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A posição do julgamento das contas no sistema de controle parlamentar

A POSIÇÃO DO JULGAMENTO DAS CONTAS

NO SISTEMA DE CONTROLE PARLAMENTAR DO GOVERNO

ESTABELECIDO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A atribuição do Legislativo de julgar as contas do Executivo integra um abrangente sistema de controle, que se inicia com a escolha das ações a serem desenvolvidas, passa pelo acompanhamento da execução de tais ações e chega à responsabilização pelas falhas, sejam elas legais, técnicas ou político-administrativas.

Antes, porém, de iniciar a análise para identificar a posição desse julgamento no sistema de controle parlamentar, convém esclarecer uma situação um tanto confusa, criada pela redação do Texto Constitucional, o qual, pelo artigo 49, inciso IX, atribui ao Congresso Nacional competência exclusiva para “julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo”. (Grifei)

A utilização de verbos diferentes indica diferentes ações, embora o legislador, por razões de difícil compreensão, as tenha incluído no mesmo período, causando a falsa im- pressão de serem atos conjugados.

O verbo “julgar” 141 denota uma tomada de decisão sobre uma situação já conclu- ída, a qual, por não mais poder ser alterada, resta confrontar com os parâmetros que lhe são pertinentes e emitir sobre ela um juízo de adequação. Denota, pois, a existência de uma resolução, cujo conteúdo implicará em aprovação ou rejeição.

Já o verbo “apreciar” tem aqui o significado de analisar, de avaliar, de examinar, sem, no entanto, comportar a acepção de decidir. Traduz atividade que deve ser realizada simultaneamente com o objeto da apreciação, atividade que pressupõe estar a ação em pleno desenvolvimento, havendo a possibilidade de correções e de ajustes e até mesmo de redefinição de prioridades.

141 LÚCIA VALLE FIGUEIREDO pensa ser inadequado o termo “julgar”. “Considerando-se o monopólio de

jurisdição pelo Judiciário, o correto seria dizer ‘apreciar para homologar’, ‘glosar’ (rejeitar) e, por via de conseqüência, ‘sancionar’. Ocorre, pois, que ‘julgar’ não pode denotar atividade excludente da apreciação do Poder Judiciário. Pode – isto, sim – significar que, exercida a competência, há preclusão administrativa. É dizer, após o julgamento não poderá mais a Administração ou o órgão fiscalizador se voltar sobre as despesas, inquinando-as de ilegais”. (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 4a ed. São

Não obstante, ao longo do Texto Constitucional, o verbo “apreciar” pode ser en- contrado nesta acepção e também como sinônimo de “julgar”.

É o caso, por exemplo, do artigo 71, incisos I e III, que instituem a competência do Tribunal de Contas para “apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da Re- pública, mediante parecer prévio” e para “apreciar a legalidade dos atos de admissão de pessoal e das concessões de aposentadorias, reformas e pensões”. Na primeira, o verbo é usado como sinônimo de analisar, e, na segunda, para definir ação que implicará em apro- vação ou rejeição do registro, caracterizando, pois, verdadeiro julgamento.

A esse respeito, o Regimento Interno do Tribunal de Contas da União prevê, em seus artigos 260 e seguintes, uma série de providências, entre as quais até mesmo um “pro- cesso em tomada de contas especial, para apurar responsabilidades e promover o ressarci- mento das despesas irregularmente efetuadas” (art. 262, § 2º) 142.

É o caso, também dos artigos 58, § 2º, inciso VI, e 136, §§ 6º e 7º da Constituição. O primeiro dá às Comissões Permanentes do Congresso Nacional e de cada uma de suas Casas, competência para “apreciar programas de obras, planos nacionais, regionais e seto- riais de desenvolvimento e sobre eles emitir parecer”. Não se trata aqui de aprovação ou rejeição, já que essa atividade cabe ao Plenário do Congresso, que a realiza durante o pro-

142 Diz a Resolução nº 155, de 04/12/02, que aprova o Regimento Interno do Tribunal de Contas da União:

“Art. 260. Para o exercício da competência atribuída ao Tribunal, nos termos do inciso III do art. 71 da Constituição Federal, a autoridade administrativa responsável por ato de admissão de pessoal ou de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão, a que se refere o artigo anterior, submeterá os dados e informações necessários ao respectivo órgão de controle interno, que deverá emitir parecer sobre a legalidade dos referidos atos e torná-los disponíveis à apreciação do Tribunal, na forma estabelecida em ato normativo. § 1º O Tribunal determinará ou recusará o registro dos atos de que trata este artigo, conforme os considere legais ou ilegais. § 2º O acórdão que considerar legal o ato e determinar o seu registro não faz coisa julgada administrativa e poderá ser revisto de ofício pelo Tribunal, com a oitiva do Ministério Público, dentro do prazo de cinco anos do julgamento, se verificado que o ato viola a ordem jurídica, ou a qualquer tempo, no caso de comprovada má-fé. Art. 261. Quando o Tribunal considerar ilegal ato de admissão de pessoal, o órgão de origem deverá, observada a legislação pertinente, adotar as medidas regularizadoras cabíveis, fazendo cessar todo e qualquer pagamento decorrente do ato impugnado. § 1º O responsável que injustificadamente deixar de adotar as medidas de que trata o caput, no prazo de quinze dias, contados da ciência da decisão deste Tribunal, ficará sujeito a multa e ao ressarcimento das quantias pagas após essa data. § 2º Se houver indício de procedimento culposo ou doloso na admissão de pessoal, o Tribunal determinará a instauração ou conversão do processo em tomada de contas especial, para apurar responsabilidades e promover o ressarcimento das despesas irregularmente efetuadas. Art. 262. Quando o ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão for considerado ilegal, o órgão de origem fará cessar o pagamento dos proventos ou benefícios no prazo de quinze dias, contados da ciência da decisão do Tribunal, sob pena de responsabilidade solidária da autoridade administrativa omissa. § 1º Caso não seja suspenso o pagamento, ou havendo indício de procedimento culposo ou doloso na concessão de benefício sem fundamento legal, o Tribunal determinará a instauração ou a conversão do processo em tomada de contas especial, para apurar responsabilidades e promover o ressarcimento das despesas irregularmente efetuadas. § 2º Recusado o registro do ato, por ser considerado ilegal, a autoridade administrativa responsável poderá emitir novo ato, se for o caso, escoimado das irregularidades verificadas. § 3º Verificada a omissão total ou parcial de vantagens a que faz jus o interessado, o Tribunal poderá considerar o ato legal, independentemente das comunicações que entender oportunas para cada caso”.

cesso legislativo, uma vez que tais planos devem ser editados por lei. Já o artigo 136, ao tratar do estado de defesa, que é instituído por decreto do Presidente da República, diz que o Congresso Nacional “apreciará o decreto dentro de dez dias” e que “rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa”.

Importa considerar, para demonstrar que se está diante de duas realidades distintas, a questão da periodicidade. As contas do Executivo devem ser prestadas anualmente (art. 84, XXIV) e julgadas anualmente (art. 49, IX). Quanto aos relatórios “sobre a execução dos planos de governo”, não há, no Texto Constitucional, outra referência literal a eles, não sendo possível, num primeiro momento, saber com que freqüência tais relatórios serão apresentados e apreciados. Demanda, pois, esforço interpretativo a identificação de quais seriam os relatórios a que se refere o texto.

Se por um lado, por força do artigo 84, XI, deve o Executivo “remeter mensagem e plano de governo ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa, ex- pondo a situação do País e solicitando as providências que julgar necessárias”, por outro não se encontra determinação de que ele deva remeter ao Congresso relatórios sobre a exe- cução de tais planos. O único dispositivo encontrado na Lei Maior, que institui para o Exe- cutivo a obrigatoriedade de apresentar “relatório” a respeito de “execução”, é o § 3º do artigo 165, que manda publicar em “até trinta dias após o encerramento de cada bimestre” um relatório resumido, mas não de execução de plano de governo e, sim, de execução or- çamentária. A menos que se entenda, o que é plausível, que pela via da execução orça- mentária se está executando o plano de governo e, então, o relatório da execução orça- mentária deve contemplar a execução do plano do governo.

Tem-se aí uma conexão possível entre aqueles dispositivos. Os “planos de gover- no” devem estar no Plano Plurianual, devem receber detalhamento na Lei de Diretrizes Orçamentárias e devem ser executados mediante a execução dos orçamentos anuais, a res- peito dos quais deve o Executivo publicar, a cada bimestre, relatórios de execução.

Esses relatórios devem ser apreciados (analisados, avaliados, examinados, mas não julgados) pelo Congresso Nacional, pois, devido à estreita relação que os orçamentos têm com a realização dos diversos planos e programas previstos na Constituição (nacionais, regionais e setoriais), o acompanhamento da execução possibilita um constante aprimora- mento desses planos e das ações do Governo.

E possibilita, também, que o Legislativo acompanhe o desenvolvimento dos traba- lhos realizados pelo Executivo, os quais terão como parâmetro os objetivos fixados nos orçamentos. Isso proporcionará melhores condições para o julgamento das contas. E, note-

se, a mesma comissão mista permanente que deve emitir parecer sobre as contas do Presidente da República, deve também examinar e emitir parecer sobre os projetos das leis dos orçamentos, sobre os planos e programas nacionais, regionais e setoriais e deve exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária.

Marcada, pois, a diferença entre julgar e apreciar, passa-se ao tema deste capítulo. Conforme a classificação adotada neste estudo, a atividade do Governo está sujeita a duas espécies de controle. Há uma que se desenvolve durante a execução orçamentária, pela qual o trabalho da administração é acompanhado e confrontado com as normas que o regem, podendo ser paralisado, se se verificar a ocorrência de irregularidade. Esta é a função de controle ou o controle secundário. E há outra espécie, o poder de controle, ou o controle primário, de natureza política, que se inicia com a escolha das ações a serem realizadas, passa pelo acompanhamento dessas ações, chega à análise do desempenho em relação às metas estabelecidas e culmina com a responsabilização do administrador por falhas de gestão.

Encerrado o exercício financeiro-orçamentário, deve o Administrador elaborar sua prestação de contas, a qual, antes de ir ao Congresso, passa pelo Tribunal de Contas e ali recebe uma análise técnica, para, ao final, ser submetida a um julgamento de caráter eminentemente político.

Decorrem daí quatro possíveis situações: a aprovação das contas que receberam parecer favorável, a rejeição das contas com parecer contrário, a rejeição das contas que receberam parecer favorável e a aprovação das contas com parecer contrário.

Isso ocorre porque o julgamento das contas envolve tanto a análise da legalidade dos atos praticados ao longo da execução orçamentária, como a análise do desempenho do administrador. E esta análise, da gestão, pode levar à aprovação ou à rejeição das contas, independentemente do parecer técnico ter sido favorável ou contrário.

O julgamento das contas, portanto, não tem somente a conotação de um procedimento administrativo de apuração de legalidade, no qual se confrontam os atos praticados com as normas que o regem, mas tem a natureza de um julgamento político, no qual o parâmetro é um juízo de valor.

Assim, se o prestador de contas tiver contra si a acusação da prática de um ato ilegal, poderá se defender no âmbito do controle judicial, em processo que apurará a legalidade do ato praticado. Se, porém, pairar contra si a acusação de não ter feito as escolhas adequadas para atender às necessidades da população, não terá como levar a discussão ao Judiciário, pois que se trata de avaliação política.

Neste caso, o foro apropriado para esse debate é o do próprio Legislativo e o momento apropriado é o do julgamento das contas. Embora seja própria da Democracia a possibilidade de que as críticas sejam realizadas freqüentemente, a diferença é que, quando do julgamento das contas, o desempenho do Administrador não será apenas objeto de apreciação, mas de uma decisão.

Uma decisão contrária, no entanto, como se verá no capítulo seguinte, só trará alguma consequência para o responsável, além da repercussão política negativa, se estiver fundamentada na prática de ato doloso de improbidade administrativa.

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