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VI. A metodologia de pesquisa

1. OS CONCEITOS E OS VALORES DO PATRIMÔNIO NA HISTÓRIA DA

1.2. A polarização das ideias preservacionistas na Europa do século XIX

Com a Revolução Industrial, teve início um processo de tomada de consciência de um novo momento histórico. O monumento histórico passou a ser visto como algo insubstituível e os danos ao mesmo seriam irreparáveis. (CHOAY, 2006, p. 136).

Enquanto o século XVIII foi marcado pelo iluminismo, pela objetividade, pela razão, o século XIX foi marcado pela desilusão diante dos infortúnios causados pelo racionalismo do século anterior. Com os novos valores burgueses, o caminho se abriu

para a subjetividade e para a emoção, que seriam expressas com o Romantismo4.

(BÈNAC, 1963).

A nova estética burguesa filtraria a realidade com a emoção; a originalidade substituiria a imitação e a subjetividade romperia com padrões clássicos de beleza. Esses novos elementos, aliados aos nacionalismos europeus do século XIX, afetariam diretamente as concepções preservacionistas.

A ação dos defensores do patrimônio era eficaz na medida em que assumia a forma de uma disciplina de conservação e também a forma de uma legislação protetora, ambas complementares. (CHOAY, 2006, p. 145). A legislação francesa serviria de referência por muito tempo para a Europa e para outras partes do mundo.

Na França foi criada uma estrutura centralizada que acabou por marginalizar a atuação das associações locais de proteção. A gestão estatal e centralizada do patrimônio serviria de modelo para muitos países, dentre eles o Brasil.

Na Inglaterra, mais ligada às suas tradições, diversas associações de proteção formadas por religiosos, antiquários ou arqueólogos se desenvolveram e desempenharam ativamente as tarefas de conservação dos monumentos.

Às formulações teóricas do francês Viollet-le-Duc (1814—1879), que pregava os refazimentos e completamentos em estilo, contrapunham-se as ideias do inglês John Ruskin (1819—1900), que defendia o bem como documento histórico, com todas as marcas legadas pelo tempo, sendo admitidas apenas ações de conservação para evitar degradações aceleradas.

Assim, as ideias preservacionistas foram polarizadas no ambiente europeu, tendo início um debate que perduraria até os dias de hoje, que diz respeito ao

4 O pessimismo em relação à sociedade e à civilização, a crença de uma natureza humana pura,

corrompida pela cultura, a exaltação da natureza, da nostalgia do primitivo, a preocupação com o original, junto ao subjetivismo e à sensibilidade, marcariam o Romantismo francês

conservar e ao restaurar, ou seja, aos critérios de intervenção no patrimônio.

1.2.1. O restauro estilístico

Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc iniciou sua carreira como arquiteto na década de 1830, rica em debates sobre as artes e em meio a um ambiente intelectual favorável à arquitetura gótica.

Viollet-le-Duc atuou na restauração da Igreja de Vézelay e da Catedral de Notre-Dame de Paris e participou de muitos outros projetos para igrejas da França. Dentre seus escritos destaca-se o Dictionnaire Raisonné de l'Architecture Française

du XI au XVI Siècle (1854-1868). A teoria e a prática do restauro na França foram

sendo dominadas por Le-Duc.

No verbete "Restauração" de seu Dictionnaire Le-Duc definiu: "Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento". (LE-DUC, 2007, p. 29).

Assim, defendia a destruição dos acrescentos, trazendo de volta ao monumento o seu estado mais puro, mesmo que ele nunca houvesse existido: "[...] o melhor a fazer é colocar-se no lugar do arquiteto primitivo e supor aquilo que ele faria se, voltando ao mundo, fossem a ele colocados os programas que nos são propostos." (VIOLLET-LE-DUC, 2007, p. 65).

O original e a volta ao estado primitivo, fundamentados no Romantismo, eram essenciais. O arquiteto deveria continuar a obra mediante documentos ou através de regras de estilo ou edifícios circundantes, melhorando a edificação e promovendo uma fruição mais longa e uma destinação adequada. (VIOLLET-LE-DUC, 2007, p. 68).

Apesar de seu conhecimento técnico e da coerência de suas formulações, Viollet-le-Duc não aplicou totalmente suas ideias e realizou restauros fantasiosos. Foi pioneiro, contudo ao destacar as dimensões social e econômica da arquitetura. Suas ideias foram seguidas por todo o século XIX, e ainda durante o século XX, por toda a Europa, permanecendo atuais vários aspectos de sua teoria.

Restaurar não só a aparência da edificação, mas também a função portante de sua estrutura, conservando não só a matéria, mas também um “espírito” da qual ela é suporte, é um aspecto importante na concepção de Le-Duc e fundamental para ideias que se desenvolveriam posteriormente, conforme destacado por Kühl na apresentação do livro do autor (VIOLLET-LE-DUC, 2007, p. 23).

O entendimento do aspecto material, não somente como um documento do passado, mas como suporte de memória portador de fazeres sociais, será importante na discussão acerca da preservação e da restituição de significados ao patrimônio de Jaguarão, através da conservação e da restauração de seus bens.

1.2.2. O movimento anti-restauro

O movimento de preservação dos monumentos históricos na França repercutiu em vários países da Europa. Novas ideias e tendências surgiram.

A década de 1850 consagraria o monumento histórico na maioria dos países europeus, ainda que a industrialização tenha ocorrido de maneira irregular nos diversos países5.

O rompimento com modelos de produção tradicionais refletiu em todos os

5 A Inglaterra foi o primeiro país a criar as condições para o desencadear da Revolução Industrial. Após

1830, a produção industrial se descentralizou e rapidamente se expandiu para outros países, a exemplo da França. Sobre esse assunto ver AQUINO, Rubim S. L. [et. al.]. História das Sociedades: das

aspectos da vida e marcou a cisão entre “um antes”, onde se encontrava o monumento histórico isolado, e “um depois”, marcado pelo início da modernidade. (CHOAY, 2006, p. 127). As incertezas de um período de mudanças acarretaram uma busca das origens.

Na Inglaterra ideias opostas às de Viollet-le-Duc foram protagonizadas pelo sociólogo, escritor e crítico de arte John Ruskin e seus seguidores, dentre eles Willian Morris (1834—1896).

Ruskin e Morris introduziram temas como a inclusão da dimensão ecológica na abordagem da preservação, a associação entre o meio ambiente natural e o meio ambiente construído e a inclusão dos conjuntos urbanos no conceito de Monumento Histórico. Suas ideias foram difundidas por toda a Europa em debates e conferências, gerando o "Movimento Anti-Restauro".

Ruskin, considerado o maior teórico da preservação do século XIX, fez várias viagens à Itália, de onde retirou muitos exemplos citados em seus livros, “As Sete Lâmpadas da Arquitetura” e “As Pedras de Veneza”.

O "Movimento Anti-Restauro" teve suas bases fundamentadas nas “Sete Lâmpadas”, principalmente na “Lâmpada da Memória” e repercutiu em toda a Europa. Contrapondo-se ao restauro, o movimento pregava a conservação dos monumentos.

A máxima “a Arquitetura deve ser feita histórica e preservada como tal”, ainda hoje deve ser motivo para reflexão no que diz respeito à nossa própria produção arquitetônica, que será histórica no futuro.

Para tornar a arquitetura histórica, a memória — uma das “Sete Lâmpadas da Arquitetura” — seria componente fundamental. Ao se tornarem memoriais ou monumentais, os edifícios atingiriam uma verdadeira perfeição. Dentre esses edifícios, Ruskin incluía, de maneira pioneira, a arquitetura doméstica, considerando

ser a que originava todas as outras. (RUSKIN, 2008, p. 55-59).

O valor histórico seria o maior valor a preservar, sendo inútil a busca pelo estado original, pregado pelo restauro estilístico. O autor considerava a restauração como a pior forma de destruição que um edifício poderia sofrer. Entendia a restauração como uma mentira, responsável pela criação de falsos históricos, e destacava a importância da conservação.

Com Ruskin a oposição entre restauração e conservação foi explicitada, tornando-se questão chave na discussão sobre os critérios de preservação e de intervenção no patrimônio, perpassando as teorias que se seguiram e perdurando até nossos dias.

A partir do caso particular de Jaguarão observaremos a importância tanto da conservação quanto da restauração. Uma ação não exclui a outra, tratando-se de uma questão de “administração de perdas” em função dos valores a preservar.

A temática dos valores, tratada de maneira pioneira pelo austríaco Alois Riegl, será abordada a seguir.