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A passagem da memória individual para a memória coletiva

2 INFÂNCIA: DA MEMÓRIA INDIVIDUAL PARA A MEMÓRIA COLETIVA

2.1 A passagem da memória individual para a memória coletiva

Nós, num relance, percebemos três copos numa mesa; Funes, todos os brotos e cachos de frutos que uma parreira possa conter. [...] Disse-me: Eu sozinho tenho mais lembranças que terão tido todos os homens desde que o mundo é mundo. E também: Meu sonho é como a vigília de vocês. E ainda, por volta do amanhecer: Minha memória, senhor, é como um monte de lixo. (BORGES, 2007, p. 104-105)

Como tomamos conhecimento do passado? Como adquirimos esse backgroud imprescindível? A resposta é simples : lembramo-nos das coisas, lemos ou ouvimos histórias de crônicas, e vivemos entre relíquias de épocas anteriores. O passado nos cerca e nos preenche; cada cenário, cada declaração, cada ação conserva um conteúdo residual de tempos pretéritos. Toda consciência atual se funda em em percepções e atitudes do passado; reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um café da manhã, uma tarefa porque já os vimos ou já os experimentamos. [...] Não temos consciência da maioria desses resíduos, atribuindo-os tão somente ao momento presente; esforço consciente é necessário para reconhecer que eles advêm do passado. (LOWENTHAL, 1998,

p. 64)

Compartilhar. Esse é um dos verbos da língua portuguesa que abarca diversas concepções, haja vista que os seres humanos compartilham ideias, sentimentos, derrotas, alegrias, dores, conquistas, opiniões, emoções, sensações e, principalmente, memórias, constituídas fortemente pelo coletivo. Por mais que se parta de uma percepção individual, não se pode desprezar ou negar a forte influência exercida pelo grupo social, especialmente no tocante ao aspecto memorialístico.

Entretanto, cabe ressaltar que a perspectiva adotada nessa pesquisa não se limita a examinar a memória como mera recuperação de fatos passados e, sim, como um processo de reconstrução de uma região, com o seu imaginário, sua cultura e sua identidade. Questão que possui significado na obra Infância, em que o narrador realiza um percurso por suas lembranças, extravasando os limites de evocação dos fatos.

Na obra, o personagem, a partir da narração em primeira pessoa, utiliza-se de eventos que o marcaram, para ilustrar o quanto o compartilhamento, acima mencionado, atua como eixo-norteador de toda a estória. Ele age, assim, como o representante de um meio agreste, em

que suas próprias lembranças estendem-se aos que fazem parte da região, conforme se vê, por exemplo, no episódio que trata da aversão desenvolvida ao ato de leitura:

Meu pai asseverou que as letras eram realmente batizadas daquele jeito. No dia seguinte surgiram outras, depois outras – e iniciou-se a escravidão imposta ardilosamente. Condenaram-me à tarefa odiosa, e como não me era possível realizá- la convenientemente, as horas se dobravam, todo o tempo se consumia nela. Agora eu não tocava nos pacotes de ferragens e miudezas, não me absorvia nas estampas das peças de chita: ficava sentando num caixão, sem pensamento, a carta sobre os joelhos. Meu pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou – e o resultado foi um desastre. (RAMOS, 2006, p. 110- 111)

A insistência do pai em ensinar as letras configurou-se como algo tortuoso, equiparado à escravidão. A aprendizagem, em todos os ambientes desenhados e da forma como ela se efetuava, dificilmente aparece com características positivas, seja pelo caráter impositivo, seja pela utilização de métodos obsoletos e desinteressantes. Verifica-se aí que o protagonista expõe uma prática corriqueira adotada naquele contexto e período, qual seja, a alfabetização no seio doméstico, segundo assevera Guedes-Pinto; Fontana26 (2004, p. 71):

Recorrendo a dois modelos de homens socialmente bem-sucedidos – o padre e o bacharel –, o pai tenta alfabetizar o menino em casa. Essa prática comum era uma herança do período colonial, quando a educação estivera restrita à esfera privada, dependendo da importância e do sentido que as famílias conferiam à aquisição da cultura letrada.

Em razão da imposição, o narrador enxergava-se como um condenado, que deveria cumprir uma pena e, diante de sua dificuldade, despendia muito tempo em um exercício que não progredia. Anteriormente, as atividades práticas e manuais, que figuravam como ocupação principal, perderam o lugar para tarefas intelectuais, que pelos obstáculos e precariedade de explicações, não faziam sentido algum. E, consequentemente, não conseguiam mobilizar o pensamento. O pai, mesmo sem aptidão para ensinar, todavia sempre detentor do conhecimento e da razão, insistiu na prática de passar-lhe o alfabeto, fato que aliado à resistência do menino, só poderia ter resultados insatisfatórios.

Além disso, a criança recebia provérbios vagos e expressões, que não surtiam nenhum efeito intelectivo. Com a ida à escola, a esperança de compreender certos conceitos parecia promissora:

Os fragmentos da carta de A B C, pulverizados, atirados ao quintal, dançavam-me diante dos olhos. “A preguiça é a chave da pobreza. Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém. D, t, d, t.” Iria o professor mandar-me explicar Terteão e a chave? Enorme tristeza por não perceber nenhuma simpatia em redor. Arranjavam impiedosos o sacrifício – eu me deixava arrastar, mole, e resignado, rês infeliz antevendo o matadouro. (RAMOS, 2006, p. 119)

26 Autoras que desenvolveram trabalho acerca da iniciação no universo da escrita no patriarcalismo rural

A carta de A B C foi o documento que marcou o início da trajetória de alfabetização do menino no seio familiar e exerceu tanta influência negativa, que ela permaneceu em sua mente, buscando compreendê-la, ao adentrar no meio escolar. Os provérbios, absolutamente incompreensíveis, também ressurgiram naquele local. Em virtude da confusão que despertavam na mente do menino, o qual não entendia o seu sentido, teve receio que o educador pudesse questioná-lo a respeito de Terteão, que acreditava ser um homem, bem como sobre a chave, objeto pouco conhecido em sua seara familiar. A ausência de algum colega que pudesse auxiliá-lo, produziu sua infelicidade, de modo que ir para a escola caracterizava-se como uma tarefa árdua, contra a qual não adiantava insurgir-se, mas apenas sujeitar-se, repleto de desânimo e insatisfação.

O desgosto materializava-se de tal forma, que o personagem comparou-se a uma “rês infeliz antevendo o matadouro”, ou seja, como não adiantava revoltar-se, a resignação e a desventura foram as únicas alternativas encontradas. A escola como matadouro simboliza um elemento importante, pois pode ser compreendida como uma instância de aniquilamento. No caso da rês, trata-se da morte física. No caso da escola, ela atua no sentido de morte intelectual, seja por cercear a liberdade de pensamento dos estudantes em muitas circunstâncias, visto que busca condicionar suas ideias, seja pela agressividade empregada nos métodos e pela impossibilidade de libertar-se de todo o sistema.

Percebe-se que este acontecimento teve proporções tão expressivas na trajetória educacional do narrador, que foi retomado por Graciliano em uma crônica, intitulada “Um novo A B C”, presente na obra Linhas tortas27:

Suportávamos esses horrores como um castigo e inutilizávamos as folhas percorridas, esperando sempre que as coisas melhorassem. Engano: as letras eram pequeninas e feias; o exercício da soletração, cantado, embrutecia a gente; os provérbios, os graves conselhos morais ficavam impenetráveis, apesar dos esforços dos mestres arreliados, dos puxavantes de orelhas e da palmatória. “A preguiça é a chave da pobreza”, afirmava-se ali. Que espécie de chave seria aquela? Aos seis anos, eu e os meus companheiros de infelicidade escolar, quase todos pobres, não conhecíamos a pobreza pelo nome e tínhamos poucas chaves, de gavetas, de armários e de portas. Chave de pobreza para uma criança de seis anos é terrível. (RAMOS, 1986, p. 174)

Desde o início, a adjetivação já denota o caráter da prática escolar, tal como “esses horrores”. No entanto, a esperança de melhora persistia, apesar da defasagem dos instrumentos utilizados no ensino, que tornavam os conteúdos enfadonhos e ininteligíveis.

27 Livro de crônicas de Graciliano, que aborda diversos temas, na época em que trabalhava em jornais no Rio de

Outro ponto a ser destacado diz respeito à conduta violenta adotada pelos mestres, que faziam uso dos “puxavantes de orelhas e da palmatória”. (RAMOS, 1986, p. 174)

Mais uma vez, tal excerto serve para corroborar a presença constante da violência na trajetória percorrida pelo personagem. Nota-se que ela adquire um status bastante curioso, haja vista que aparece, marca e intensifica cada um dos espaços28 em que a criança se encontra. Ou seja, para ela, o mundo constitui-se, fortemente, pela agressividade, pela coação e pela punição. Qualquer espécie de ensino, doméstica, social ou escolar, baseia-se em atitudes desse cunho, como exemplificado no trecho dos Professores. A violência age como condição necessária de êxito na aprendizagem, especialmente nas lições, independentemente de sua natureza, para que surtam os efeitos almejados.

Nesse sentido, cumpre frisar que a recorrência do caráter violento nas lembranças da criança aparece, em grande medida, devido à forte carga emocional envolvida nesse processo de recuperação da realidade, porquanto a emoção, seja ela positiva ou negativa, influencia na rememoração, como destaca Izquierdo (2010, p. 58): “Em parte, a persistência das memórias depende de seu conteúdo emocional. Lembramos por muito tempo de memórias adquiridas com forte emoção29, contudo esquecemos rapidamente as memórias mais triviais.”

Como predito, a ininteligibilidade também se fazia presente, aparecendo no uso do provérbio “A preguiça é a chave da pobreza”, passado para crianças de seis anos, que nesse período e, principalmente, naquele meio, não tinham os componentes essenciais para a compreensão da linguagem abstrata e vivenciavam a pobreza da forma mais prática e objetiva.

A partir do exposto, nota-se que um dos traços mais expressivos de toda a narração diz respeito à incidência da memória coletiva no relato. O personagem, ao materializar a rememoração, colocando-a na escrita, inicia com os verbos “suportávamos” e “inutilizávamos”, mesmo fazendo referência a um acontecimento que integra as suas lembranças. E, logo após toda a descrição do ambiente, afirma: “Aos seis anos, eu e os meus

28 A concepção de espaço adotada nessa perspectiva diz respeito ao conceito de Certeau (2002, p. 202, grifos

originais): “Em suma, o espaço é um lugar praticado.” Nessa perspectiva, é relevante considerar que o contexto presente na narrativa nasce a partir de uma região construída.

29 Nesse sentido, Lowenthal destaca a relevância exercida pela memória afetiva, capaz de suscitar lembranças

com vivacidade: “A memória afetiva de maior intensidade revela um passado tão rico e vívido que nós quase o revivemos [...] Certas recordações intensas parecem trazer o passado não apenas de volta à vida, mas à existência simultânea com o presente [...].” (1998, p. 91)

companheiros de infelicidade escolar, quase todos pobres, não conhecíamos a pobreza pelo nome e tínhamos poucas chaves [...]” (RAMOS, 1986, p. 174)

O narrador relembra o fato, entretanto todo o sentimento, vivenciado pelo grupo, é salientado. Não apenas a dificuldade de aprender manifesta-se nele e em seus colegas, mas também a pobreza material e espiritual, e a “infelicidade escolar” atuam como elementos marcantes dessa vivência grupal. Na percepção de Halbwachs (2006, p. 51), “no primeiro plano da memória de um grupo se destacam as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria dos seus membros e que resultam de sua própria vida ou de suas relações com grupos mais próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato com ele.”

A chave, que ilustra a metáfora, tem pouca relevância para as crianças. Sabe-se que serve para a proteção e resguardo de bens, restringindo o acesso. Diante de toda a miséria em que viviam, a carência de chaves, enfatizada pelo narrador, representa a ausência de objetos de valor e, portanto, a desnecessidade de tê-las. E, no final, ainda frisa a dificuldade de abstrair o sentido de “chave de pobreza”30. Se não estavam presentes no plano concreto, decodificá-las no plano metafórico constitui-se em um desafio insolúvel.

As técnicas pedagógicas e a postura dos Mestres surgem como objeto de uma crônica, em outro livro de Graciliano31:

Odeio o livro infantil. E odeio-o porque sei que a criança o não compreende. Abram uma dessas famosas seletas clássicas que por aí andam espalhadas. Ainda guardo com rancor a lembrança de uma delas, pançuda, tediosa, soporífera, que me obrigaram a deletrar aos nove anos de idade. Li aquilo de cabo a rabo, e no fim só me ficou a desagradável impressão de haver absorvido coisas estafantes, cheirando a mofo, em uma língua desconhecida, falada há quatrocentos anos por gente de outra raça e de um país muito diferente do meu. O que me aconteceu a mim deve ter acontecido aos outros. (RAMOS, 1986, p. 66-67)

O livro infantil provoca ódio e repulsa, já que não atua como suporte de aprendizagem, ao contrário, serve como instrumento desagradável, em razão da dificuldade que a criança possui para entendê-lo. No período em que iniciou a caminhada escolar, o ensino da leitura se fazia por meio de seletas clássicas32, o que provoca a impressão que grande parte delas, como em Infância, não continha estímulos interessantes e convidativos. De acordo com as solicitações dos professores, os alunos realizavam a sua leitura na íntegra. No entanto, ao final, tal sacrifício traduzia-se na absorção de conteúdos cansativos e mofados,

30 Nota-se que a grande maioria dos provérbios utilizados na escola possuíam um cunho metafórico e moralista,

porquanto o papel da educação consistia em transmitir mensagens com lições de moral.

31 RAMOS, Graciliano. Linhas tortas. 13. ed. Rio, São Paulo: Record, 1986. 32

pois as seletas já estavam canonizadas e constituíam-se como um método tradicional, de que não se abria mão.

Além disso, o narrador destaca a questão da língua desconhecida, porque tais manuais apareciam redigidos em um português clássico, o qual, obviamente, apresentava diferenças enormes com a língua dos sertanejos mirins. A gente de outra raça caracteriza-se como uma alusão, provavelmente, ao povo português, já que Os Lusíadas tinha posição garantida na bibliografia obrigatória, talvez a textos literários brasileiros anteriores ao século XX. Dessa maneira, a distância entre a realidade do narrador e aquela apresentada não era apenas linguística, mas cultural, o que abria espaço a um abismo entre o cotidiano nordestino e a visão de mundo veiculada por Camões.

O excerto apresentado anteriormente encontra pontos de contato com um episódio escolar presente em Infância, o qual desenvolve com mais detalhes a aprendizagem da leitura e apresenta as raízes do ódio desenvolvido pela criança:

Foi por esse tempo que me infligiram Camões, no manuscrito. Sim senhor: Camões, em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. Um desses barões era provavelmente o de Macaúbas, o dos passarinhos, da mosca, da teia de aranha, da pontuação. Deus me perdoe. Abominei Camões. (RAMOS, 2006, p. 133)

Inicialmente, o manuscrito trazia uma apresentação que estava longe de ser convidativa para crianças de sete anos, em fase de iniciação escolar, situadas no interior do Nordeste. Em segundo lugar, na composição desse quadro bastante desanimador, deve-se considerar que o meio em que os alunos estavam inseridos era marcado pela pobreza intensa e pela precariedade de recursos, onde a educação caminhava muito lentamente rumo ao progresso.

Em face de tudo, ainda manejavam e compreendiam com dificuldade a própria língua portuguesa. Foram obrigados a ler Camões, com a linguagem do século XVI, denominada “língua estranha” pelo protagonista. O personagem procurou associar as figuras portuguesas com os componentes de sua realidade, no caso, o Barão de Macaúbas33, que fazia parte de um livro com instruções e conceitos preliminares de português. Assim, diante desse quadro, como se poderia exigir que esse tipo de leitura despertasse outro tipo de sensação, que não a abominação? Na opinião de Cristóvão (1977, p. 25):

No capítulo “O Barão de Macaúbas, é essa linguagem-padrão escrita portuguesa

que se critica, por tornar pouco compreensíveis os textos e contribuir para a ambiguidade da mensagem. Efetivamente, o ensinar-se Camões às crianças nordestinas pelo texto dos Lusíadas, além de má pedagogia, era sementeira de equívocos [...]

Como enunciado pelo autor, a linguagem ensinada no contexto escolar sustentava-se, sobremaneira, nas bases portuguesas emergentes do período clássico. A ininteligibilidade dos manuscritos apenas servia para a construção de um caráter ambíguo, o que não poderia ser diferente, tendo em vista que a grande distância existente entre a língua falada no cotidiano e a trabalhada na escola, além das práticas educacionais, atingia dimensões enormes.

Pela observação dos quadros, vê-se que o processo de reconstrução das memórias conduz ao equívoco, já que, por serem aparentemente tidas como inéditas, revestidas de exclusividade, fazem com que o observador acredite que ninguém mais consegue experimentá-las da mesma maneira. Esse elemento atua como o principal agente na composição do ser humano, que, apesar de ser dotado de características singulares, representa um mosaico de caracteres (sentimentos, ideias, opiniões, lembranças) formulados pela coletividade.

Para que seja feita a reconstrução do vivido, Halbwachs (2006) afirma que o testemunho age como uma das fontes mais expressivas no momento da rememoração. Essa questão é reiterada por Ricoeur (2010), que, ao desenvolver a teoria da memória coletiva, considera o depoimento alheio o ponto de interseção entre a lembrança do indivíduo e a de seu grupo. Isso ocorre em virtude da recordação e do reconhecimento, conforme a denominação do autor. Primeiramente o indivíduo recorda-se de algo marcante e, posteriormente, ao encontrar outros que tenham experenciado o mesmo evento, surge o senso de identificação.

O depoimento proveniente do “terceiro”34 atuará como instrumento de corroboração e, outrossim, de complementação de detalhes, não se caracterizando como mera “coleta”, todavia como recepção de dados informativos acerca do passado. De acordo com Ricoeur (2010), as primeiras lembranças nascidas no início dessa travessia são as compartilhadas, emergentes de uma origem comum.

Dessa forma, cabe ressaltar que, para que as memórias assumam a feição coletiva, os lugares designados pelos grupos sociais desempenham grande importância, pois a partir deles pode-se remontar a um acontecimento, a uma experiência ou a um fato marcante vivido em

34 Conforme Halbwachs (2006), os depoimentos que auxiliam na reconstrução da memória podem advir de

conjunto. Pela análise realizada em Infância, observa-se que a casa constitui um dos espaços mais relevantes, juntamente com a escola. Os locais permitem a evocação de uma lembrança, a qual se cristaliza por meio da manutenção de objetos, ideias, monumentos, entre outros, integrantes dos chamados lugares de memória:

As mais notáveis dentre essas lembranças são aquelas de lugares visitados em comum.Elas oferecem a oportunidade privilegiada de se recolocar em pensamento em tal ou tal grupo. Do papel do testemunho dos outros na recordação da lembrança passa-se assim gradativamente aos papéis das lembranças que temos enquanto membros de um grupo; elas exigem de nós um deslocamento de ponto de vista do qual somos eminentemente capazes. Temos, assim, acesso a acontecimentos reconstruídos para nós por outros que não nós. Portanto, é por seu lugar num conjunto que os outros se definem. A sala de aula da escola é, nesse aspecto, um lugar privilegiado de deslocamento de pontos de vista da memória. De modo geral, todo grupo atribui lugares. É desses que se guarda ou se forma memória. (RICOEUR, 2010, p. 131)

As lembranças mencionadas pelo teórico referem-se àquelas compartilhadas, considerando que a individualidade permanece mais no plano da aparência, porque a solidão pouco impera ao se tratar de memória. Esse aspecto vai ao encontro do trabalhado por Halbwachs (2006, p. 30): “Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós.”

Assim, o compartilhamento de vivências se dá, em grande medida, pelos lugares, em razão da permissibilidade de se situar na maneira de pensar e agir de determinado grupo. Com o auxílio concedido pelo testemunho alheio no ato de recordar, capaz de agregar caracteres que permitem estruturar e ilustrar a lembrança no seio coletivo, realiza-se a inserção do