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II) A Questão Diplomática

2.3 A Política da RAS de aproximação a certos países africanos

A política sul-africana de aproximação a certos países africanos, face ao facto de Pretória ter constatado um crescente isolamento internacional, devido à política do “apartheid”, o país compreendeu que necessitava de uma visibilidade externa mais positiva.

Este interesse conduziu à aproximação a certos países ocidentais, como foi o caso de França, mas ainda com uma maior determinação, no caso de Portugal e da Rodésia. No caso português, os laços tornaram-se mais firmes após o começo da guerra em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, e em relação à Rodésia, a partir do momento em que ocorreu a ruptura entre esta e o Reino Unido, dando origem à Declaração Unilateral de Independência, em Novembro de 1965.

A relativa abertura sul-africana contemplou, ainda, a melhoria de relações com a Zâmbia e, sobretudo com o Malawi, onde, neste último caso, foram relevantes os bons ofícios de Portugal.

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Atendendo às fontes consultadas, apercebe-se que a África do Sul, desde o final dos anos 50, procurou quebrar um certo isolamento internacional a que estava votada.

Os territórios africanos portugueses constituiam, nesse âmbito, um passo lógico pela contiguidade territorial e pela orientação politico-ideológica seguida pelo regime português.

Embora existissem discordâncias ao nível do carácter racial das sociedades em causa e tensões de índole geo-estratégico que eram notórias, as afinidades também se verificavam. Nomeadamente, a luta contra os movimentos independentistas, o comunismo e pela presença branca em África. Acresce que na hipótese de ataque ao

Ultramar português, o que já era razoavelmente previsível, os territórios lusos formavam, na óptica sul-africana, um cordão securitário.

Neste contexto, para além de Portugal, convinha na perspectiva de Pretória, assegurar a simpatia ou pelo menos a neutralidade de outros países africanos, assim como uma melhoria na imagem internacional, que se reflectisse na ONU.

Daí não se estranhar a informação baseada no jornal “Rand Daily Mail”, de 29 de Setembro de 1959, acerca de declarações produzidas nas Nações Unidas pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros da África do Sul, Eric Louw. Este ofereceu a cooperação do seu país em “questões de interesse comum” aos países africanos independentes, e aos outros territórios com diferente estatuto, como eram os casos de Angola e Moçambique. Informando Lisboa sobre a iniciativa, o embaixador Caldeira Queiroz realçou a alteração ao nível do discurso, uma vez que em recentes declarações sobre a mesma matéria, aquele governante tinha omitido os territórios portugueses e, noutra ocasião, referiu-se a estes como colónias212.

É importante o facto de o diplomata português ter assinalado a mudança dos termos utilizados em relação aos territórios portugueses, pelas autoridades sul-africanas, uma vez que eram um factor de incómodo para o executivo luso. Isto porque, por vezes, aparecia no discurso oficial sul-africano a designação de colónias portuguesas, contrariando a terminologia portuguesa da época que já adoptava a expressão “territórios ultramarinos” desde a revisão constitucional de 1951.

Seguindo a estratégia de melhoria da imagem externa de Pretória, o PM da África do Sul, John Vorster, concedeu uma entrevista à “US News & World Report”, de 14 de Novembro de 1966, sob o título “The Story of Race and Progress in Africa’s Richest Nation”. Nesta, o dirigente sul-africano negou a existência de qualquer tipo de aliança

212

Cfr. AHD-MNE, PAA 1129, Informação enviada pela embaixada de Portugal na União da África do

“branca”, e afirmou que depositava esperanças na melhoria do relacionamento entre todos os países – “brancos e pretos” – da África Meridional.

Acrescentou ainda que a África do Sul não prosseguia desígnios “agressivos ou imperialistas”. Com bastante pormenor, Vorster respondeu a questões relacionadas com o “apartheid”, o Sudoeste Africano e a eventual defesa perante agressões vindas do exterior. Também foca aspectos que, na sua opinião, explicam a pujança económica do país213.

Entretanto, ocorreram alguns factos que mereceram a atenção regional incluindo a da África do Sul. Verificou-se uma tensão crescente no relacionamento entre a Rodésia e a Grã-Bretanha, originada na declaração unilateral de independência daquela, e que nos anos de 1966-67 sofreu um agravamento devido ao embargo petrolífero a Salisbúria promovido por Londres sob mandato das Nações Unidas. Foi igualmente em meados dos anos 60 que a SWAPO se tornou mais activa na faixa de Caprivi, batendo-se pela independência do Sudoeste Africano face à República da África do Sul. Acresce ainda o facto de a guerra em Angola ter ganho uma nova frente, na região leste, o que preocupou as autoridades portuguesas e não deixou indiferentes as sul-africanas.

Assim, não é de estranhar que quase um ano depois, em 1 de Outubro de 1967, o jornal sul-africano “Sunday Times” abordava uma “Doutrina Monroe” sul-africana, adaptada à África Meridional. Aludindo a declarações de John Vorster, referiu-se que, em consequência, a tradução prática das mesmas deveria ser o estabelecimento de “uma linha de Angola, através da Rodésia, até Moçambique, além da qual os terroristas encontrarão resistência não só dos países interessados mas também, possivelmente, das unidades policiais sul-africanas”.

213

Cfr. AHD-MNE, PAA 368 Informação dirigida pela Embaixada de Portugal em Washington ao Ministro dos Negócios Estrangeiros datada de 25 de Novembro de 1966.

Por outras palavras, na origem, a Doutrina mencionada significava o afastamento das ideologias e influências europeias face à América; No caso de Pretória traduzia-se no mesmo em relação às orientações políticas e respectivos movimentos de libertação. Estes deveriam ser banidos da África Meridional e, consequentemente, a África do Sul procurava estreitar o relacionamento com os Estados africanos moderados.

Assim, mencionava-se, igualmente, o afastamento progressivo da África do Sul em relação à tradicional política da neutralidade. A crescente aproximação à Rodésia tinha sido perceptível desde a UDI e o mesmo tinha-se verificado em relação a Angola e Moçambique. Assim, seria de esperar uma intensificação da cooperação militar entre os três Estados, com um crescente envolvimento operacional de Pretória. A maior oposição residia na OUA e nos seus membros mais activistas214.

Contudo, existiam Estados africanos que preferiam não hostilizar ostensivamente a África do Sul e Portugal. Procuravam exportar uma imagem de solidariedade com o nacionalismo africano e simultaneamente não afrontar abertamente os poderes brancos. Era uma posição próxima da neutralidade.

Neste caso encontrava-se a Zâmbia que dependia de Angola para o trânsito do seu comércio e temia o potencial bélico e económico de Pretória.

A expressão desta duplicidade foi manifestada num documento de 16 de Setembro de 1968, que informava acerca da proibição das actividades do Pan-Africanist Congress of South Africa (PAC), na Zâmbia.

A justificação prendia-se com o alegado conhecimento de Kaunda, do desenvolvimento de actividades subversivas contra o país e que poderiam, inclusivamente, considerar a eliminação daquela personalidade. O Presidente estaria ainda consciente de que um

214

Cfr. AHD-MNE, PAA 368 Informação proveniente da PIDE em Moçambique e dirigida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros sob o título a «A Doutrina Monroe na África Meridional», datada de 20 de Outubro de 1967.

auxílio mais ostensivo aos partidos nacionalistas no exílio poderia desencadear, por parte da Rodésia, Portugal ou a África do Sul, “uma acção punitiva contra a Zâmbia”. Acrescenta-se que esta posição confirma a perspectiva moderada de Kaunda, ao contrário de outras correntes no país que advogavam uma ajuda mais efectiva aos partidos em causa.

Realçava-se, ainda, o facto de o PAC corresponder a uma facção dissidente do ANC, “seguindo este uma linha soviética, enquanto aquele se inclinava mais para a China”. O primeiro manteria ligações com o partido rodesiano ZANU, rival do ZAPU, que se encontraria, na Zâmbia, numa situação igualmente precária215.

Note-se o ênfase na posição moderada de Kaunda devido à sua localização geo- estratégica e igualmente justificada por rivalidades internas que, supostamente e no extremo, poderiam colocar em perigo a vida do dirigente zambiano. Aliás, a propósito do alinhamento das unidades políticas do continente negro, o antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros Rui Patrício colocava a Zâmbia, a par com o Congo Leo e o Senegal, na categoria de “Estados com relações e atitudes equívocas, variáveis ou evolutivas”216.

No âmbito das Nações Unidas, também se reconheceu, mediante um relatório preparado pelo Comité Apartheid, a existência de uma “política de abertura” da África do Sul em relação aos Estados africanos.

No entanto, foi entendido que esta orientação seria apenas um expediente para garantir o acesso a novos mercados, e justificada, igualmente, por razões de segurança. Em conformidade, deveria ser mantida a política de sanções contra a África do Sul e a “assistência moral, política e material aos «povos oprimidos»”.

215

Cfr. AHD-MNE PAA-368, Informação da Embaixada de Portugal em Londres, dirigida ao Ministro

dos Negócios Estrangeiros, datada de 16 de Setembro de 1968. 216

Cfr. Manuel Braga da Cruz; Rui Ramos (Org.), Marcelo Caetano: Tempos de Transição, 1ª ed., Porto Editora, 2012, p.294; Cfr. no mesmo sentido, entrevista realizada pelo autor a Rui Patrício no Rio de Janeiro, em 9 de Novembro de 2007.

Aludiu-se ainda ao fortalecimento da aliança militar entre a África do Sul, Rodésia e Portugal, e às relações económicas que os unem, destacando-se os acordos sobre o aproveitamento do Cunene e Cabora Bassa217.

É interessante relevar que a política de um menor isolamento de Pretória a nível regional já se havia iniciado em meados da década de sessenta com a aproximação ao Malawi. Este contacto foi, em grande parte, proporcionado pela diplomacia portuguesa que via no Dr. Hastings Banda um aliado interessante tanto a favor de Lisboa como de Pretória.

O Eng. Jorge Jardim, conselheiro privilegiado de Salazar para as questões africanas, tinha constatado a importância e a necessidade de se poder contar com o apoio do Malawi. A posição estratégica deste país, nomeadamente devido ao Lago Niassa bordejar com a fronteira moçambicana, constituía um foco de instabilidade que era aproveitado pelos movimentos de libertação. Daí o Presidente do Conselho português compreender as sugestões de Jardim e a necessidade de estabelecer uma relação de grande cumplicidade com o executivo de Banda.

Nesta manobra diplomática, o governo português considerou a utilidade de envolver a África do Sul, promovendo a referida aproximação entre Zomba e Pretória.

Na realidade, os dois Estados decidiram estabelecer relações diplomáticas em Setembro de 1967 e já anteriormente, em Março do mesmo ano, tinham assinado um acordo comercial218.

O bom relacionamento foi confirmado por uma viagem realizada pelo PM Vorster a Zomba em 1970, na sequência da qual foi acordado elevar as respectivas representações diplomáticas de Legações para Embaixadas. No processo, o então representante do

217

Cfr. AHD-MNE, PAA 368, Telegrama enviado pela Missão Permanente de Portugal na ONU para o

MNE, e datado 9 de Dezembro de 1969. 218

Cfr. Roger Pfister, Apartheid South Africa and African States: from Pariah to Middle Power, 1961-

Malawi, Richardson, que era ainda um diplomata de nacionalidade inglesa, foi substituído em Abril de 1971 por Joe Kachingwe, que se tornou no primeiro Embaixador negro acreditado em Pretória. O diplomata, que já tinha exercido funções no país em 1968, questionado sobre o facto de o Malawi poder constituir uma ponte entre a África do Sul e os outros Estados africanos, respondeu que o país prosseguia uma política de “porta aberta”219.

Do lado sul-africano, a ideia era a de manter o encarregado de negócios, Wertzel, promovendo-o a Embaixador220.

Como corolário da aproximação entre os dois países, o Presidente Banda efectuou uma visita oficial à África do Sul em Agosto de 1971, a primeira de um chefe de estado negro a este país. Consequentemente, a OUA criticou este desenlace, considerando que Estados-membros não deveriam relacionar-se com o regime sul-africano.

Note-se a importância da elevação das representações diplomáticas do Malawi e da África do Sul, nos respectivos países, à categoria de Embaixadas e a indicação do primeiro diplomata negro na África do Sul; em determinado momento, os norte- americanos também indicam um diplomata negro.

Na interpretação da Embaixada portuguesa em Pretória, é provável que a viagem tenha sido aproveitada pelo executivo sul-africano, tanto a nível interno como externo.

No primeiro domínio, para demonstrar a justeza política de uma maior abertura ao relacionamento com Estados africanos, num momento em que ela era, ainda, objecto de grande contestação nos meios nacionalistas mais conservadores. No plano exterior, para justificar o facto de o “apartheid” não ser um obstáculo a uma maior aproximação

219

no original, “an open-door polícy”. Cfr. “Pretoria News”, 29 July 1971; note-se, a título de curiosidade, que um outro diplomata de Zomba referiu-se a Kachigwe como o “primeiro mártir da carreira diplomática do Malawi”. Este comentário foi ouvido e relatado para Portugal pelo Embaixador luso no Malawi, Vasco Futscher Pereira. Cfr. AHD-MNE, PAA 959, Aerograma proveniente da

Embaixada de Portugal em Zomba, e dirigido ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 28 de Julho de 1971.

220

Cfr. AHD-MNE, PAA 959, Documento enviado pela Embaixada de Portugal, em Zomba, ao

àqueles Estados. O problema mais delicado estava, aparentemente, na futura vivência diária de um indivíduo negro numa região – o Transval -, onde o racismo permanecia muito entranhado nas mentalidades locais. Embora a questão da residência tenha sido resolvida com a construção do bairro diplomático221, a rotina diária de um indivíduo negro, mesmo protegido com credenciais diplomáticas, não se avizinhava fácil. De qualquer forma, a visita do Chefe de Estado do Malawi e a estadia prolongada de um diplomata negro na África do Sul foi entendida como um teste à política de boa vizinhança com os Estados africanos222.

Em 1972, no decurso de conversações luso-sul africanas, foi referido a propósito da situação das relações externas da África do Sul que as perspectivas eram as seguintes: “falência da política de diálogo com os Estados africanos”; “ruptura dos incipientes laços de cooperação com Madagáscar”; “esfriamento das relações com o Botswana”; “afastamento e hostilidade por parte do Lesoto”; “cooperação com o Malawi, Maurícias e Swazilândia”; prosseguir o relacionamento com a Zâmbia mas favorecendo o encerramento da fronteira deste país com a Rodésia e a participação da África do Sul no combate anti-subversivo ao lado dos rodesianos; pressupunha-se, ainda, a possibilidade de um eventual acordo entre a Rodésia e a Grã-Bretanha; finalmente, ao nível das relações com as Nações Unidas, sobressaía o problema do Sudoeste Africano223.

221

A construção do bairro diplomático surgiu, em simultâneo, com a aproximação da África do Sul aos Estados negros. Os primeiros residentes no empreendimento foram, precisamente, os diplomatas do Malawi, que ocuparam as duas habitações iniciais. Este bairro foi objecto de alguma controvérsia, com eco na comunicação social sul-africana de língua inglesa, sendo considerado, de certa forma, um “gueto” diplomático.

222

Cfr. AHD-MNE, PAA 959, Documento enviado pela Embaixada de Portugal, em Pretória, ao

Ministério dos Negócios Estrangeiros, e datado de 16 de Julho de 1971. 223

Cfr. AHD – MNE, PAA 368, Apontamento intitulado “Conversações luso-sul africanas” e redigido

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