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A POESIA E A ILUSÃO DA EXISTÊNCIA

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Em As palavras XXV, também um desenvolvimento do primeiro, disposto em quatro partes, a negação está posta logo no início, para que o leitor, chamado ao duelo, posicione-se de pronto. Para isso, ele invoca até mesmo o auxílio das estrelas, que em defesa de sua cruzada o corroboram:

Não houve a palavra sol para depois o sol brilhar.

Não houve o livro anterior a tudo. Não houve o desejo de vida antes de haver vida,

e para que houvesse vida duas gerações de estrelas

se criaram e morreram. (RIBEIRO, 2015, p. 85.)

A ilusão da existência da palavra anterior ao seu referente, posta como afirmação contundente, provocativa, é o mote da trama poética que promete se desenrolar ao longo do poema. Sobre isso, trazemos Saussure, que afirma ser “a unidade linguística [...] constituída da união de dois termos”, que serão reunidos “em nosso cérebro, por um vínculo de associação” (SAUSSURE, p. 79). Esse signo linguístico se dá como resultado da junção entre “um conceito e uma imagem acústica” (ou “impressão psíquica desse som”), configurando uma “imagem sensorial”. Em outras palavras, significado e significante, respectivamente

(SAUSSURE, p. 81).

Esta colocado já nos primeiros versos o conflito entre o Princípio da Arbitrariedade do Signo e a qualidade do significante de ‘ser imotivado’: Não houve a

palavra sol / para depois o sol brilhar. A palavra sol tem diversas formas de

representação, mesmo dentro de uma mesma língua, o que demonstra que o conceito ao qual ela se liga, por exemplo, na língua portuguesa não se aplica a outros códigos linguísticos. O sol brilha, seja aqui ou em outra latitude, e isso muito antes da palavra sol existir. Mesmo muito antes da espécie humana, geradora do “mais completo e o mais difundido sistema de expressão”, a linguagem, ou da existência do planeta Terra (SAUSSURE, p. 82). O sol real, coisa, brilha; o sol, imagem acústica, significante, o sol do poema é palavra.

Não houve o livro anterior a tudo, porque a palavra cria realidades outras que

não as do mundo real. Ao contrário, as coisas vão parir novas palavras; a linguagem é dinâmica, viva, pulsa incessante, em ritmo frenético, como o dia-a-dia na contemporaneidade, com suas infovias, seus dinheiros de plástico, seu vazio. As palavras criam outras palavras, mas um livro anterior a tudo seria impensável, pois primeiro seria necessário que houvesse árvores para fornecer sua matéria prima; nem houve uma vontade de vida antes que houvesse vida: só a vida gera vida. A vontade é consequência. Só tem vontade quem está vivo. E para hoje estarmos

aqui, neste planeta, em um sistema estelar mediano, num ponto qualquer de uma galáxia também mediana, duas gerações de estrelas se criaram e morreram. E antes, uma grande explosão deu origem ao universo que conhecemos. Tudo isso é anterior à palavra.

Esse imbróglio despacha-nos a um labirinto que o próprio poema, embusteiro que é, inventou. A linguagem não é um algo sem importância a atrapalhar o desenrolar das coisas no universo. Nem o universo, as estrelas, ou as galáxias, as coisas, enfim, existem de verdade no poema, porque sua dimensão é outra. Nele, o poeta não busca semelhanças, conceitos, significados. O poema é enunciação pura de verdades distintas, é metalinguagem:

Mas, se a linguagem não mais se assemelha imediatamente às coisas que ela nomeia, não está por isso separada do mundo; continua, sob uma outra forma, a ser o lugar das revelações e a fazer parte do espaço onde a verdade, ao mesmo tempo, se manifesta e se enuncia." (FOUCAULT, 2000, p. 49)

O poema se nega ao afirmar, e se afirma, negando, pois é espaço privilegiado da verdade poética, onde esta se manifesta segundo leis próprias da lírica. É enunciação ao mesmo tempo que fingimento: Se criaram e morreram / não para que houvesse vida, / mas meramente por existirem.

Vida e morte da poesia, criação e ressurgimento em moto contínuo, universo pulsante, vida que meramente existe, como muitas que vagam, cinzas, pelo mundo. A palavra imita a coisa sem sê-la, cria outra, ressignifica.

Para Foucault, é com a “análise do sentido e da significação” que o pensamento moderno responde à questão da ligação do signo ao significado. Esse aparente divórcio entre as palavras e as coisas é enfrentado, porém sem solução próxima no horizonte:

A profunda interdependência da linguagem e do mundo se acha desfeita. O primado da escrita está suspenso. Desaparece então essa camada uniforme onde se entrecruzavam indefinidamente o visto e o lido, o visível e o enunciável. As coisas e as palavras vão separar-se. O olho será destinado a ver e somente a ver; o ouvido somente a ouvir. O discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será nada mais que o que ele diz. (FOUCAULT, 2000, p. 58)

A vida continua sua trajetória na vastidão do universo conhecido, espaço- tempo onde nos encontramos e produzimos linguagem, sem ter a mínima noção da guerra travada no infinito que nos cerca, onde galáxias se engolem, estrelas se expandem, pulso fraco, respiração moribunda de um último movimento ruidoso que redundará em explosão, gás, poeira estelar; como num estertor, elas morrem, para depois gerarem novas nuvens de gás, novas estrelas. E seguimos aqui, insignificantes ante tudo, produzindo poesia:

E uma pobre nuvem de gás gerou a estrela que chamamos de sol, e o planeta que chamamos de Terra e a tola espécie humana

que um dia julgaria ser tão especial, Que sem suas palavras não

houvera o universo.

E a tola espécie humana segue sua sina, dando voltas em torno do sol. Essa

mesma, que se julgava tão especial a ponto de acreditar que o universo seria resultado do poder de suas palavras. Não sabia ela, sim, ser resultado de uma pobre

nuvem de gás, que por sua vez gerou a estrela que chamamos de sol, e o planeta que chamamos de Terra.

Para que um dia julgasses que de palavras humanas fez-se o mundo, antes teve de existir o mundo, Que segue sendo o mar, a montanha e al.

Apesar de tudo, somos essa espécie que segue fazendo poemas. Só não podemos nem devemos nos esquecer da soberba que um dia nos levou a crer em sandices. Ao invés, sigamos, firmes, (re)criando realidades poéticas. Isso, sim, nos faz humanos, vale a pena, a pena do poeta.

O uso das palavras mundo (imagem ctônica), que se associa à Terra, Ctonos, mãe dos Titãs; mar (imagem dinâmica), de onde tudo sai e pra onde tudo retorna, estado transitório, de possibilidades, de incertezas, a vida e a morte; e montanha (imagem ascendente), símbolo múltiplo, transcendente, encontro do céu e da terra (Chevalier & Gheerbrant, 2012); todas elas, no poema, apontam para uma perspectiva de conflito insolúvel, impossibilidade, derrota. Para o poeta, a

humanidade só se resolve no poema, com sua sonoridade e seu vazio, e fora dele não há perspectiva, nem salvação: melhor seguir sendo o mar, a montanha e al, porque - como dito em As palavras XLIII - “De velhas palavras, / Resta o silêncio”.

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