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Centralidade do pensamento musical no cinema de Straub-Huillet

3. Serialismo, Cinema, Straub-Huillet

3.5. A pesquisa do ponto estratégico ao longo dos filmes

" Figura 7: Planos realizados a partir do mesmo ponto estratégico em Relações de Classe (1984)

Segundo Turquety, foi em Relações de Classe (1984) que Straub-Huillet teriam começado a desenvolver essa metodologia de trabalho com o ponto estratégico de modo mais "sistemático", embora o autor reconheça que ela já estivesse presente também em Crônica de Anna Magdalena Bach (1967), filme no qual a busca por um ponto justo de colocação da câmera já vinha sendo feita. No Bachfilm, houve a necessidade de se filmar a música ser executada com planos fixos, nos restritos

espaços acústicos. Em vários momentos, ao invés do uso do zoom a partir do mesmo

ponto estratégico, os cineastas utilizam a variação por meio de movimentos de câmera, principalmente do travelling frontal de aproximação ou afastamento das cenas (figuras 8-11).

" Figuras 8 e 9: Crônica de Anna Magdalena Bach – travelling de afastamento

" Figuras 10 e 11: Crônica de Anna Magdalena Bach – travelling de aproximação

Em Lições de História (1972), é possível observar também uma experimentação interessante com relação ao posicionamento da câmera diante do personagem que fala. No primeiro diálogo após o travelling de carro, a câmera circunda o personagem construindo uma série de planos fixos ao seu redor, a cada vez com uma pequena variação de ângulo, funcionando como uma espécie de antítese do

ponto estratégico. Os personagens se mantêm parados e a câmera faz um movimento de translação ao redor deles.

" Figura 12: Lições de História – translação da câmera para criar série de planos fixos

Em Moisés e Aarão (1974), dez anos antes de Relações de Classe, já há um rico trabalho com o ponto estratégico, principalmente por meio do uso das panorâmicas, embora os cineastas também desenvolvam, com bastante liberdade, uma ampla pesquisa das variações do posicionamento de câmera (do alto, de baixo, de perto, de longe, diferentes tipos de travelling, etc.), pesquisa esta que acabou perdendo força ao longo da filmografia do casal. Aqui é possível observar um grande esforço da decupagem fílmica em se aproximar de uma lógica serial, segundo a qual os planos sofrem variações e espelhamentos que podemos relacionar com os princípios de variação na composição de Schoenberg (fig. 13). Autores como Barton Byg, Martin Walsh e até mesmo Michael Gielen (o regente da ópera), também sugeriram essa aproximação em análises do filme e artigos. Há momentos em que os diferentes personagens ou grupos de personagens são posicionados no espaço e a câmera os filma do mesmo ponto estratégico, variando apenas o eixo, por meio das panorâmicas. Diferente de Relações de Classe, há aqui o uso recorrente do movimento de câmera que conecta os diferentes eixos de filmagem (fig. 15), e há também uma ampla variação do posicionamento da câmera pelo espaço, o que está interditado no outro filme. Há um momento em que a câmera realiza um travelling contínuo de translação em 180 graus ao redor de Moisés e Aarão, indo e voltando,

produzindo um espelhamento da imagem dos irmãos (fig. 14), de modo similar ao que foi feito com planos fixos em Lições de História.

" Figura 13: Moisés e Aarão – espelhamentos

" Figura 14: Moisés e Aarão – translação da câmera em travelling contínuo

Figura 15: Moisés e Aarão – ponto estratégico – 03 planos conectados por panorâmicas

Em Toda revolução é um lance de dados (1977), curta-metragem feito a partir do poema de Mallarmé, o trabalho serial se torna muito evidente (fig. 16). O próprio Straub cita esse filme como um exemplo do processo de construção do ponto estratégico, como veremos. No curta, Straub-Huillet decuparam o poema de Mallarmé segundo as suas diferenças tipográficas. Sabemos da importância desse poema como um dos precursores da poesia moderna, especialmente por seu caráter polifônico (várias vozes simultâneas, cada voz apresenta uma tipografia própria), por sua relação com o espaço em branco do papel, pela liberdade de leitura oferecida ao leitor e pela exploração de uma sonoridade musical das palavras na construção do poema. Em seguida, os cineastas classificaram as variações tipográficas das vozes e atribuíram a cada variação tipográfica um personagem diferente, que é sempre filmado da mesma maneira, do mesmo ponto estratégico. O filme salta de personagem em personagem, criando estranhos pulos entre os planos. Os cortes são bruscos e se guiam exclusivamente em função das vozes. Nenhuma outra lógica de continuidade é utilizada. O filme tem um caráter de experimento. Sob os pés dos personagens que recitam o texto de Mallarmé, estão enterrados os revolucionários mortos da Comuna de Paris, o que produz mais uma camada política sobre o texto. Retornaremos ao filme na análise que dedicamos a ele.

" Figura 16: Toda Revolução é um lance de dados

Em Da nuvem à resistência (1978), filmagem dos Diálogos de Leucó, de Cesare Pavese, também é possível observar o uso do ponto estratégico nos reenquadramentos feitos a partir do mesmo ponto sobre os personagens que dialogam, especialmente na primeira metade do filme (fig. 17). Vemos as variações

descontínuas da profundidade de campo nos planos fechados, com o fundo mais ou

menos desfocado, como elemento resultante das permutações geradas pelo uso do ponto estratégico.

" Figura 17: Da Nuvem à Resistência

Em geral, o uso do ponto estratégico parece sofrer variações de acordo com aquilo que é filmado. O corpo dos personagens, por exemplo, parece ser submetido de forma mais recorrente a variações de enquadramento, com a troca das lentes e os saltos entre os planos. De outro lado, quando a paisagem ocupa o centro da atenção dos cineastas, também há um trabalho de busca por um ponto justo de colocação da câmera. No entanto, nesse caso, privilegia-se o uso da variação por movimento de câmera, especialmente com as amplas panorâmicas sobre o espaço. Isso pode ser observado de modo contundente em Cedo demais/tarde demais, por exemplo (fig. 18).

" Figura 18: Cedo demais/tarde demais – panorâmicas

Como afirmou Turquety, em Relações de Classe (1984), o ponto estratégico é utilizado de modo bastante metódico e consciente, como no diálogo entre Karl Rossman e os vários personagens no interior do navio. Primeiro define-se o lugar de cada personagem no espaço a partir da construção do ponto estratégico de colocação da câmera e das suas variações para a construção dos "planos base". Uma vez definidos esses planos base, o espaço é recortado e fragmentado em séries de reenquadramentos feitos a partir da variação das lentes e da altura da câmera. Cada

plano-base desmembra-se em uma série de variações, obtendo-se, assim, inúmeros

planos diferentes. Os planos vão sendo montados uns com os outros e constroem uma espacialidade lacunar, fragmentada. Ao mesmo tempo, as pequenas variações dos planos, bem como as variações do gestual e da voz dos personagens, acabam por dar dinamismo à sequência, mesmo que o espaço seja estático e extremamente restrito, como veremos na análise detalhada do filme.

" Figura 19: A morte de Empédocles

No filme feito a partir da obra de Hölderlin, A morte de Empédocles ou

Quando a terra voltar a brilhar verde para ti (1986, 132'), o uso do ponto estratégico

atinge um alto nível de sofisticação (fig. 19). Straub comenta, de modo detalhado no texto Concepção de um filme, o processo de desenvolvimento da decupagem, discutindo as estratégias adotadas para a composição da imagem. Trata-se de dois grupos de personagens, um com cinco e outro com dois integrantes. Os dois grupos se opõem, gerando um antagonismo. Assim, a pesquisa de estratégias de composição se deu pela constituição de séries conjugadas de planos, mantendo-se a câmera sempre no mesmo ponto de vista, modificando-se apenas a lente e a direção para a qual era apontada. Desse modo, pode-se abarcar treze tipos diferentes de planos capazes de representar, em séries, todas as combinações possíveis entre os dois grupos de personagens.

Temos treze planos do mesmo ponto de vista. Aqui a coisa se torna interessante, porque, se um plano como esse dos cinco retorna apenas duas vezes, ainda assim isso já faz uma série. Se há alguns, lá, entre Crítias e Empédocles, que retornam talvez dez vezes, isso faz uma outra série, mais robusta. Se o plano dos três retorna quatro vezes, ou três, eu já não me lembro, é igualmente uma outra série, um pouco mais restrita, mas ainda assim uma série. Se o plano dos dois retorna três vezes, é igualmente uma outra série, etc. Então isso faz séries."166

Podemos afirmar que um dos objetivos desta pesquisa é compreender como a obra de Straub-Huillet, em diferentes dimensões, faz séries, e as consequências desse procedimento. Aqui podemos observar que o princípio de composição da decupagem não é definido estritamente em função da narrativa, mas se estabelece a partir de regras de composição visual do espaço na relação com os personagens (sua disposição milimetricamente calculada, a direção e a amplitude dos olhares coerente com o lugar da câmera e com o modo de agrupar os atores). Dessa forma, uma vez estabelecidos os lugares dos personagens, a direção e a amplitude dos olhares e as distâncias precisas entre eles, define-se o ponto estratégico de colocação da câmera a partir do qual todo o espaço pode ser abarcado sem o deslocamento da câmera. Daí se inicia um trabalho de construção das variações, seja por meio da mudança das lentes, da mudança da altura da câmera, ou mesmo, pelo movimento de câmera sobre o próprio eixo em panorâmica, formando assim, séries de planos.

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166 STRAUB, J.M., HUILLET, D. “Concepção de um filme”. In: STRAUB-HUILLET. Straub-Huillet.

O resultado, na montagem, pode às vezes gerar estranhamentos, já que vemos saltos do enquadramento no mesmo eixo, cortes abruptos que não privilegiam a continuidade, mas, ao contrário, estabelecem-se a partir de rupturas. Vemos também diferenças fortes na profundidade de campo e na própria forma da imagem em função das mudanças das lentes, fazendo com que o fundo apareça mais ou menos desfocado na passagem de um plano a outro, sem motivo aparente. Também o corte sonoro pode apresentar estranhezas, como variações da ambiência de um plano a outro.

Podemos acompanhar nos escritos dos cineastas a descrição de um incansável trabalho de busca desse ponto justo de colocação da câmera. A esse respeito, Danièle Huillet comenta sobre os diários de filmagem de Moisés e Aarão, nos quais ela descreve a construção das regras de composição do plano e a relação com o espaço filmado:

O plano 19 e o plano 22 são aqueles que estabelecem as regras do jogo, aqueles dos quais se desdobrAarão todos os outros planos de enquadramento do primeiro ato: daí a necessidade de fixar o lugar dos protagonistas (...) exatamente: em relação ao centro da elipse, cada grupo em relação ao outro e cada solista em relação aos seus ou seu vizinho (...). Enfim, era preciso encontrar as alturas justas para os diferentes enquadramentos sobre o coro, e imaginar as variantes no mesmo eixo (...)167.

Assim, a composição visual é pensada a partir da construção de regras muito bem definidas para a abordagem do espaço, "como num jogo de xadrez", como afirma Huillet. Define-se um ponto estratégico que permite diferentes enquadramentos (com suas alturas justas) e diferentes variantes. Ao analisar a composição visual de alguns planos de Moisés e Aarão, Martin Walsh reforça essa ideia: "Descritas dessa maneira, as sequências podem parecer de um formalismo estéril, mas, vendo o filme, não são: o que está acontecendo aqui (e isso é apenas um exemplo) é algo próximo à própria noção de Schoenberg do 'desenvolvimento de variações'".168

A decupagem de Moisés e Aarão parece ser feita juntamente com um processo de análise da partitura, tanto em sua dimensão musical quanto textual, que """"""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""

167 HUILLET, D., WOODS, G. Diário de filmagem de Moisés e Aarão. In: STRAUB-HUILLET.

Straub-Huillet. Organização de Ernesto Gougain et al. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil,

2012, p. 132 (grifos nossos).

168 WALSH, Martin. Moses and Aaron: Straub-Huillet's Schoenberg. Jump Cut, nº 12/13, 1976, pp.

57-61 (trad. nossa), disponível em: http://www.ejumpcut.org/archive/onlinessays/jc12- 13folder/moses.walsh.html#15 – Acesso em 04/05/2013.

guia de modo bastante sistemático e minucioso todo o trabalho de estruturação do filme. Nesse sentido, o regente da ópera, Michael Gielen, apresenta uma leitura esclarecedora sobre as relações entre o cinema e a música que discutimos:

Os cortes, a montagem do filme – suas imagens – correspondem rigorosamente à estrutura musical. Isso é algo que os críticos musicais alemães atuais, infelizmente, se omitiram de ver (e de escutar). O conhecimento que os Straub têm da partitura é perfeito, eles têm uma escuta infalível, eles conhecem a partitura de cor e salteado, e não apenas o texto, mas também os ritmos e as notas. (...) Eu sou, por exemplo, da opinião de que a análise geométrica do primeiro ato – o segundo ato é construído ao inverso – e o modo de deslocamento e movimentação da câmera se aproximam muito, em seu construtivismo, da escrita da partitura. No primeiro ato, creio, não há nada a mexer. Eu o julgo magistral. (...) [Straub-Huillet] possuem uma ideia de forma, uma ideia de obra de arte que é análoga à de Schoenberg, mas não é a mesma.169

Podemos afirmar, com Gielen, que há em Straub-Huillet "uma ideia de forma, uma ideia de obra de arte que é análoga à de Schoenberg", mas sem ser a mesma? Será que a analogia seria a melhor figura para descrever o ato de criação dos cineastas na relação com a música? Discutiremos a seguir algumas formas de compreender o encontro entre o cinema de Straub-Huillet e suas referências artísticas.

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169 GIELEN, Michael. “Questions à Michael Gielen”. In: HUILLET, SCHOENBERG, STRAUB,

3.6. Formas do encontro entre o cinema de Straub-Huillet