstitucionais, e sem a participação do Executivo nos casos de emenda à Constituição, deliberar e votar sobre as Leis, independente de permissão ou aprovação direta do povo em qualquer caso.

Assim, vê-se que a democracia representativa brasileira ainda é marcada fortemente pela institucionalização, em detrimento de outros atores que têm demandado maior espaço de legitimação na sociedade, inclusive em prol do aprofundamento da diversidade e do afastamento paulatino de ideais de unificação e homogeneização social.

Como defendido na parte anterior do trabalho, a democracia pressupõe a capacidade de assimilação de novas formas de canalização das demandas sociais, permitindo-se uma constante evolução. Do mesmo modo, a demanda pelo aperfeiçoamento do modelo de participação é incessante, tanto que se buscou criar outras formas de participação, essas sim muito mais recorrentes na realidade política brasileira, tais como a formação de Conselhos ou

Conferências que versam sobre políticas públicas ou orçamento participativo.

Analisando o desenvolvimento da ideia de participação popular no Brasil, Silva e Faria (2015:06) descrevem três momentos da relação entre participação e representação: o primeiro, a partir dos anos de 1970 até 1988, caracterizado como uma oposição ao regime militar, marcado pela polarização com a representação, de modo que se buscavam meios de participação popular para ensejar o sistema representativo; o segundo, ao longo dos anos 90, em que se institucionalizaram os arranjos participativos, especialmente no que se refere à elaboração de políticas públicas; e o terceiro, a partir dos anos 2000, marcados pela autocrítica dos arranjos participativos.

Destaca-se o fato de o primeiro momento de desenvolvimento de um ideal de participação popular no Brasil ter se relacionado diretamente com a restauração das instâncias democráticas representativas usurpadas pelo governo militar. A perspectiva de autonomia se relacionava diretamente com a representação, tal como é refletido no texto constitucional atual, considerando-se que, em grande medida, como mencionado anteriormente, o próprio direito ao voto é uma pauta muito presente na discussão política brasileira.

Considerando isso, a autocrítica dos movimentos participativos refere-se à explicitação da discussão em torno da disputa sobre o significado da participação em projetos políticos rivais. Denunciam-se as concepções de participação e representação com projetos antagônicos e os discursos de que os espaços participativos têm a finalidade de suplantar os de representação. Na realidade, é enfatizado que, com a maior participação popular, busca-se reoxigenar os processos decisórios, incorporar um maior número de pessoas no processo de elaboração de políticas públicas e, ao mesmo tempo, revelar os inúmeros desafios de alcance desses instrumentos de participação.

É notório, porém, que o pensamento social brasileiro, a partir da separação forte entre Estado e sociedade, segue uma tendência a relegar às instâncias de representação as mais importantes questões do Estado, dando espaço a um cidadão cuja liberdade, em grande medida, é tutelada. Ratifica-se essa constatação, por exemplo, a partir do número irrisório de consultas populares realizadas no Brasil e elencadas no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral: 03 estaduais (Maranhão, São Paulo e Pará) e 03 federais, agrupadas da seguinte forma:

Tabela 1 – Consultas Populares realizadas no Brasil mencionadas no sítio eletrônico do TSE

ANO TIPO DE

CONSULTA

2016 PLEBISCITO Resolução-TRE/MA nº 8.936/2016 – Desmembramento e Anexação de povoados referentes aos Municípios de João Lisboa, Senador La Rocque e

Buritirana.

Resolução-TRE/SP nº 375/2016 – Criação do distrito de Primavera na cidade de Rosana

2011 PLEBISCITO

Possiblidade de desmembramento da unidade federativa do Pará e da criação de mais dois estados nessa região – Carajás e Tapajós -, nos termos dos decretos

legislativos nº 136/2011 e nº 137/2011.

2005 REFERENDO

Proibição do comércio de armas de fogo e munições no país. A alteração no art. 35 do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003) tornava proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo

para as entidades previstas no art. 6º do estatuto.

1993 PLEBISCITO Escolha entre monarquia e república e parlamentarismo e presidencialismo.

1963 REFERENDO Continuação ou não do parlamentarismo no País.

Essa pouca utilização de instrumentos que aproximam o eleitor do centro de decisões se torna ainda mais grave em períodos de conturbação ou crise institucional. Chama atenção, igualmente, a pouca crítica doutrinária que se faz ao modo como esses instrumentos têm sido trabalhados no Brasil. O artigo 14 da Constituição Federal de 1988, apesar de muito restrito em comparação a diversos outros textos constitucionais ocidentais, é muitas vezes mencionado com grande otimismo. Na verdade, há uma tendência a se referir aos instrumentos ali mencionados como uma grande vitória do poder popular, apesar de, logo em seguida, dar-se destaque às formas representativas, essas sim, compreendidas como os reais canais de expressão da soberania popular. Como se verá, essa, inclusive, é a forma como o Tribunal Constitucional brasileiro trata o tema.

3.3. A SOBERANIA POPULAR NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL