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CAPÍTULO II A ORIGEM E FORMAÇÃO DA FAMÍLIA

2.2. A Perspectiva Africana de Família

Para um contexto africano, os estudos centrados na origem da família tomam como referência as leituras eurocêntricas, sendo que muito pouco é estudado tendo como o ponto de partida o lugar africano. Nessa perspectiva, o que mais se observa são interpretações de cultura e dados africanos por meio de enunciados ocidentais, sem desafiar nem as teorias recebidas, nem os enquadramentos conceituais (ADESINA, 2012). Entretanto, a colonização tardia da África interrompeu um processo que ainda se encontra em curso em pontos focalizados, o que mostra, segundo Adesina (2012), a necessidade de um recuo a períodos anteriores ao colonialismo tardio, que mostra como as influências indo-europeias remodelaram profundamente muitas sociedades africanas.

Adesina (2012) apropria-se de dois estudos realizados por duas acadêmicas africanas para teorizar a matrifocalidade partindo da África, que rompem ideias pré- concebidas da epistemologia na compreensão sociológica das relações de gênero, bem como o próprio significado de gênero. Inicia mostrando que o conceito de matrifocalidade ou família matrifocal é popularmente usado para designar agregados familiares chefiados por mulheres, em que, na maior parte dos casos, ocorre por ausência do pai ou do esposo. Segundo Adesina (2012), Parkim (1977) define a família matrifocal como aquela em que os adultos do sexo masculino se ausentam da casa por longos períodos de tempo por motivos de trabalho ou outras razões, mas, vale lembrar que o primeiro estudioso que teria ligado esta estrutura familiar, apropriada e ligada ao conceito matrifocal, foi Raymond Smith (1996).

Seu ponto de partida para mostrar o que os trabalhos das duas acadêmicas africanas trazem de diferente está centrado no estudo de Smith (1956) sobre os agregados familiares de “classes mais baixas” nas Guianas. Adesina (2012) mostra que, na visão deste autor, nas estruturas matricêntricas, durante os períodos iniciais de

crescimento da criança, a mulher é dependente do esposo num processo de rígida divisão de trabalho: o homem tem uma ação limitada ou nenhuma no desenvolvimento da criança, mas apoia a mulher que se encontra preocupada com a educação dessa mesma criança.

À medida que as crianças crescem... [a] mulher vai sendo gradualmente libertada do trabalho de cuidar delas com maior permanência, e quando as crianças começam a auferir alguns ganhos passam a contribuir para as despesas diárias do agregado familiar. É nesta fase que se começa a notar com maior clareza o padrão subjacente das relações dentro do grupo doméstico; a mulher passa do centro em redor do qual se desenvolvem os laços afetivos, para se tornar agora, em conjunto com os seus filhos, no centro de uma coligação económica e de tomada de decisões. Este crescimento da qualidade ‘matrifocal’ ocorre, quer o esposo-pai esteja presente ou não (ADESINA 2012, p. 197 apud SMITH 1996, p. 42).

Adesina (2012) mostra que Smith percebia um parentesco bilateral das famílias matrifocais, em que a matrifocalidade aparece ligada à divisão de trabalho, seja no nível doméstico ou não, mas que era uma estrutura ligada aos agregados familiares de classes mais baixas, nas quais se exclui a mulher das atividades econômicas extra-domésticas. Nesta lógica, a matrifocalidade diminui na medida em que se desloca para o sentido ascendente dentro das estruturas de classes da sociedade. Portanto, para Adesina (2012), Smith não considera a matrifocalidade um estado da sociedade e tampouco caracteriza os sistemas de parentesco das sociedades. Aparece sim, como resultado de um status econômico baixo e de exclusão jurídica da mulher, manifestando-se sob três domínios: relações domésticas, laços familiares e estratificação social.

Ora, Adesina (2012) procura, então, mostrar um outro ponto de vista da matrifocalidade como conceitos organizadores, com base nos trabalhos das africanas Ifi Amadiume e Oyeronke Oyewumi, nas comunidades de Nnobi (da Nigéria Oriental) e Yorùbá respectivamente. Por meio desses trabalhos, Adesina (2012) conclui que as famílias matrifocais não o são por causa da sua baixa condição econômica, de pobreza, de ausência de homens, da distribuição de tarefas domésticas com base na divisão de gênero ou de exclusão econômica da mulher. Elas assim o são por serem estruturalmente matricêntricas.

De acordo com Adesina (2012), a ideia linear de evolução humana com primazia à família monogâmica e patriarcal não deve ser generalizada para contextos africanos, pois, em muitas sociedades africanas, mais que a patrifocalidade, a norma é a matrifocalidade. Entretanto, a autora considera que não deve ser observado o

matriarcado como um sistema totalitário, e sim como um sistema estrutural em justaposição a outro sistema numa estrutura social. A autora sustenta a posição de que deve-se dar mais atenção aos dados etnográficos, nos quais se revela que a unidade matricêntrica é uma unidade não só de produção autônoma, mas também uma unidade ideológica que gera códigos normais distintos.

É nessa lógica que, segundo Adesina (2012), quando estudava a comunidade Nnobi, Amadiume (1987) mostrou que as dinâmicas desta comunidade têm uma forte inclinação para a dualidade sexual, mas que, ainda assim, a comunidade era predominantemente matricêntrica, desde a sua origem até ao agregado familiar, no modo de organizar da produção econômica até o sistema de governação. Essa dualidade sexual na origem e organização da comunidade mostra que homens e mulheres detêm dos mesmos direitos e prestígio, e do princípio da maternidade compartilhada ainda se verifica:

A instituição de “primeiras filhas” significa que tanto elas como os homens podem ter várias “esposas” (...) as primeiras filhas, mulheres estéreis e viúvas ricas, esposas de homens ricos e mulheres camponesas ou comerciantes bem sucedidas tomam esposas para si, (...) “esposos femininos”. As relações sexuais com o intuito de procriação ocorrem entre a esposa e parentes escolhidos do “esposo feminino”, sendo as crianças daí́ resultantes, reconhecidas como filhos do “esposo feminino” (ADESINA, 2012, p. 200).

Esta é a lógica da comunidade, que mostra um agregado familiar composto por todos componentes gerados dentro de um matrimônio com todas as suas particularidades. Segundo Adesina (2012), os papeis da dualidade sexual na comunidade Nnobi aparece também refletido em termos jurídicos:

(...) as linhagens masculina e feminina desempenham papeis jurídicos distintos. A organização das filhas patrilineares (umu okpu) é formal, abrangendo filhas casadas e solteiras, sendo a liderança baseada na senioridade. A filha mais velha dirige o umu okpu, independentemente do seu estatuto conjugal (ADESINA, 2012, p. 200).

De acordo com Adesina (2012), os dados de Amadiume (1987) sugerem que o que mais entra em questão é a idade e menos a condição de gênero de quem detém o poder. Esse aspecto, voltado ao estatuto de senioridade baseado em relações consanguíneas dentro da matrifocalidade, foi verificado também no trabalho de Oyewumi (1997), junto à comunidade Yorùbá.

Segundo Adesina (2012), Oyewumi mostrou nos seus dados etnográficos que, na comunidade Yorùbá, homens e mulheres não são classificados segundo distinções

anatômicas, tampouco havia a designação mulheres na definição estrita de gênero. Tanto que, observa a autora, Oyewumi (1997) disse que, antes da colonização pelo ocidente, os princípios de gênero não faziam parte dos princípios organizativos da sociedade Yorùbá, pelo que o princípio pautava-se pela senioridade definida pela idade relativa, sendo que as designações “masculino” e “feminino” são de difícil tradução linguística e não carregam consigo privilégios ou desvantagens sociais. Portanto, um superior é assim designado independente da forma do corpo, e a condição de senioridade é relacional e situacional, pois ninguém ocupará para sempre uma posição sênior ou júnior.

Segundo Adesina (2012), na sociedade Yorùbá mostrada por Oyewumi, o princípio da maternidade informa o quadro ideológico da ordem e das relações sociais, nas quais até as mulheres, como educadoras dos filhos, podem adquirir poderes sagrados/mitos. Outro aspecto de relevância tomado em conta por Adesina (2012) é o parentesco uterino definido à volta da maternidade, ainda assim, a autora diz que essas sociedades são melhor compreendidas numa espécie de linhagem dupla.

Para Adesina (2012), Oyewumi mostra em seu trabalho que, fora da esfera doméstica, as atividades econômicas das mulheres são de caráter independente e autônomo, estando estas no domínio dos mercados e do comércio a longa distância, bem como verifica-se a presença de mulheres na esfera da administração pública:

(...) mais uma vez, os dados de Oyewumi sugerem a presença de mulheres na esfera política até ao nível do Alâfin Oyo – o cargo de líder político do Reino de Oyo. Vários funcionários públicos de escalão político mais baixo (Baálè) eram também mulheres. A história política recente dos Ibadan, um segmento dos Yorùbá, sugere que as mulheres ocupavam ativamente o cargo político sênior de Iyálóde. A história do Reino de Oyo mostra a existência de ìlárí ana- femininos e ana- masculinos, funcionários políticos que também desempenhavam as funções de guarda-costas do Alâfin (ADESINA, 2012, p. 202).

Esses trabalhos mostrados por Adesina (2012), além de trazerem ideias direcionadas a uma “(...) mudança epistêmica na nossa compreensão sobre a ideia global de gênero” (ADESINA 2012, p. 202) mostram ainda que, na África, o processo de evolução humana foi interrompido com a colonização, sendo às sociedades impostos princípios e valores tidos como “ideais para a civilização” das comunidades vistas como atrasadas ou o “outro” dentro de um padrão de entendimento voltado para o Ocidente.