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A passagem da adolescência faz referência imediata à ideia de tempo e, por conseguinte, à de duração, a qual, dependendo de sua extensão, nos situa em diferentes registros do tempo. Assim, uma duração muito curta se traduz no instante, ao passo que uma duração muito longa se aproxima do perene. Entre um e outro, a noção de período é o registro que confere maior consistência à adolescência como etapa intermediária, destacada tanto da infância quanto da idade adulta.

Essa observação é importante na medida em que, a depender do tipo de abordagem que se faça da adolescência, a passagem pode se apresentar como algo pontual, instantâneo, que evoca um limite – por exemplo, a maioridade civil aos dezoito anos, no Direito; como um período, quando se fala em faixa etária que vai aproximadamente de 12 a 25 anos, como na Medicina (HERCULANO-HOUZEL, 2005); ou ainda como um estado, quando se estabelecem características distintivas do ser adolescente, como define a Psicologia. O importante a destacar é que, qualquer que seja o critério utilizado, o olhar do Outro social terá influência decisiva, não só na duração como no modo como a passagem se realiza.

Neste sentido, é legítimo pensar que, ao lado das transformações sociais e econômicas que, a partir da Idade Moderna, determinaram o surgimento da adolescência como grupo social, surge o elemento discursivo que se desenvolveu em torno dela, sobretudo a partir dos primeiros anos do século XX, quando o psicólogo americano Stanley Hall (Cf. MARQUES, 2006) iniciou seus estudos sobre essa fase da vida, isolando-a tanto da infância quanto da idade adulta.

Outro aspecto intimamente ligado à ideia da adolescência como passagem é o modo como esta se realiza ou, em outras palavras, o que efetivamente demarca seus limites. Quanto a isso, as ciências sociais fornecem importante contribuição através da descrição dos ritos de passagem da puberdade.

Os rituais de passagem são cerimoniais que marcam a transição de um indivíduo de uma situação para outra. Podem apresentar-se associados a um mito, ou seja, a uma cadeia significante que o sustenta simbolicamente. Assim, os ritos da puberdade implicam a progressiva aceitação e participação na sociedade à qual o indivíduo pertence, tendo, portanto, tanto um cunho individual quanto coletivo (EIRE, 2004). A duração do ritual é muito variável

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em função da forma específica adotada por cada cultura, podendo comportar várias etapas ou recobrir períodos de tempo bastante longos. Por outro lado, é significativamente frequente que o ritual implique dor e/ou risco de alguma natureza.

Como exemplo, tomemos o ritual de passagem nas tribos das ilhas Vanuatu, no Oceano Pacífico (KRAMER, 2010), que exige que os jovens saltem de uma altura de 30 metros, com cipós presos aos tornozelos, e caiam a uma velocidade de cerca de 70 km/h, com o objetivo de tocar o chão com a cabeça e os ombros. O risco de acidente grave e até de morte que tal ritual comporta – consequências que se registram frequentemente – deve nos prevenir contra qualquer nostalgia em relação aos costumes de sociedades pré-industriais. Assim, basta um olhar sobre alguns rituais revelados pela pesquisa antropológica para perceber que a entrada na sociedade mais ampla, onde quer que ocorra, implica riscos.

Voltemos o olhar para a fenomenologia da adolescência em nossa própria sociedade para indagar até que ponto as chamadas patologias do ato (drogas, violência, suicídio), ou a alienação ao grupo de iguais, nas tribos adolescentes, ou ainda a submissão incondicional ao discurso do mestre, nas mais diversas formas em que se apresentam no campo social, exibem, em alguma medida, o risco de mortificação do sujeito singular. Em cada uma delas, parece predominar uma dimensão isolada dos três registros que compõem a estrutura, a saber: o real, o imaginário e o simbólico, respectivamente. Levantamos a hipótese de que a principal diferença entre a eficácia simbólica de um ritual de passagem antigo e o modo como transcorre a adolescência contemporânea resida no afrouxamento do nó que mantém os três registros atados.

Podemos considerar o risco de morte implicado no ritual de passagem descrito antes como coerente com a perspectiva psicanalítica quanto ao que está em jogo na adolescência. Trata-se do domínio de um gozo que, se não puder ser reduzido pela função simbólica, pode vir a se tornar mortífero e, eventualmente, eliminar o sujeito: seja pela morte efetiva como nas ilhas Vanuatu, ou pela morte simbólica, como acontece com frequência em nossa cultura (marginalização, violência, abuso de drogas, entre outras vicissitudes). Se, na infância, o manejo do gozo mortífero se apoiava na força do pai imaginário, ao qual o sujeito podia dirigir suas moções agressivas, erigindo uma barreira frente à pulsão de morte (LACAN, [1958-1959]/2002) – a fragilização do pai a partir da puberdade implica na possibilidade do retorno da referida moção pulsional em direção ao próprio sujeito.

Neste sentido, podemos reconhecer as manifestações sintomáticas apresentadas por Back e Barbie como índice da presença do gozo mortífero implicado na passagem da infância à idade adulta. Para Back, isso vem sob a forma de uma depressão que o subtrai da vida. Para

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Barbie, sob a forma de submissão violenta à voz do Outro que, através do bullying, a exclui de “participar da festa”, para usar uma metáfora extraída de sua cadeia associativa.

Deste modo, poder-se-ia pensar se, inversamente ao que se costuma dizer, a frequência e amplitude do agir na adolescência não refletiria uma necessidade de rearticular o nó da estrutura, atando simbólico, imaginário e real, estando essa última dimensão devidamente representada por um ato e, tal como ocorre nos rituais antigos, ato de risco? Penso que tal reflexão pode, por si só, colocar em perspectiva algumas manifestações sintomáticas apresentadas pelo sujeito adolescente e incluídas sob a rubrica de patologia do ato.

Numa comparação entre sociedades pré-industriais e o que ocorre em nossa cultura, quanto à transição da infância para a idade adulta, algumas questões se apresentam para discussão. Em primeiro lugar, o que poderia funcionar entre nós como legítimos rituais de passagem? Alguns estudos procuraram abordar essa questão (MARQUES, 2006) e balizas como o vestibular, o primeiro carro ou o primeiro emprego figuram como possibilidades de demarcação da passagem a um novo estatuto social. No entanto, mais importante do que definir marcos culturais específicos de reconhecimento social – nenhum dos quais pode funcionar para todos, numa sociedade tão diversificada quanto a nossa –, é a discussão sobre o caráter solitário ou coletivo da passagem.

Com efeito, costuma-se contrapor ao ritual dito primitivo, de caráter coletivo, as formas modernas da passagem, que teriam um caráter cada vez mais individual e solitário. Isso aconteceria em virtude do desaparecimento, nas sociedades tecnologicamente desenvolvidas, dos rituais de passagem socialmente organizados. Mais ainda, tal desaparecimento responderia pelo prolongamento do processo de tornar-se adulto e pela própria existência da adolescência, entendida como substituto e equivalente dos rituais ditos primitivos. Embora esta ideia não seja, a nosso ver, incorreta, parece-nos insuficiente para abarcar toda a complexidade envolvida. Poder-se-ia argumentar aqui, por exemplo, que não foi simplesmente um ritual de passagem que desapareceu, mas, ao contrário, foi toda a estrutura de funcionamento social e, sobretudo, de transformação social que se modificou. Nesse contexto, como pensar balizas para a transição da infância à idade adulta numa sociedade que perdeu em larga medida a sustentação da tradição?

A dimensão coletiva no ritual dito primitivo não se refere apenas ao fato de que se realiza o ritual em grupo. Mais importante é o fato de que sua realização obedece a um imperativo social que envolve toda a comunidade. Poderíamos perguntar aqui se o individual do ritual de passagem dito moderno não representaria uma obediência ao modo individualista

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de funcionamento de nossa própria sociedade e, neste sentido, se nossos ritos não estariam em estreita consonância com nossos mitos?

Essa questão nos remete a outra igualmente importante, a saber: que mitos estariam sustentando os ritos na modernidade9? Deixemos essa questão, por enquanto, e prossigamos nosso percurso, examinando o que a psicanálise tem podido avançar sobre a adolescência.

9 Atualmente, há um debate sobre o uso dos termos “modernidade” e “contemporaneidade”. Neste trabalho, opto

pelo primeiro, apoiada no trabalho de Anthony Guiddens (1991) que, em seu livro As consequências da

modernidade, defende a ideia de que os fenômenos da atualidade podem ser referidos a uma radicalização dos

pressupostos inaugurados pela Idade Moderna e não a uma ruptura com relação a ela. Esta escolha tem a vantagem de preservar a continuidade dentro da psicanálise, ela própria uma invenção moderna.

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