• Nenhum resultado encontrado

2 LITERATURA E CINEMA BRASILEIRO: UM DIÁLOGO

2.2 Tradução, sistema literário e reescritura

2.2.2 A posição da adaptação fílmica

De maneira análoga à postura padrão que impregnava o pensamento inicial sobre o valor da tradução literária, a adaptação cinematográfica também se viu, e muitas vezes ainda é vista, a partir de um olhar hierarquizante que define o lugar desse tipo de reescritura abaixo dos textos de partida, como escreveu Robert Stam,

A linguagem convencional da crítica sobre as adaptações tem sido, com frequência, profundamente moralista, rica em termos que sugerem que o cinema, de alguma forma, fez um desserviço à literatura. Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”, “vulgarização”, e “profanação” proliferam no discurso sobre adaptações, cada palavra carregando sua carga específica de ignomínia (STAM, 2006, p. 19-20).

Na verdade, o próprio cinema enquanto meio de expressão aparentemente ainda não encontrou um terreno seguro em que possa ser reconhecido como uma obra de arte “séria”, como a literatura, a pintura e a arquitetura, por exemplo, sendo, assim, por diversas vezes objeto de crítica e desconfiança. Talvez poderíamos formular um entendimento desse preconceito a partir da análise de uma característica moderna que Walter Benjamin apresentou como sendo uma idiossincrasia das novas formas de produção culturais surgida a partir da fotografia: a “reprodutibilidade técnica”.

Segundo Benjamin, em seu ensaio seminal “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”, publicado originalmente em 1927, o conceito clássico de obra de arte, centralizado na ideia de “aura”, a característica de unicidade dos objetos artísticos que só pode ser percebida diante da obra original, pois se perderia em sua cópia, é desestabilizado com a proliferação dos processos técnicos de reprodução; a imprensa, a fotografia e o cinema surgem como símbolos de uma nova maneira de apreender e consumir arte, tanto no que se refere à popularização dos objetos artísticos, que, antes, eram limitados apenas a uma casta seleta que possuíam o capital econômico e simbólico necessário para estar diante de uma produção única em museus ou em coleções privadas; quanto no esmaecimento da ideia de originalidade e, consequentemente, da de aura, pois, com a reprodução em grande escala, os elementos inerentes à unicidade da obra primeira foram diluídos diante de seus “duplos”. Consequentemente, com a popularização desse mecanismo de desmistificação do objeto artístico a partir de sua replicação acabou por promover o surgimento de meios de produção culturais já naturalmente integrados a esse caráter reprodutivo, como a fotografia e o cinema, que, por já “nascerem” como textos sem originalidade, tendem a ser mal recebidos pelas instituições legitimadoras. Porém, é justamente graças a essa nova condição da obra de arte, desprendida de seu caráter único, que atualmente torna-se cada vez mais pertinente trazer os estudos da tradução de volta à cena.

Ao pensarmos no posicionamento de Benjamim em relação à diluição da originalidade promovida pela reprodutibilidade, juntamente com o viés sistêmico com o qual Zohar e Lefevere propõem a desmitificação da ideia da literatura enquanto objeto puramente estético desligado de disputas ideológicas, podemos visualizar mais claramente a posição ilustrativa das reescrituras no interior do sistema cultural contemporâneo. O destaque dedicado à reprodutibilidade e suas potencialidades enquanto instrumento desestabilizador de paradigmas culturais aparece como recurso fundamental para se poder estudar determinado texto literário afastando-o de sua pretensa “sacralidade” e o aproximando, assim, à categoria de

produto cultural integrado ao seu contexto de produção permitindo ainda sua interação direta com outras produções do sistema, incluindo reescrituras.

O que é colocado em xeque, então, nesse cenário, é a ideia de originalidade e a possibilidade de se ter um sistema literário destacado do sistema cultural mais geral. Como vimos antes, com a mudança de paradigmas oferecida pela postura teórica do “pós” e os estudos sistêmicos, o conceito de literatura foi expandido, tornou-se mais fluido ao legitimar o papel assumido por profissionais e instituições na configuração desse campo, além de entender o texto como um espaço dialógico, com intenções e posturas de leituras diferenciadas, desestabilizando, por fim, o ideal de valor. Dessa forma, a chamada literatura inferior, entre elas a literatura traduzida, ou a reescritura, é assumida contendo as mesmas potencialidades do texto de partida, e podendo influenciar de forma definitiva as disputas entre o centro e a periferia do sistema, e, como afirma Stam, o mesmo se dá com a adaptação, já que

Conforme a teoria descobre a “literaridade” de fenômenos não-literais, qualidades consideradas como literárias se revelam cruciais para o discurso e prática não literários. A inclusão do subliterário no literário, a reformulação da própria categoria do literário como uma configuração instável e sem um fim determinado, neste sentido, produz uma visão mais tolerante do que comumente é visto como um gênero “subliterário” e “parasitário” – a adaptação. (STAM, 2006, p. 21).

Os estudos relacionados às reescrituras propostos por Lefevere, como afirma o próprio, podem ser expandidos para qualquer outro tipo de texto traduzido, entre eles a adaptação fílmica, porém esse tipo específico de reescrita não foi focado pelos trabalhos do teórico; por tal motivo, e como “não vamos conseguir compreender o fenômeno tradutório enquanto tentarmos distingui-lo da adaptação, imitação etc.” (LAMBERT 2011, p. 47), faz-se necessário buscarmos outros referenciais que se voltem para esse modelo específico de tradução ligando-o ao contexto sociocultural e aos elementos de interveniência extratextual que são partes inerentes às reescrituras dentro de sistemas dinâmicos. Proporemos, então, para pensarmos a problemática da adaptação, em relação direta com suas questões culturais e de conteúdo, o atual e reconhecido estudo sobre o tema oferecido por Linda Hutcheon em Uma

Teoria da Adaptação (2011).

Para Hutcheon, a adaptação poderá ser entendida como tradução sempre que o conceito de tradução se referir a um processo de transação entre textos e línguas mais do que apenas uma técnica de transposição de significados. Ou seja, quando a tradução se refere à prática de “transmutação” ou de “transcodificação” entre um sistema de signo para outro, como é o caso da adaptação de palavras para imagens (HUTCHEON, 2011, p. 40); outra possibilidade de aproximação entre os dois conceitos se dá quando aceitamos a paráfrase como sinônimo da

prática tradutória. Em ambas as possibilidades de relacionar tradução com adaptação é visível a característica de autonomia formal apresentada pelo texto adaptado diante do texto de partida, tornando, assim, pertinente aceitar o conceito de reescritura, proposto por Lefevere, para se referir também às obras adaptadas.

Entretanto, para além de uma simples comparação de equivalência significativa entre os dois termos, Hutcheon oferece um valioso estudo sobre o papel assumido pela adaptação na contemporaneidade, ou pós-modernidade – como a autora prefere se referir à realidade presente –, e sua importância para a história da própria cultural. Segundo Hutcheon (2011, p. 24), apesar de ainda ser vista como uma “simplificação” do literário, ou uma prática desvalorizada, a adaptação sempre existiu na cultura ocidental, até fazendo parte de sua constituição através do velho hábito de compartilhar e roubar histórias, como através da conservação, por meio da escrita, de histórias e mitos clássicos que só podiam ser reproduzidos de forma oral na antiguidade. O diferencial que a contemporaneidade e a evolução dos meios de comunicação de massa oferecem à adaptação é o espaço mais amplo no qual podem aparecer essas reescrituras. Hoje, a adaptação é visível não só nos cinemas, mas em jogos eletrônicos e até em parques temáticos, para Hutcheon, “a adaptação fugiu do controle. É por isso que seremos incapazes de entender seu apelo e até mesmo sua natureza se considerarmos somente filmes e romances” (HUTCHEON, 2011, p.11).

O que torna a adaptação tão recorrente seria a sua característica quase paradoxal de produzir, ao mesmo tempo, a repetição e a surpresa, juntamente com o apelo financeiro inerente a qualquer intenção de produzir uma reescritura. Essa “repetição com variação” (HUTCHEON, 2011, p. 25) se apresenta no prazer que os consumidores das adaptações sentem ao reconhecer elementos de textos anteriores na reescrita, a lembrança é estimulada criando-se, assim, um gosto pelo ritual. Apesar disso, a adaptação, como um texto novo, também apresenta novas possibilidades de leitura acerca de temas presentes anteriores, estimulando assim, junto ao prazer da repetição, a sensação de novidade, inseparável de um contexto no qual o mercado impõe o diferente como aspecto fundamental para atrair consumidores. Tal relação com o econômico é outro aspecto que estimula a produção de adaptações. Como vimos antes, Lefevere já havia destacado o aspecto econômico que tange alguns posicionamentos do mecenato, e essa característica, que sempre esteve entrelaçada ao sistema cultural, mostra-se ainda mais pertinente no cenário atual, visto que o lucro e o mercado são os norteadores das sociedades contemporâneas.

Pensar, então, as adaptações como repetição e novidade revela o caráter “palimpsestuoso” desse tipo de texto e indica o caminho efetivo a ser tomado para se analisar

a obra adaptada que é, nas palavras de Hutcheon, trabalhar “adaptações como adaptações” (2011, p. 27). Rosemary Arrojo apresenta uma interessante conceituação para esse aspecto observado por Hutcheon:

(...) o substantivo masculino palimpsesto (“raspado novamente”), refere-se ao “antigo material de escrita, principalmente o pergaminho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou três vezes [...] mediante raspagem do texto anterior (ARROJO, 2007, p. 23).

Ao ligarmos a imagem do palimpsesto à obra adaptada indicamos, portanto, que a reescritura se encontra em constante relação com textos anteriores, e a leitura da adaptação acaba por trazer à tona a intertextualidade inerente a esse tipo textual. Entretanto, por mais que a adaptação seja sempre um objeto que depende de outros textos para existir, isso não significa que ela não deva ser vista como obra autônoma. Na verdade, é essa característica de ser um texto repleto de referências e citações que atribui a duplicidade que define uma adaptação, pois “embora as adaptações também sejam objetos estéticos em seu próprio direito, é somente como obras inerentemente duplas ou multilaminadas que elas podem ser teorizadas como adaptações” (HUTCHEON, 2011, p. 28). É nesse contexto que devemos pensar a adaptação.

Sendo um texto no qual se encontram ecos de vários outros e ainda expõe distinções, o objetivo de encontrar equivalência de significado entre o conteúdo da adaptação e o da obra ao qual ela se refere mostra-se como impossível. Diante dessa impossibilidade, como, então, poderíamos apreender um determinado texto enquanto adaptação e definir o que guia seu processo de construção? Hutcheon propõe a análise do texto adaptado em duas linhas relacionadas: assumindo-o como processo e como produto acabado (2011, p. 29). Enquanto entidade ou produto formal, a adaptação é entendida como uma transcodificação anunciada a partir de uma ou mais obras particulares. Nessa linha de análise, devemos nos concentrar nas possíveis mudanças de mídia, de temática, de forma e de foco narrativo que o texto de partida pode ter sofrido ao ser reescrito. Já ao focarmos na adaptação enquanto processo, precisamos repartir essa categoria em “processo de criação e processo de recepção”.

O processo de criação está ligado ao polo produtor da reescrita. Ele abarca as (re)interpretações e (re)criações promovidas pelo autor da adaptação. Uma vez que “os adaptadores são primeiramente intérpretes, depois criadores” (HUTCHEON, 2011, p. 43), buscar compreender o processo de criação resvala em questões ideológicas naturais ao reescritor e seu contexto, além da problemática relativa à mudança do suporte na adaptação, visto que existem idiossincrasias presentes em cada tipo de mídia que, mesmo não interferindo na possibilidade de contar uma história, oferecem instrumentos de simbolização narrativas

particulares para cada suporte. Logo, qualquer mudança nítida de foco presente no texto adaptado ou no veículo em que a história é publicada deve ser observada com uma postura crítica e distanciada, não relevando o caráter intencional dessas modificações.

No que se refere ao processo de recepção, o conceito de palimpsesto e intertextualidade nos dão o norte necessário para compreender como o público reconhece os outros textos e as referências presentes nas adaptações que consomem. É um estudo baseado no polo receptor e suas potencialidades de apreender o aspecto dialógico da adaptação. Por exemplo, determinadas reescrituras, como a segunda versão para o cinema de A Fantástica

Fábrica de Chocolate (2005) de Tim Burton, pode ser entendida tanto como adaptação da

primeira versão cinematográfica de Mel Stuart (1971) para um grupo específico de receptores, como pode ser vista como uma obra adaptada do livro de Roald Dahl (1964). Dependendo do conhecimento prévio dos receptores, o efeito de recepção provocado pela obra vai se dar de forma completamente diferente.

Diante dessas duas possibilidades de análises acerca da adaptação – como produto e processo – fica livre o caminho para nos desprendermos da necessidade de encontrar equivalências e debruçarmo-nos sobre como a adaptação surge no sistema cultural e de que maneira pode ser vista enquanto repetição e novidade pelo público receptor dentro de um contexto sociocultural em constante contato com adaptações de diversos tipos. Como lembra Stam,

Sob uma perspectiva cultural, a adaptação faz parte de um espectro de produções culturais niveladas e, de forma inédita, igualitárias. Dentro de um mundo extenso e inclusivo de imagens e simulações, a adaptação se torna apenas um outro texto, fazendo parte de um amplo contínuo discursivo (STAM, 2006, p. 24).

É dentro desse ponto de vista que apreende a obra adaptada em sua constante relação com outros textos e com o seu contexto de produção eivado de “imagens e simulações” que buscaremos analisar o filme O Cheiro do Ralo, de Heitor Dahlia, juntamente com o romance de Mutarelli, sempre levando em conta o meio sociocultural no qual eles estão inseridos e que, de certa forma, expõem em suas tramas. As diretrizes analíticas oferecidas pelos estudos dos teóricos apresentados nesse capítulo nos permitem apreender tais textos como materiais ao mesmo tempo independentes e interdependentes. Como indicaram Zohar e Lefevere, acerca das tensões constantes entre textos e poéticas canonizadas e periféricas dentro do sistema ou polissistema, mais do que apenas transpor determinado tema, estilo, personagem, enredo, a reescrita pode trazer também um destaque a questões apenas latentes na obra de partida, ou pode surgir como esvaziada de suas potencialidades subversivas, até mesmo

invertendo posicionamentos ideológicos observados no texto primeiro de acordo com as diretrizes atribuídas pelas instituições e profissionais do sistema. Diante disso, as inúmeras possibilidades que o diálogo entre o texto e sua reescrita oferecem são fundamentais para se entender a relevância que o processo de adaptação encontra dentro do sistema cultural, qual a importância de cada mídia dentro de seus respectivos campos e apontar o papel desse processo no contexto sociocultural contemporâneo.

Entretanto, para além das questões formais e midiáticas, a proposta de análise a ser desenvolvida, mais especificamente na última parte desse trabalho, refere-se às potencialidades interpretativas presentes tanto no texto literário quanto no cinematográfico sobre aspectos específicos do ambiente político-cultural em que esses textos estão inseridos – no caso, as relações sociais no contexto da sociedade de consumo. Por serem obras contemporâneas entre si – a adaptação de Dahlia surge apenas quatro anos após a publicação do romance – e ainda retratarem uma história que dialoga de maneira clara com questões do cenário social atual, tais textos oferecem uma visão particular sobre questões inerentes a nossa realidade pelo prisma relativo às possibilidades expressivas e críticas ligadas às formas artísticas na atualidade. Logo, nesse momento se tornará fundamental lançarmos mãos dos instrumentais teóricos oferecidos por Hutcheon sobre a diferenciação entre o processo de adaptação e o produto tradução e como os mecanismos externos e idiossincráticos relativos às mídias interferem no conteúdo narrativo de cada tipo textual, uma vez que existem particularidades na apropriação e exposição do tema referido que requerem uma análise descritiva das possíveis razões das escolhas que permeiam o processo da adaptação e se sobressaem no produto final, apontando para novas interpretações diante do texto de partida. Diante dessas questões, é fundamental entender que cenário é esse problematizado pelo romance O Cheiro do Ralo e como o texto artístico consegue manifestar, diante de todas as influências recebidas, uma visão crítica e reveladora acerca da realidade social.

Documentos relacionados