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A performatividade da vestimenta

2. SOBRE OS CORPOS EM PERFORMANCE

2.7 A performatividade da vestimenta

Através das entrevistas foi construído um diálogo com os performadores sobre seus processos criativos, suas escolhas das vestimentas e as interpretações sobre suas práticas. A partir dos dados recolhidos é possível pensar algumas questões acerca da performatividade da vestimenta.

As performances e intervenções urbanas assumem o corpo vestido como um corpo enunciador de discursos que trazem nas roupas expressões dos dispositivos que determinam nossos gestos e pensamentos. Compor ações estéticas com essas vestimentas indica um processo de profanação que se inicia com um vestir-se ou despir-se, como podemos perceber na obra citada do Coletivo Heróis do Cotidiano e na performance de Maria Eugênia Matricardi e Luara Learth.

É possível compreender também que esses gestos de vestir-se e despir-se são transitórios, que na cena contemporânea são induzidos por escolhas que evidenciam a subjetividade do performador, em detrimento da caracterização de um personagem. Como vemos, por exemplo, nas escolhas das vestimentas usadas na performance de Rubiane Maia.

Nota-se que o termo “figurino” surge como uma problemática na cena contemporânea que tem emergido nos estudos sobre esse termo, sugerindo outras nomenclaturas, como percebemos nas falas de Maicyra Leão e Elisabete Finger. No entanto, a pesquisadora Amabilis da Silva (2010) nos traz a possibilidade de reconhecer o figurino como uma materialidade que contribui com a presentificação do corpo em performance, para além da busca pela concretização de uma personagem no corpo de outrem. O figurino não precisa corresponder a essas

personagens, sendo primeiramente um jogo de materialidades entre o corpo e algo vestível.

Também se torna recorrente um movimento de apresentação de corpos vestidos nas ruas, criando performances no espaço público como fazia o artista Flávio de Carvalho e como desfilaram as performadoras do Coletivo Pi. Isto ocorre pela necessidade do encontro entre o transeunte e o performador, para que se investiguem as implicações das percepções de um corpo sobre o outro.

O modo como a vestimenta age sobre os corpos em performances torna-se primordial para a experiência do performador. O artista assume responsabilidades sobre seu próprio corpo vestido ou despido, e assim passa a escolher, criar, costurar ou montar suas próprias vestimentas, utilizando peças de roupas ou outros objetos.

Esses processos de criação e compartilhamentos vêm sendo investigados ao longo da “história da performance”. A pesquisadora Roselee Goldberg, em seu livro “A arte da performance” (2006), cita e descreve algumas criações que utilizaram a vestimenta e as aparências corporais como desencadeadoras da experiência performática, além de obras com montagens elaboradas de figurinos ou que se interessavam por discutir padrões de pensamentos disseminados pela mídia da moda47. Por tentar apresentar um percurso histórico da arte da performance, desde

as vanguardas europeias até o presente, o livro mostra como as imagens do corpo foram sendo experimentadas e discutidas com enfoques distintos.

47 “O artista parisiense Christian Boltanski, usando roupas velhas, apresentou breves encenações de

reminiscências de sua infância numa série de obras, como por exemplo, Minha mãe costurava, em que ele próprio costurava diante de uma pintura intencionalmente infantil da lareira da casa de sua família”. (GOLDBERG, 2006, p. 166). “Depois de um ano de preparativos e de pré-estreias em vários lugares, em Londres, a Pose Band apresentou uma conferência sobre a ‘Pose contemporânea’ (1973) na galeria de arte do Royal College londrino. Proferida por um conferencista estiloso e exageradamente gago, era ilustrada por membros do grupo vestidos de diversas maneiras: com trajes especiais prateados (inflados com um secador de cabelo), com drags exóticas, com capas de chuva com duas fileiras de botões. As ‘poses perfeitas’, que o conferencista discutiu em profundidade, eram demonstradas com o auxílio de ‘moldes de postura’ ou ‘modificadores físicos’ especialmente construídos, bem como por enormes instrumentos de medição que garantiam a exatidão do ângulo de um cotovelo ou de uma inclinação de cabeça”. (GOLDBERG, 2006, p. 167). Outros artistas também fizeram performances centradas em figurinos: em 1974, Vincent Trasov caminhou pelas ruas de Vancouver com o Mr. Peanut, dentro de uma casaca de amendoim, de monóculo, luvas brancas e cartola, fazendo campanha política para a prefeitura; na mesma cidade, o Dr. Brute, também conhecido como Eric Metcalfe, desfilou trajes cujo tecido imitava manchas de leopardo, de sua premiada coleção chamada As propriedades do leopardo (1974); o artista Paul Cotton, de San Francisco, apresentou-se na Documenta de 1972 como um coelhinho cuja genitália cor de rosa saía de um traje de pelúcia; e a artista nova-iorquina Pat Oleszko apareceu num programa de performances intitulado ‘Line Up’, no Museu de Arte Moderna (1976), com seu Coat of

Com essas possibilidades, se constroem estados, aparências e modos múltiplos sobre o corpo; e essas alternativas em constante experimentação e recriação são recuperadas pelas linguagens cênicas, da dança ao teatro e outras.

Em uma busca por si mesmo, o artista contemporâneo se abre a experiências nas quais se depara com os limites de um corpo permeado por relações culturais, sociais, econômicas e políticas. Reconhece-se como matéria mutável que se decompõe e se regenera. O corpo se compõe nos gestos. A performance passa a se interessar pela profanação dos automatismos e pelas possibilidades de transformação.

O indivíduo em suas histórias, memórias e afetos, assim como as dimensões físicas de seu corpo, tornam-se a ocupação dos artistas da performance. Compreendendo seus movimentos cotidianos, o processo criativo discute as relações de poder às quais estamos sujeitos e os saberes que adquirimos e produzimos. O performador ressignifica sua própria realidade nas experiências das ações estéticas.

Diariamente, deparamo-nos com esses dois modos transitórios do corpo (vestido e despido) que também se tornam discursos para a performance. A moda contamina essa linguagem artística, não somente pela forte necessidade da mudança, que torna a percepção estética cada vez mais efêmera, mas também através das materialidades que ela atinge, sendo a vestimenta a de maior impacto na sociedade. Assim, tomando como perspectiva a vestimenta, a performance questiona suas funções, suas possibilidades, suas relações com o corpo, com o sistema da moda e com a organização social.

Os cruzamentos entre arte e vida que permitem que os discursos da realidade vivida sejam estetizados e experienciados, recuperando outras formas de consciência e a percepção por outros sentidos, mobilizam a prática artística contemporânea. Trata-se de um processo que se efetiva por uma intenção e um fazer, ou um discurso e uma estética, ou uma enunciação e um modo. Uma prática- processo que implica investigar o que se quer através de corpos vestidos e despidos.

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