• Nenhum resultado encontrado

4 JUSTIÇA AMBIENTAL E A EFETIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO À

4.1 A pluralidade dos discursos ambientalistas

O movimento ambientalista, longe de ser uniforme, apresenta diversas correntes (ou discursos), as quais, ao longo dos anos, foram classificadas de diversas maneiras. Hannigan (2009) observa que as tentativas de propor uma tipologia para o discurso ambiental resultaram em modelos teóricos que apresentam três ou até mesmo nove correntes diferentes (Robert J, Brulle, por exemplo, defendeu a existência dos discursos que denominou manifesto do destino, manejo da vida selvagem, conservação,

preservação, reforma ambientalista, ecologia profunda, justiça ambiental, ecofeminismo e ecoteologia).

Para os fins deste trabalho, basear-nos-emos na sistematização feita por Henrique Botelho Frota (2009), que destacou três correntes expressivas na atualidade: preservacionismo, modernização ecológica e justiça ambiental. O autor alerta, entretanto, para o fato de que os diferentes discursos ambientalistas não estão dispostos numa linha sucessória e que nem sempre apresentam uma separação bem definida entre si, de modo que é comum que haja a mescla de elementos entre eles.

4.1.1 Preservacionismo

O preservacionismo, denominado por Hannigan (2009) de discurso arcádico ou bucólico e por Martínez Alier (2011) de culto à vida selvagem, teve sua origem em fins do século XIX e marcou o início do que hoje se entende por movimento ambientalista (FROTA, 2009). Esta corrente surgiu especialmente como uma resposta aos problemas trazidos pelo rápido crescimento urbano no contexto da revolução industrial, tais como a poluição em suas mais variadas formas e o excesso populacional nas cidades (HANNIGAN, 2009). Frota (2009, p. 38) observa, ainda, que o movimento de tendência preservacionista era “majoritariamente composto por homens brancos de classe média e alta, conduziu a um distanciamento de sua agenda em relação aos interesses das minorias e da população mais pobre”.

Hannigan (2009) destaca que esta corrente foi responsável pela difusão de uma nova visão da natureza selvagem, que deixou de ser vista como uma ameaça à expansão da civilização para ser encarada como um recurso precioso. A pauta da corrente preservacionista, portanto, gira em torno da necessidade de frear, ao menos em alguns espaços, a expansão das atividades humanas (e a consequente degradação) sobre o meio ambiente, o que se materializa notadamente por meio da criação de áreas protegidas, como parques nacionais (FROTA, 2009; HANNIGAN, 2009).

Martinez Alier (2011) observa que, apesar da preocupação com a proteção da natureza silvestre, os preservacionistas não se manifestam sobre a indústria ou a urbanização e são indiferentes, ou demonstram uma oposição incipiente, ao crescimento econômico, de modo que não se chega a questionar profundamente a lógica predatória do sistema capitalista, não havendo, portanto, um esforço no sentido de se buscar alternativas a ela (MARTÍNEZ ALIER, 2011; FROTA, 2009).

Outro aspecto importante diz respeito à postura adotada em relação a comunidades que tradicionalmente ocupam as áreas de preservação criadas. Diegues (1996 apud FROTA, 2009) critica o fato de a criação destas áreas e seu usufruto por meio de atividades turísticas e recreativas serem voltados apenas para populações externas, sendo a presença de comunidades tradicionais (povos indígenas, pescadores, ribeirinhos, etc) vistas como prejudicial à preservação (FROTA, 2009). Conforme lembra Frota (2009), esta postura discriminatória ignora, por exemplo, que tais comunidades, com freqüência, detêm uma gama de conhecimentos empiricamente adquiridos que as permitem prover sua subsistência sem agredir o meio ambiente (ou mesmo colaborando para o aumento da biodiversidade do local).

De fato, apenas recentemente políticas elaboradas a partir do pensamento preservacionista têm sido modificadas para levar em consideração os direitos de comunidades tradicionais, o que se manifesta, por exemplo, no caso do Brasil, com a criação das chamadas unidades de conservação de uso sustentável, conforme a Lei nº 9.985/2000, nas quais é permitida a ocupação humana permanente e a exploração sustentável dos recursos ambientais disponíveis.

Blowers (1997) apud Acselrad (2004) descreve a modernização ecológica como:

[...] o processo por meio do qual as instituições políticas internalizam preocupações ecológicas no propósito de conciliar o crescimento econômico com a resolução dos problemas ambientais, dando-se ênfase à adaptação tecnológica, à aceleração da economia de mercado, à crença na colaboração e no consenso. (ACSELRAD, 2009, p. 34)

Joan Martínez Alier (2011) insere o debate da modernização ecológica num contexto mais amplo, que ele chama de “evangelho ou credo da ecoeficiência”, cujos defensores, em sua maioria engenheiros e economistas, preocupam-se com os problemas acarretados pelos impactos da produção de bens e com a gestão sustentável dos recursos naturais, a partir de uma verdadeira “religião da utilidade e da eficiência técnica” (MARTÍNEZ ALIER, 2011, p. 27).

Assim, reconhecendo-se os limites à exploração dos recursos naturais, a premissa da qual parte o discurso da modernização ecológica é a de que, “o problema não está no crescimento [econômico] em si, mas sim no estímulo ao aumento da produtividade biofísica como sua principal fonte” (FROTA, 2009, p. 43), colocando-se como alternativa a reprodução, em larga escala, de ciclos de produção e consumo baseados no emprego de sofisticadas tecnologias limpas (Spaargaren; Mol, 1992 apud Hannigan, 2009), as quais permitiriam o deslocamento da base do crescimento econômico do aumento da produção para a incorporação de valor agregado (FROTA, 2009).

Esta proposta, explica Martínez Alier (2011, p. 28), se divide em duas frentes: “uma econômica, com ecoimpostos e mercados de licenças de emissões; a outra, tecnológica, apoiando medidas voltadas para a economia de energia e de matérias- primas”. Ou seja, para esta corrente, as transformações necessárias partem da atuação do setor produtivo, por meio de reestruturações tecnológicas e organizacionais, atribuindo ao Estado tão somente o papel de indutor de mudanças, através de políticas públicas que tornem vantajosa para o mercado a postura ecologicamente responsável (FROTA, 2009).

Os pensadores da modernização ecológica são reconhecidos pela tentativa de manter uma posição racional entre ambientalistas “catastróficos” que pregam que nada menos que a desindustrialização seria suficiente para salvar a terra de um Armagedon ecológico e dos apologistas do capital que preferem o enfoque do negócio à moda tradicional (SUTTON, 2004: 146). Infelizmente, a perspectiva da modernização ecológica é limitada por um senso racional de otimismo tecnológico. (HANNIGAN, 2009, p. 47-48)

As críticas a este discurso são muitas, a começar pelo que John Hannigan (2009) chamou de “otimismo tecnológico” do movimento, que fragiliza o argumento, em primeiro lugar, porque sugere que o processo produtivo voltado à obtenção das tecnologias limpas seja “ambientalmente neutro” (HANNIGAN, 2009, p. 48), e, em segundo lugar, porque parte da concepção de que a classificação de uma tecnologia como “limpa” é uma noção universal (neste ponto, Hannigan dá o exemplo das fontes de energia nuclear, que, à época de seu advento, eram consideradas “limpas”).

Frota (2009) observa, ainda, que este “otimismo tecnológico” leva os adeptos da modernização ecológica a reduzirem problemas complexos a questões meramente técnicas, o que, como vimos anteriormente neste trabalho, está longe de condizer com a realidade, marcada pelas intensas disputas políticas que permeiam a temática ambiental.

Referindo-se à argumentação apresentada por Spaargaren e Mol, os principais difusores das idéias da modernização ecológica, Hannigan (2009) acrescenta:

Spaargaren e Mol [...] inicialmente disseram pouco sobre as relações de poder que caracterizaram os processos ambientais, assumindo que de alguma forma o bom senso deve automaticamente triunfar. Ainda como Gould et al. (1993: 231) argumentaram, a sustentabilidade, que é o conceito que guia a modernização ecológica, é tanto uma dimensão político-econômica quanto ecológica: o que pode ser sustentado é somente o que forças políticas e sociais em um alinhamento histórico particular define como aceitável. (HANNIGAN, 2009, p. 48)

Por fim, cabe destacar a crítica tecida por Acselrad, Mello e Bezerra (2009

apud FROTA, 2009) no que concerne ao fato de o discurso da modernização ecológica

ignorar as desigualdades socais enquanto elemento determinante de problemas e conflitos ambientais, partindo-se de um pressuposto equivocado de que o acesso aos recursos naturais dá-se de maneira homogênea na sociedade e de que todos sofrem da mesma forma com a degradação ambiental decorrente das atividades econômicas.

Portanto, em que pese a crescente popularidade que este discurso vem ganhando em escala mundial desde seu advento, no início da década de 1980, fica claro que as alternativas propostas não se mostram suficientes para produzir as profunda transformações que são necessárias para a superação das interligadas crises social e ambiental. Neste sentido, Henrique Frota (2009, p. 47) conclui:

Pelo que se percebe, há uma ascensão do discurso da modernização ecológica, influenciando práticas diversas por parte do setor privado e dos Estados. Esse discurso, contudo, não garante que possa haver qualquer mudança paradigmática na forma com as sociedades lidam com o consumo de bens e a depleção dos recursos naturais. Tampouco existem alternativas mínimas para o problema da desigualdade social, que está na base da crise ambiental.

4.1.3 Justiça Ambiental

A terceira corrente do pensamento ambientalista que discutiremos neste trabalho, foco da nossa abordagem do direito humano à água e ao saneamento, consiste no paradigma da justiça ambiental, o qual parte do reconhecimento de que as conseqüências negativas do desenvolvimento econômico, em termos de degradação ambiental, são desproporcionalmente distribuídas entre as diferentes classes sociais, sobrecarregando “grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa renda, segmentos raciais discriminados, parcelas marginalizadas e mais vulneráveis da cidadania” (ACSELRAD; HERCULANO; PÁDUA, 2004, p. 10).

A premissa do movimento por justiça ambiental, portanto, coloca-se no sentido de desconstruir o mito do caráter “democrático” da poluição (ao menos em termos de exposição direta), ressaltando, ademais, o papel exercido pelas injustiças sociais na produção e na distribuição da degradação ambiental.

Henri Acselrad (2010, p. 108) descreve a mobilização em torno da noção de justiça ambiental como um “movimento de ressignificação da questão ambiental. Ela resulta de uma apropriação singular da temática do meio ambiente por dinâmicas sociopolíticas tradicionalmente envolvidas com a construção da justiça social”. Em outras palavras, o advento do movimento de luta por justiça ambiental levou ao desenvolvimento de um enfoque que reconhece a relação íntima entre a degradação do ser humano e a degradação ambiental.

A justiça ambiental, portanto, é uma concepção que vai além da pretensão de proteger determinadas porções de natureza silvestre, como limita-se a fazer a corrente preservacionista. Na realidade, o movimento de luta contra a injustiça ambiental, uma forma de “ecologismo contestatório” (ACSELRAD, 2010, p. 107), representa uma profunda crítica ao sistema capitalista33 e seus diferentes modelos de desenvolvimento, os quais são identificados como a principal fonte dos problemas ambientais (FROTA, 2009).

33Kenneth Gould (2004, p. 70), neste sentido assevera que “a distribuição dos riscos ambientais por classe

social é uma conseqüência normal das economias capitalistas. Os mercados, livres para funcionar sem intervenção estatal, irão normalmente distribuir mercadorias e serviços com base na riqueza. O moinho da produção gera tanto os benefícios econômicos quanto os riscos ambientais [...]. Os benefícios econômicos da produção tendem a se concentrar nas camadas mais altas do sistema de estratificação. Proprietários, gerentes e investidores colhem uma parcela maior dos proveitos econômicos gerados pela produção do que os trabalhadores. Inversamente, os riscos ambientais gerados pela produção de mercadorias e serviços tendem a se concentrar nas camadas inferiores do sistema de estratificação.”

Ademais, a concepção de justiça ambiental mostra-se, em certos aspectos, efetivamente antagônica aos preceitos da modernização ecológica, a qual aposta nos instrumentos de mercado para alcançar uma verdadeira “revolução da eficiência” (ACSELRAD, 2010; FROTA, 2009), sem considerar, todavia, o papel destes mesmos instrumentos na perpetuação das profundas desigualdades sociais e regionais34. Além disto, o discurso da justiça ambiental questiona os fins visados, e não somente os meios utilizados pela sociedade na exploração da natureza, como faz a modernização ecológica (ACSELRAD, 2010).

A modernização ecológica [...] propõe-se a dar preço ao que não tem preço; opõe a lógica dos interesses à lógica dos direitos; tende a equacionar o meio ambiente na lógica da propriedade privada; [...] o “meio ambiente” é visto como “oportunidade de negócios; [...] o meio ambiente e a sustentabilidade tornam-se categorias importantes para a competição interterritorial e interurbana; para atrair capitais, a “ecologia” e a “sustentabilidade” podem tornar-se apenas um símbolo, uma marca que se quer atrativa. (ACSELRAD, 2010, p. 110)

A seguir, apresentaremos algumas notas acerca do surgimento e da evolução do que hoje se reconhece como movimento pela justiça ambiental, como forma de ilustrar a aplicação das premissas por ele defendidas e demonstrar sua importância à luta pela efetivação do direito humano à água e ao saneamento.

4.2 Justiça ambiental: gênese, internacionalização e influência no cenário