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CAPÍTULO 2 – DESENVOLVIMENTO E FUNCIONAMENTO PSÍQUICO EM MELANIE KLEIN: BREVE

2.2 A POSIÇÃO ESQUIZOPARANOIDE: TURBILHÃO VERSUS ANESTESIA

Como foi dito acima, neste momento do desenvolvimento psíquico, o ego é apenas incipiente e depende muito das trocas com o ambiente para ir se constituindo e se fortalecendo. Vale dizer aqui que Melanie Klein rejeita a ideia de narcisismo

14 Em um brevíssimo artigo publicado recentemente no jornal da FEBRAPSI, o psicanalista Cláudio Rossi escreveu que, considerando a proposição freudiana de que para o Inconsciente humano a morte não é concebível, podemos pensar que quando um ser humano diz temer a morte, na realidade, o que teme é a perda dos objetos. Nas palavras do psicanalista: “Os seres humanos vivenciam como ameaça mortal a perda das relações harmônicas com as pessoas que para eles são importantes. Temem a dissolução, o aniquilamento de seu ser e sabem, intuitivamente, que sua existência como sujeitos depende estritamente de seus contatos com os outros”. Ou seja, a dependência dos humanos entre si – em maior ou menor grau variando de acordo com o momento subjetivo – é uma realidade inevitável, angustiante, porém incrivelmente enriquecedora.

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primário, ou seja, de um estado anobjetal, de um psiquismo fechado em si mesmo,

como proposto por Freud. Para a autora, as trocas com o ambiente ocorrem desde o início da vida, mesmo que sejam marcadas por uma grande indiferenciação entre dentro-fora, interno-externo, eu-outro. Nas palavras de KRISTEVA (2002):

(...) se pode chamar um quase-objeto, o seio, no sentido de que esse ego frágil não está verdadeiramente separado dele como o estará um „sujeito‟ de um objeto, mas não cessa de levá-lo para dentro e expulsá- lo para fora, construindo-se-esvaziando-se enquanto constroi-esvazia o outro (pp.77-78).

Acompanhando as palavras da autora citada acima, esse movimento inerente ao indivíduo de trazer o mundo externo para o interior e expulsar o mundo interno para o exterior faz com que o que é vivenciado de um lado participe ativamente na construção do outro: “Assim, o mundo interno não é uma réplica do mundo externo; experiências do mundo externo ajudam a moldar o mundo interno, e o mundo interno afeta a percepção individual do mundo exterior” (SPILLIUS, 2006, p.103).

Diante dessa via aberta para o intercâmbio entre interior e exterior, não dando conta de conter em si próprio as angústias suscitadas pela ação interna da pulsão de morte e pelo medo de aniquilamento provindo das frustrações, o que resta ao ego arcaico fazer? Lançar mão de um dos mecanismos de defesas mais arcaicos existentes: a projeção, isto é, colocar para fora, expelir de dentro si os conteúdos que o envenenam, que geram angústia, que dão a ele a impressão de que será atacado, destruído, de que sucumbirá.

Vale dizer que não se trata de um simples colocar para fora, há um destino para esses conteúdos insuportáveis e este é o interior do objeto; a esse mecanismo de colocar para dentro do objeto aquilo que o eu não é capaz conter, Melanie Klein dá o nome de identificação projetiva.

Paralelamente aos mecanismos de projeção e identificação projetiva opera também a introjeção, ou seja, o ego arcaico absorve do ambiente elementos que o alimentam, que o fortificam e que vão constituindo dentro dele um núcleo estável e forte que permanecerá, no decorrer da vida, como uma fonte de segurança, confiança e esperança. De acordo com CINTRA & FIGUEIREDO (2004):

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A introjeção, ao lado da projeção, é um dos mecanismos de defesa mais fundamentais, e ambos são responsáveis pela constituição do aparelho psíquico e dos objetos internos. Introjeção e projeção são também mecanismos reguladores do prazer e desprazer do aparelho psíquico (p.84).

Mecanismos reguladores de prazer e desprazer, dizendo de outra forma: tudo que é bom, gratificante e reassegurador fica, por meio da introjeção, do lado dentro e tudo que é ruim, frustrante e angustiante fica do lado de fora, através da projeção e, assim, o psiquismo vai se constituindo.

Contudo, nem tudo é tão simples assim. Por exemplo, há também a projeção por parte do ego de suas partes boas, tanto visando a “colorir” a realidade sentida como hostil com tons mais suportáveis, como também para proteger o que o ego sente como bom dos ataques provindos de dentro feitos pela pulsão de morte, ou seja, nesse caso o outro se torna um “guardião” das partes boas, pois, estando no exterior, não correm o risco de serem atacadas pelas forças destrutivas do sujeito. Entretanto, ao projetar os bons elementos no mundo externo, o ego pode se sentir esvaziado de elementos alimentadores e totalmente à mercê dos elementos venenosos, o que o leva, de novo, à angústia de aniquilamento.

Além disso, a projeção da destrutividade para o exterior também é uma faca de dois gumes. Isso porque, se, num primeiro momento, se livrar dos elementos maus, da ação da pulsão de morte através da exteriorização alivia o sujeito – nas palavras de KLEIN (1948): “O próprio fato da luta ter, até certo ponto, sido externalizada alivia a ansiedade” (p.299) –, num segundo momento, o ego passa a sentir ameaçado por esses perseguidores maus que, agora, devido à projeção, o ameaçam a partir de fora. Surge, então, a angústia paranoide, tão marcante neste momento do desenvolvimento. Outro mecanismo marcadamente presente na posição esquizoparanoide é a

cisão, ou seja, há somente objetos muito bons e objetos muito maus, estes não se

misturam, são separados de forma rígida e incomunicável. De acordo com SPILLIUS (2006):

O bebê vive num mundo em que ele e alguns objetos são muito maus, enquanto outros objetos e outros aspectos seus são muito bons. As emoções são lábeis; o que é bom vira mau rapidamente e vice-versa, e

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não há reconhecimento de que o objeto bom e o objeto mau são a mesma pessoa. O bebê vive num mundo de objetos „parciais‟, no sentido de que o que seria um para um observador externo, será, para o bebê, pelos menos dois (bom e mau) (p.110).

Pensa-se que essa cisão tem como objetivo organizar as coisas, já que, a essa altura do desenvolvimento psíquico, não há a possibilidade de relativização, de integração, é preciso compartimentalizar para poder viver com um mínimo de segurança. Ressaltando, uma segurança mínima, já que a cisão leva a tormentos terríveis, pois para existir um objeto de bondade absoluta é preciso que haja um objeto de maldade absoluta e é nessa gangorra afetiva que o ego arcaico vai tentando se equilibrar.

Na busca deste equilíbrio precário, surge uma outra “saída” para o sujeito: o isolamento das trocas afetivas tanto com o mundo externo, como com o mundo interno; estamos, então, diante da face esquizoide do funcionamento primitivo. Nas palavras de CINTRA & FIGUEIREDO (2004):

Melanie Klein considera que um dos métodos mais antigos de defesa contra essa dimensão aterrorizadora da realidade psíquica é a sua negação ou escotomização, o que leva a uma diminuição da interação entre mundo interno e externo, e um fechamento sobre si mesmo do aparelho psíquico nascente. (...) A negação da realidade psíquica acaba levando a uma negação da realidade externa: essa defesa é um método poderoso para evitar o sofrimento psíquico, isto é, da própria dinâmica interacional que pode resultar no desenvolvimento psíquico (p.86).

Entretanto, por mais eficaz que este mecanismo de defesa seja para alívio do sofrimento, o indivíduo não apenas para de sofrer, mas também pára de sentir o que quer que seja. Não sentindo ele perde a oportunidade de aprender a viver os afetos sem, necessariamente, ser tomado por estes; ou seja, no momento em que o indivíduo se fecha, ele abafa seu desenvolvimento psíquico que depende, justamente, destas trocas – às vezes difíceis e angustiantes – para acontecer.

Nesse ponto, é importante ressaltar que falar em trocas propriamente ditas com o outro neste período é bastante questionável. Isso porque, embora, como foi dito no início deste subitem, haja um intercâmbio com os objetos (chamados por alguns autores na posição esquizoparanoide de quase-objetos ou pseudo-objetos), estes não

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conseguem ser vistos como tendo uma existência independente do sujeito, ou seja, tudo que ocorre com o exterior e no exterior é sentido como estando, de alguma forma, relacionado à atuação do sujeito.

Sobre isso, KLEIN (1960) afirma: “(...) existe um sentimento de onipotência no bebê que faz com que tanto os seus impulsos de ódio quanto os de amor lhe pareçam extremamente poderosos” (p.311). Não seria esta uma forma de fazer um contrapeso à realidade de impotência extrema do bebê no início da vida? Provavelmente sim, já que se houvesse uma maneira de ele perceber o quão dependente é dos outros, a angústia de aniquilamento seria avassaladora. De alguma forma, é a realização dessa dependência extrema – ou, ao menos, um breve relance desta – que leva o bebê a viver uma angústia tão absoluta quando suas necessidades não são satisifeitas.

Ainda sobre as supostas trocas sujeito-objeto na posição esquizoparanoide vale destacar que os objetos são sentidos ou como completa e invasivamente presentes – situações em que há uma fusão entre o eu e o outro, não há qualquer indiferenciação possível – ou os objetos são sentidos como totalmente ausentes, desaparecidos e, como consequência disso, violentos e maus por deixarem o eu tão abandonado e angustiado. Sendo assim, seja por estar grudado demais ou separado demais, quase que é possível afirmar que não há um outro. Novamente, citando CINTRA & FIGUEIREDO (2004):

Em um plano, a identificação é tal que não há espaço para a separação e a alteridade; em outro, a suposição de diferença é tamanha e tão radical que não há espaço para uma alteridade reconhecível e aceitável para a convivência (p.115).

Intensidades extremas, falta de modulação afetiva, onipotência, relações narcisistas e as mais diversas e radicais defesas diante desses fenômenos, isto é, cisões, projeções, introjeções, idealizações e negações; é nesse caldo que o indivíduo se encontra imerso na chamada posição esquizoparanoide.

Entretanto, quando o desenvolvimento se dá de maneira satisfatória, é esperado que se consiga alcançar a chamada posição depressiva, na qual há uma redução do sofrimento, ou melhor, uma transformação na qualidade do sofrimento, é isso que veremos a seguir.

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