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A perversidade do quotidiano – a destruição do núcleo familiar

Capítulo 3 The End of Alice – Temáticas incómodas

3.6. A perversidade do quotidiano – a destruição do núcleo familiar

Os relatos das experiências da universitária, por Chappy, levam o leitor a deambular pelos subúrbios de uma qualquer cidade norte-americana. O acesso ao quotidiano, à vida comum provoca uma sensação de segurança e conforto, pela confrontação com algo que é banal e o qual nós conhecemos perfeitamente. Através das palavras de Chappy, o leitor tem acesso à vida quase banal da jovem universitária: o seu dia a dia, as suas rotinas, a sua vida familiar, a vida familiar de Matt, a aparente simples vivência, no seio de qualquer bairro.

Esta não é uma experiência alheia à ficção gótica. Uma das grandes provocações da ficção gótica é o facto de levar o leitor a descobrir a violência em espaços que aparentemente transmitiriam mais tranquilidade e segurança. É na segurança dos nossos lares e por de trás da tranquilidade de rostos familiares que se encontram as verdadeiras razões para se temer algo. Contos como The Black Cat (1843) de Edgar Allen Poe ou A

Rose for Emily (1931) de William Faulkner demonstram atos de perversidade e até de

violência gratuita, por detrás das portas de qualquer casa de qualquer comunidade próxima de nós.

The sense of a grotesque, irrational and menacing presence pervading the everyday, and causing its decomposition, emerges in the Gothic fiction produced, predominately, in the Southern states of America. Centred on houses in the tradition established by Poe, in

96 the «The Fall of the House of Usher», the disintegration of the normal and familiar in Southern Gothic signals the decay of family and culture. (Botting 1996:160-161)

Esta presença ameaçadora, que Botting refere em Gothic, ilustra um outro aspeto amplamente desenvolvido na ficção Gótica Norte-Americana: a lenta degradação do núcleo familiar. Já foi referido anteriormente, neste trabalho, em relação à questão da figura da mulher, da sexualidade e do incesto, que o verdadeiro perigo vinha do interior da família, quando a jovem mulher se torna objeto de desejo dos elementos masculinos da sua própria família. Tal quebra a certeza quer dos laços familiares, quer dos papéis desempenhados por cada um, no interior da família. A noção de família, presente na ficção gótica, é constantemente distorcida, de história para história, revelando igualmente uma lenta metamorfose dos valores familiares tradicionais.

Em The End of Alice assiste-se igualmente à degradação destes valores familiares, à medida que os segredos obscuros vão sendo revelados. O facto de a jovem universitária, uma rapariga aparentemente normal, com uma vida banal, procurar uma aventura sexual com um rapaz, uma criança, expondo-o ao sexo e a jogos sexuais, acentua simbolicamente a perda da inocência; Também os relatos dos encontros de carácter sexual, entre Chappy e a sua mãe, reforçam igualmente esta ideia de destruição da noção de família. Mas estes factos são revelados, desde o início, através de claros indícios, ao longo da obra. Nessa altura inicial da narrativa o leitor já se encontra suficientemente chocado, mas compreende que tais acontecimentos determinam a personalidade e o comportamento de Chappy e da rapariga universitária. No entanto, a descoberta do pai de Matt, no seu quarto deste, deixa o leitor novamente num estado de total incerteza uma vez que as descrições anteriores deste homem apontam para uma figura autoritária e agressiva, com demonstrações quase inexistentes de carinho e atenção para com o filho e a mulher. Acrescentar o pai de Matt a este grupo de personagens com comportamentos sexualmente desviantes (a rapariga universitária e Chappy) intensifica ainda mais a noção da família instável e dos segredos que se podem esconder no seio da família. É no recanto mais íntimo do espaço familiar (o quarto do filho) que o pai de Matt permite a si próprio, expor os seus desejos mais obscuros. Mais uma vez, fica claro que em The End of Alice, o verdadeiro perigo surge no interior da família e não do exterior e que a partir daí tudo se trata de um jogo de ilusões que

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Fiction – An Introduction, ao analisar as temáticas recorrentes da ficção Gótica Norte- Americana.

(…) domestic Gothic is intimately bound up with the idea of the house, gender, and the family, which becomes, through metaphor, a way of externalizing the inner life of fictional characters. As Gothic developed through the nineteenth century it increasingly came inside, following and fulfilling the direction that Poe had pointed to in his tales of deranged narrators and their houses as embodiments of their psyches. (Allan Lloyd- Smith 2004:102-103)

Este jogo de aparências e ilusões representa o “fim” da família, tal como foi tradicionalmente difundido. Esta questão é compreensível, tendo em conta que a família será, provavelmente, uma das estruturas sociais que sofreu mais alterações, ao longo dos séculos, com a lenta modificação dos papéis sociais de cada um dos seus elementos, revelando-se, por vezes, a sua respetiva disfuncionalidade, tal como refere Margot Gayle Backus em The Gothic Family Romance.

Family strictures during the early modern period were subject to pressures that eventually disrupted kinship systems: the attenuation of bonds beyond the biological family, a concomitant tightening of affective bonds within family, and the concentration of responsibility for maintenance of incest taboo in the hands of individual fathers. (…) Within the privacy of the nuclear family, the sexual appropriation of female family members no longer imperiled the process of circulation that the incest taboo once ensured. This is especially true because the larger kinship system, made up of multiples kinships groups, was itself breaking down. Just as men no longer acted as checks on the sexual impulses of other men within families or groups, newly atomized families no longer felt a compelling stake in the sexual conduct of other families. (Backus 1999: 43)

O que se assiste na ficção gótica são retratos perturbadores de famílias disfuncionais, de núcleos familiares cujos laços são difusos e preocupantes. Chappy, a sua mãe e a sua avó acabam por formar um núcleo familiar que se pode encaixar perfeitamente na experiência gótica, colocando-a a par de qualquer família criada por William Faulkner, ou até do pequeno núcleo familiar de Psycho (1959), de Robert Bloch. A dissolução dos valores familiares permite vislumbrar o que há de mais horrendo e grotesco, no seio de uma família e os segredos que esta esconde. Os anos de abusos e restrições que a mãe infligiu a Norman Bates não são menos significativos do

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que o impacto que a mãe de Chappy, com atos incestuosos, provocou na vida do seu filho e no desenvolvimento da sua personalidade.

A diminuição do número de membros da família permitiu assim que estes se aproximassem uns dos outros, tornando-se parceiros ideais no encobrimento de impulsos e desejos sexuais. A ficção gótica acaba por utilizar todas estas transformações a seu favor prazer, tornando a família contemporânea numa das suas temáticas mais significativas. A estrutura familiar, apelando àquilo que é estranho, evoca o conceito freudiano de Das Unheimliche pois transforma a família num mundo simultaneamente familiar e estranho onde se vivem experiências secretas e proibidas. Desta forma, é no seio da família que se encontram grandes perigos, aliados a grandes segredos. Simbolicamente, a pintura de Grant Wood, American Gothic de 1930, surge à nossa mente quando se reflete acerca da estrutura familiar e das formas que esta assumiu e continua a assumir na ficção gótica. Esta obra é, sem dúvida, uma das melhores representações pictóricas que denuncia a estranheza e ambivalência presente na representação tradicional de família. As personagens deste quadro célebre demonstram uma aparente tranquilidade, mas o que se encontrará por detrás daquelas portas? Que segredos se encontram por detrás daquelas janelas? Aquelas duas personagens, de rostos fechados e carregados, bem poderiam ser os pais de Matt. Aquela figura austera masculina poderia tratar-se do pai de Matt que, ao mesmo tempo que mantem uma postura autoritária, alimenta um desejo imenso pelo seu próprio filho ou por rapazes. Ao seu lado estaria a mãe, de rosto inquietantemente cerrado, a contemplar o seu marido, desconhecendo os desejos sexuais obscuros ou simplesmente fingindo que desconhece. Aquelas duas figuras poderiam ser igualmente os pais de Chappy: uma rude figura masculina que mantem sob controlo os impulsos promíscuos da mulher. Ao seu lado estaria a mãe de Chappy, figura triste e resguardada, na sua aparência, que esconde os desejos sexuais. Tudo isto a partir da pura especulação do inquietante retrato de família de American Gothic. Mas essa é igualmente a questão que a ficção gótica contemporânea coloca atualmente. Se a noção tradicional da família se transformou radicalmente e se é no seio da própria família que residem tanto segredos e tantos perigos, como seria o verdadeiro retrato de “família”? Ou já não é possível fazê-lo? Ou simplesmente continuamos a admirar o American Gothic que permite-nos, na sua infinita possibilidade de especulação, retratar a noção de família que transparece na ficção gótica contemporânea?

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