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A pintura de dona Cândida

No documento Cassiano Nunes : poesia arte (páginas 73-83)

Graças a sua significação antropológica e cultural, a pintura naif brasileira marca

presença em conceituados museus.

Na década de 1940, os escritores de São Paulo filiados à ABDE (Associação Brasileira de Escritores) organizavam ca- ravanas e iam às cidades do interior do Estado de São Paulo levar o estímulo ao interesse pelo saber. Criavam centros cultu- rais, incentivavam os escritores locais, sugeriam melhorias para incrementar a cultura, entre outras atividades locais. Em uma dessas excursões, Lourival Gomes Machado, crítico de artes plásticas, descobriu um pintor de especial talento. Porteiro de modesto hotel, antes camponês e trabalhador em cafezais, José Antônio da Silva não tardou a ganhar renome internacional

O meu conhecimento da pintura de d. Cândida Xavier Costa, que assina os seus quadros como Cândida X. da Costa, fez-me pensar, de certo modo, em José Antônio da Silva, cujo museu especial em São José do Rio Preto me encheu de admira- ção. D. Cândida nasceu em Niquelândia (antiga São José do

Tocantins) e foi criada em Uruaçu. Perfeitamente goiana. Há 31 anos mora em Brasília e há 26 toma conta da casa e do ate- liê de Athos Bulcão, o artista consagrado que muito colaborou para o embelezamento de Brasília.

O convívio laborioso e diário com Athos levou d. Cândi- da a interessar-se pela pintura. Escondida, fez algumas másca- ras femininas quando mestre Bulcão realizava suas máscaras masculinas. Athos as viu, divertido com a descoberta. Daí em diante, d. Cândida começou a pintar seus quadros, e Athos Bulcão deu-lhe seu apoio. Duas exposições já a revelaram ao público de artes plásticas do Distrito Federal. Fui ver agora os quadros que compõem sua terceira Exposição.

Admirei, na artista, principalmente, a criação da cla- ridade. E notável sua preferência pelas cores claras, que nos dão uma impressão de pureza e singeleza. Boa parte de seus quadros fez-me pensar no verso de Hermes Fontes, que nos diz: "a poesia é uma segunda infância ". Infância e poesia são real- mente os pensamentos que brotam em nós ao vermos os quadros de d. Cândida. A tendência religiosa predomina na coleção de pintura. Os temas bíblicos são os que mais se mostram. Os

relatos bíblicos feitos com simplicidade pela mãe da pintora

- adventista - à filhinha sensível deixaram sua marca.

"O cântico de Moisés", além do "Mar", que apresenta uma solução geométrica instigante, e "O bebé Moisés salvo das águas" baseiam-se naturalmente no texto bíblico.

O temático cristão também está presente em "Jesus e os discípulos colhendo espigas" - o mais formoso desta linha -, uma sensível melodia em tons brandos de amarelo; e mais ain- da em "A anunciação ", "A ascensão " e " O encontro de Zaqueu com Jesus".

A série do "Apocalipse" apresenta um tom dramático, mas, com tão feliz criatividade, que não desfaz o triunfo da serenidade. Serenidade que aparece bem na pintura de flores: três quadros sobre lírios e três sobre tulipas.

E, neste ponto, vou finalizando essas impressões de poeta (não de crítico de artes plásticas, que não sou), mas de poeta que se sente muito afim com as artes plásticas, especialmente com a pintura. Por este motivo, já escrevi poemas sobre Braque, Bonnard, Brancusi, Vicente do Rego Monteiro (querido amigo) e José Antônio da Silva, o excelso naif da mesma corrente de Cândida X. Costa. Corrente a qual se sobrepõem o natural, o espontâneo e o individual.

Um quadro como o "David pastor e suas ovelhas", de d. Cândida, revela-nos a presença da poesia na pintura.16

16 Texto de 1999. A exposição Cândida Xavier Costa realizou-se na Galeria Parangolé, em Bra-

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O primeiro dessa série de ensaios, não pela data mas por ser o mais recente, é sobre a pintura de Cândida Xavier da Costa, que, aliás, não é uma artista iniciante nas artes plásticas. Como go- vernanta do professor Athos Bulcão, artista e intelectual brasileiro internacionalmente conhecido e respeitado, ela fez um excelente aprendizado nas artes, realizando importante obra pintural, apre- sentada em exposições coletivas e individuais. Dona Cândida é uma pintora primitiva de reconhecido valor. Com sua pintura, de mar- cante religiosidade e ingênua simplicidade, Cândida Xavier é co- nhecida no Brasil e no exterior, com posição de destaque no Museu Internacional de Art Naïfde São Paulo e no Rio de Janeiro.

Nossa análise e nossos comentários não são porém sobre seus belos quadros de motivos simbólicos, em azul e branco, de figuras emblemáticas que muito me emocionaram. Referimo-nos ao ensaio do poeta Cassiano, no qual a obra da artista goiana se revela com beleza e autenticidade próprias de art naïf.

No convite para a abertura da exposição Cândida Xavier da

Costa, ocorrida de 4 a 29 de agosto de 1999, em Brasília, Cassiano

Nunes escreveu:

Na década de 40, os escritores de São Paulo filiados à ABDE (As- sociação Brasileira de Escritores) organizavam caravanas e iam às cidades do interior do Estado de São Paulo levar o estímulo ao interesse pelo saber. Criavam centros culturais, incentivavam os escritores locais, sugeriam melhorias para incrementar a cultura, entre outras atividades locais. Numa dessas excursões, Lourival Gomes Machado, crítico de artes plásticas, descobriu um pintor de especial talento. Porteiro de modesto hotel, antes camponês e trabalhador em cafezais, José Antônio da Silva não tardou a ganhar renome internacional. O meu conhecimento da pintura de d. Cândida Xavier Costa, que assina os seus quadros como Cândida X. da Costa fez-me pensar, de certo modo, em José An- tónio da Silva, cujo museu especial em São José do Rio Preto me encheu de admiração.

A longa citação expressa dois pontos importantes. Primeira- mente, revela que o escritor e professor Cassiano Nunes não é um neófito da crítica de pintura. Parece-me que ele se apresenta de ime- diato com saber e conhecimento para exercer seu métier de crítico. Conhece pintura e museus, o que lhe permite estabelecer as analo- gias características desse tipo de estudo, que é, na verdade, um es- tudo comparativo das obras de arte, forma certamente adequada e segura de abordar os processos criativos da arte pictórica e os estilos artísticos, individual e coletivo, estabelecendo escolas, como ainda se dizia. Convém observar, também, nessa citação, algo inerente ao pensar de Cassiano Nunes, intelectual e cidadão, acerca da ação ci- vilizadora das "caravanas" que se deslocam aos espaços interioranos e mesmo periféricos das grandes metrópoles para levar "o estímulo ao interesse pelo saber". Quem convive com Cassiano no dia-a-dia conhece seu bandeirantismo cultural, ação de inegável eficiência contra a violência, segundo seu pensamento.

O segundo ponto a observar concerne à terminologia empre- gada na análise de cada obra e na apresentação de cada pintor, com uma interpretação dos valores intrínsecos da tela, sem repetições mi- nimizadoras. Acrescente-se a todas essas observações o fato de que o poeta em pele de crítico de artes plásticas afina sua linguagem en- saística sempre com a literatura, principalmente com a poesia, como vemos na citação:

Boa parte de seus quadros fez-me pensar nos versos de Hermes Fontes, que nos diz: "a poesia é uma segunda infância". Infância e poesia são realmente os pensamentos que brotam em nós ao ver- mos os quadros de d. Cândida.

Isso revela algo da criação poética em Cassiano. Ela capta as sensações da arte e transmite-as, em uma filtragem por meio da sensibilidade. Identificação? Certamente uma cumplicidade do poeta com o artista, em uma comprovada predisposição para cap- tar a poesia das coisas, com sensibilidade aguçada do poético e o

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dom de expressar o inexprimível, isto é, o invisível ao olhar comum faz de Cassiano Nunes um privilegiado crítico, quer seja das artes em geral, quer seja especificamente da pintura ou do desenho, ex- pressivo nesses ensaios. Portanto, ninguém melhor para descobrir poesia na obra de arte do que um sensível poeta.

E neste ponto vou finalizando estas impressões de poeta (não de crítico de artes plásticas, que não sou), mas de poeta que se sente muito afim com as artes plásticas, especialmente com a pintura. Sua afirmação derradeira do ensaio legitima, de certa maneira, os estudos que venho realizando sobre o tema das afinidades entre a poesia e as artes plásticas com natural sustentação no que afirma o poeta. "Um quadro, como o David pastor e suas ovelhas, de d. Cândi- da, revela-nos a presença da poesia na pintura".

"Parece-tne encontrar nos quadros dessa exposição, o artista na claridade do seu ser"

Cassiano Nunes Já completei vinte anos de residência em Brasília, para onde vim depois de uma estada de três anos em Nova York, e só há pouco, nesta cidade pioneira e moderna, fiz amizade com Athos Bulcão.

Mais de uma vez fui retardatário na vida. Os poucos que conhecem minha poesia sabem quantas vezes mostrei-me retardatário na existência. Precoce e retardatário, a minha per- manente contradição. A minha precocidade nunca me impediu o retardamento, a tardia chegada alta-noite, ao palácio, em que a festa já tinha acabado... Mas há uma compensação para essa perda-, a fruição é mais fina, o saborear é mais crítico, a degustação é mais sábia, mais exigente.

Assim encontrei Athos Bulcão, ou melhor, reencontrei, porque seu nome e sua arte, há muito, eram conhecidos por mim. Deparei com seus trabalhos em época já distante, nas páginas do excelente suplemento literário "Letras & Artes", do jornal A Manhã, que, se não erro, teve como orientadores de suas páginas literárias Ribeiro Couto, Múcio Leão, Jorge La- cerda, e, por último, Almeida Fischer, que foi um dos primeiros a criar suplementos literários em Brasília.

Confirmo as palavras de Elder Rocha, publicadas no

Jornal de Brasília, quando dizia:

Conhecer uma pessoa como Athos Bulcão é uma rara oportu- nidade. É a oportunidade de conviver com uma personalidade que elegeu o caminho da Beleza, que escolheu o bom gosto como norma, que adotou a Arte como conduta de vida e que, no fazer artístico, se realiza e se conduz como ser humano.

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Muito bem dito, muito bem escrito. E suficiente um co- nhecimento leve e breve com o artista, de que falamos, para, de maneira imediata, captarmos o seu estilo de vida, ou melhor, de seu modo de ser. Em suma, um homem que dedicou toda a sua vida à arte e seu artesanato, que consagrou sua existência inteira ao culto à beleza. Ação e contemplação.

A biografia de Athos Bulcão é o mero registro de suas atividades de artista - as mais altas e honrosas, no convívio natural, igualitário, com os grandes artistas que não se limi- tam a Niemeyer e Portinari. Tratamos de um desenhista, pin- tor, artista apaixonadamente devotado à criação da arte como integração arquitetônica-, professor, cenógrafo (tendo vivido a grande fase aurorai de Os Comediantes!), ilustrador... A sua garra é principalmente visível no cenário urbano de Brasília, onde, em numerosos lugares, deparamos com sua presença cria- tiva, concreta, causando impacto. Bulcão traz, para o instan- te primevo da grande aventura pioneira, o destilado sumo, o delicioso mel, que constitui conquista dos milénios, com suas lutas, ascensão, triunfos do homo sapiens. Ninguém mais ad- verso às audácias dos apedeutas, às ignorâncias iluminadas, às irresponsabilidades "artísticas", assim mesmo com aspas. O artista carioca, carioca e pioneiro, o que quer dizer também bandeirante, não separa sua sensibilidade do seu senso. Sense

and sensibility, como essa artista imortal Jane Austen. Arte,

para Bulcão, é também sabedoria. E pode haver acaso arte que não seja sabedoria! A sabedoria não impede a invenção. Ao contrário, exige-a.

Essa exposição que Athos Bulcão realiza, e na compa- nhia de outro artista de alto valor e também pioneiro de Brasília (porque o pioneirismo é antes de tudo um estado de espírito), a recalcitrância ao formal, ao artificial, ao burocrático, desvela de maneira imediata, relampejante, em formas de vivas, espiri- tuais e materiais, tudo o que aqui foi dito nas digressões lentas, espessas, da prosa.

Os quadros de Athos Bulcão dispõem de uma outra lin- guagem, mais viva, direta, reveladora. O artista conta com sua intuição, a idealidade, de que falava Croce, e, portanto, põe seu interlocutor (o espectador) imediatamente no aberto, aquele es- paço de liberdade e iluminação no qual o racional e as palavras se tornam desnecessárias.

Parece-me encontrar, nos quadros dessa exposição, o ar- tista na claridade do seu ser: na alegria de estar-no-mundo (alegria que não dispensa a dor), no convívio extático com as coisas, com os elementos da Natureza. O ofício humano parece- me o tema fundamental do pintor. A alegria do trabalho - ale- gria lúdica, como bem o demonstrou Huizinga. Homo sapiens, artesão, poeta do Mistério, pastor do Ser, toda essa sucessão de máscaras do Humano (o artista como ator da Verdade! — Emerson), descubro na variedade dos trabalhos de um homem que prova, com sua arte, seu engajamento na grande luta, que consiste principalmente nisto: diante da matéria bruta, achar a decodificação do espírito redentor.17

Este denso texto sobre exposição do artista Athos Bulcão tri- dimensiona os ensaios de Cassiano Nunes. Capta arte e literatura, pintura e cultura e os apresenta em um viés de confissões autobio- gráficas. O poeta apreende Brasília, e de certa forma o país, na sua mutação sociocultural e artística.

Athos Bulcão, renomado intelectual fluminense e Cidadão Honorário de Brasília, é um dos mais importantes representantes da arte moderna e contemporânea no Brasil. Sobre ele Cassiano Nunes também escreveu o original poema "Um quadro", inspirado em uma tela que hoje faz parte da coleção particular do poeta. Convém res- saltar que Athos Bulcão é, entre os artistas plásticos brasileiros, um dos mais complexos, em versatilidade e presença na arte da pintura

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e do desenho. Devotado "à criação da arte com integração arquite- tônica", Cassiano o iguala a Oscar Niemeyer e a Lúcio Costa, a quem se liga, na condição de artífice de Brasília, o artista de muitas faces. Com afinidades entre o literário e o plástico, ressalta-se o convívio extraordinariamente producente desses artistas como professores na Universidade de Brasília, todos imbuídos da responsabilidade de criar uma cidade, hoje Patrimônio da Humanidade, que é muito mais que a urbe do Poder. Brasília é nesse sentido um museu a céu aberto das artes de Athos Bulcão, de Oscar Niemeyer e de Cassiano Nunes, arte aliás que enriquece nossos palácios, edifícios e espaços públicos vários, de um modus vivendi brasilis, com marcante presença ainda mais justificada no Campus da Universidade de Brasília, espaço de longa vivência desses grandes e queridos mestres.

Unido assim ao grande arquiteto e a Lúcio Costa, idealizador do monumental Plano Piloto de Brasília, Athos Bulcão comunga dos louros aos construtores da mais moderna e bela metrópole da América Latina. Isso empolga. Inibe também. Apesar de todo o en- tusiasmo do poeta e ensaísta pelo versátil artista, Cassiano Nunes tropeça no caminho, ou melhor, na sua exposição, na busca da me- lhor expressão para destacar os valores que o surpreendem, e que se superpõem, na análise que realiza de Athos Bulcão e sua obra. Em outras palavras: a excelência do artista Bulcão funde-se com os valo- res do homem Bulcão como um todo indissolúvel, perdendo-se, em decorrência do pequeno espaço, muito do que poderia ser dito sobre sua pintura e o que ela representa.

Penso que, entre as possíveis funções dos ensaios críticos de Cassiano Nunes, existe sua condição de material para o conhecimen- to da história da pintura no Brasil. Ricos de informações, esses textos são documentos de fácil acesso, com presença garantida de vários desses quadros em sua residência-biblioteca. Eles formam uma pina- coteca particular de razoável valor. Não falta a Cassiano Nunes, além de tudo, a segurança de conceitos, que são, aliás, enraizados na con- ceituação de arte em geral, pintura ou literatura; poesia ou escultura: "Arte é também sabedoria. A sabedoria não impede a invenção. Ao

contrário, exige-a", afirma o vate-crítico; não lhe faltando, sobretudo, sensibilidade para falar dos processos do artista e do prazer que sua arte proporciona ao espectador. E acrescenta:

A sua garra é principalmente visível no cenário urbano de Brasília, onde, em numerosos lugares, deparamos com a sua presença criati- va, concreta, causando impacto.

Quanto aos quadros, da exposição, motivo particular desse ensaio, Cassiano Nunes não vacila considerá-los de alto valor, em que se põe "a recalcitrância ao formal, ao artificial, ao burocrático". Apresenta a arte de Athos Bulcão em ligação íntima com seu criador. Convém lembrar que qualquer um de nós que conviveu com Athos Bulcão sabe que ele é como a arte que realiza:

Parece-me encontrar, nos quadros dessa exposição, o artista na cla- ridade do seu ser: na alegria de estar-no-mundo (alegria que não dispensa a dor), no convívio extático com as coisas, com os elemen- tos na Natureza. O ofício humano parece-me tema fundamental do pintor. [...] descubro na variedade dos trabalhos de um homem que prova, com a sua arte, o seu engajamento na grande luta, que consis- te principalmente nisto: diante da matéria bruta, achar a decodifica- ção do Espírito redentor.

Também aqui Cassiano Nunes grava sua chave de ouro, gran

finale de religiosidade e ascensão espiritual presente na sua criação

artística.

Sua função justifica-se assim na medida em que esses ensaios, como um texto único, oferecem a seus leitores algo mais que elogios de amigos. Preenchem um espaço que, de certa forma, beneficia ao mesmo tempo as artes plásticas, em uma conceituação particulari- zadora e nas suas afinidades com as demais artes, principalmente com a poesia e a literatura, e ainda com as ciências, com a filosofia de Bergson e a filosofia da arte de Huizinga, entre outros nomes impor- tantes na história da arte e da cultura.

No documento Cassiano Nunes : poesia arte (páginas 73-83)

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