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2 QUADRO TEÓRICO

2.1 A PRAXEOLOGIA ESTRUTURALISTA E AS TRAJETÓRIAS DE VIDA

O primeiro ímpeto, a necessidade de contar a história, começou a encontrar seus pontos de apoio quando conhecemos a análise bourdieusiana feita por Vale-Neto (2017) sobre os membros da gestão 2011-2013 da Secretaria de Cultura do Governo do Estado de Pernambuco, da qual o autor fez parte (assim como também da ocupação do Cais), onde encontramos os subsídios teóricos necessários para construir nossos questionamentos sobre o MOE. Foi então que tivemos conhecimento do conceito de habitus:

Os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro. (BOURDIEU, 2013, p. 87)

O estudo sociogenético de Vale-Neto sobre as trajetórias de vida de suas colegas de repartição aponta que, imbuídas nas necessidades objetivas dos indivíduos, assim como nas suas interpretações e relatos pessoais, há disposições transgeracionais que são capazes de estabelecer reflexões e vínculos para além das frações de classe a que os entrevistados pertencem, quando, sob condições adequadas, se manifestam na forma de uma inclinação solidária e concêntrica a um objetivo ou missão por parte do grupo (no caso, produzir políticas de cultura popular inclusivas). Uma interessante demonstração do potencial de interpretação das práticas oferecido pelo instrumental teórico bourdieusiano.

Porque tendem a reproduzir as regularidades imanentes às condições nas quais foi produzido seu princípio gerador ajustando-se ao mesmo tempo às exigências inscritas como potencialidade objetiva na situação tal como é definida pelas estruturas cognitivas e motivadoras que são constitutivas do habitus, as práticas não se deixam deduzir nem das condições presentes

que podem parecer tê-las suscitado nem das condições passadas que produzem o habitus, princípio durável de sua produção. Só se pode explicá-las, portanto, com a condição de relacionar as condições sociais nas quais se constituiu o habitus que as engendrou e as condições sociais nas quais ele é posto em ação, ou seja, com a condição de operar pelo trabalho científico a relação desses dois estados do mundo social que o

habitus efetua, ao ocultá-lo, na e pela prática. (…) É na medida e somente

na medida em que os habitus são a incorporação da mesma história – ou, mais exatamente, da mesma história objetivada nos habitus e nas estruturas – que as práticas que engendram são mutuamente compreensíveis e imediatamente ajustadas às estruturas e também objetivamente combinadas e dotadas de um sentido objetivo ao mesmo tempo unitário e sistemático, transcendente às intenções subjetivas e aos projetos conscientes, individuais ou coletivos. (BOURDIEU, 2013: pp. 92-93, 95)

A partir de nosso testemunho pessoal dos acontecimentos ao redor do Cais, assim como de alguns de seus círculos sociais remetentes, enxergamos nesses eventos uma dimensão pessoal, carregada de reflexividade por parte dos ocupantes enquanto grupo e indivíduos socializados. Seria possível dar conta dos efeitos dessa experiência sobre seus sujeitos a partir de um estudo detalhado desses ocupantes, de suas trajetórias de vida, incluindo aí suas impressões e memórias dos acontecimentos aqui tratados, semelhante à forma como Vale-Neto abordou seus colegas de equipe? Teríamos de levar em conta aí nosso compromisso com o movimento e a proximidade pessoal com os entrevistados: como fazer isso sem confundir-se com o apego e substancialização do próprio passado? Cumpre então retomar a análise da presença no mundo, historicizando-o, ou seja, suscitando a questão da construção social das estruturas ou dos esquemas empregados pelo agente para construir o mundo (BOURDIEU, 2001: 179).

Nosso interesse está em discutir os significados capazes de pôr em operação a aprendizagem (incorporação ou dobra, no sentido disposicional apontado por Lahire (2003: pp. 257-259)) que a densidade imersiva dos acontecimentos e ensaio de uma moral coletiva própria da ocupação acarretou para seus participantes, o equivalente à uma sedimentação concentrada daquilo que o senso comum designa como caráter ou personalidade. Se buscamos introduzir a ocupação a partir de sua contextualização na história recente local e nacional, necessitamos, por outro lado, situar os acontecimentos do Cais em uma análise disposicional de seus participantes.

Toda disposição tem uma gênese que, pelo menos, podemos nos esforçar para situar (instância de socialização e momento da socialização) ou para reconstruir (modalidades específicas da socialização). A sociologia

disposicional está ligada fundamentalmente a uma sociologia da educação, no sentido amplo do termo, isto é, uma sociologia da socialização. Embora o uso do vocabulário disposicional não imponha a todo pesquisador, que, em cada pesquisa, tenha de estudar a formação ou a gênese das disposições, ele pressupõe que alguns pesquisadores dediquem uma parte de seus trabalhos ao estudo da constituição (e das condições sociais de produção) das disposições (incorporação). (LAHIRE, 2004, p. 27)

Logo, percebemos que o potencial contextualizador das práticas que nos chamou a atenção em um primeiro momento na tese de Vale-Neto (2017), tanto pela análise das correspondências entre os posicionamentos dos agentes nas situações pontuais e no agregado social como um todo, passando também pela vinculação histórica representada na trajetória de suas incorporações, assim como pela sua capacidade interpretativa não-dualista entre os significados das experiências e as necessidades objetivas em que estão inseridas, são um dos méritos mais destacados da praxeologia estrutural bourdieusiana.

Dessa forma, podemos observar que, na arquitetura do modelo teórico- metodológico de Bourdieu, o acervo das ferramentas conceituais e explicativas mais úteis legadas pelos modos objetivista e subjetivista de análise passa a ser aproveitado em um quadro de referência novo, que toma

ambas as maneiras de investigação como “momentos” de um capturar a relação histórico-dialética entre as trajetórias biográficas dos atores individuais e a reprodução/transformação histórica de estruturas coletivas, tal como essa relação é corporificada em práticas sociais. (…)

Bourdieu edifica seu esquema teórico-sociológico em torno dessa categoria, tomada como o modo mais característico da existência social humana, no qual estão relacionadas e unificadas as diversas instâncias fenomênicas tradicionalmente referidas pelas clássicas dicotomias da teoria social e da filosofia, como indivíduo/sociedade, ação/estrutura, material/ideal, mente/corpo, sujeito/objeto, entre outras. (PETERS, 2013, p. 51)

Estamos falando de processos inerentes à vida social ordinária, com certeza, mas ainda assim, fenômenos que sobre certas condições não tão corriqueiras (cuja aproximação é um dos interesses desta pesquisa) podem ser condensados, catalizando um processo de identificação e reconhecimento de si próprio que é comumente interpretado nas histórias de vida como um norte quase onipresente, elemento responsável pela sucessão dos fatos que as constituem. Mas, se apesar de nossa condição dupla de sujeito e objeto, esta não deveria ser uma variação autobiográfica, já que o sentido que buscamos é o sociológico, como poderíamos proceder neste esforço interpetativo sem estar sujeitos à reificação de nossa cumplicidade natural, tanto com o viés imposto pelas disposições de profissional da interpretação indicadas abaixo por Bourdieu, como com a ocupação do Cais?

A narrativa, seja biográfica ou autobiográfica (…) propõe eventos que, apesar de não se desenrolarem todos, sempre, na sua estrita sucessão cronológica (…) tendem a, ou pretendem, organizar-se em sequências ordenadas e de acordo com relações inteligíveis. O sujeito e o objeto da

biografia (o entrevistador e o entrevistado) têm de certo modo o mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existência contada (e, implicitamente, de qualquer existência). Sem dúvida, temos o direito de supor que a narrativa autobiográfica inspira-se sempre, ao menos em parte, na preocupação de atribuir sentido, de encontrar razão, de descobrir uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, de estabelecer relações inteligíveis, como a do efeito com a da causa eficiente, entre estados sucessivos, constituídos como etapas de um desenvolvimento necessário. (É provável

que esse ganhe de coerência e de necessidade esteja na base do interesse, variável conforme a posição e a trajetória, que os entrevistados atribuem à entrevista biográfica). (…) De fato, sem sair dos limites da sociologia, como responder à velha questão empirista a respeito da existência de um eu irredutível à rapsódia de sensações singulares? Sem dúvida, podemos

encontrar no habitus o princípio ativo, irredutível às percepções passivas, de unificação das práticas e das representações (isto é, o

equivalente, historicamente constituído, logo, historicamente situado, desse eu cuja existência devemos postular, de acordo com Kant, para dar conta da síntese da diversidade sensível intuída e da coerência de representações em uma consciência). Mas essa identidade prática só se entrega à intuição na

inesgotável e inapreensível série de suas manifestações sucessivas, de modo que a única maneira de apreendê-la como tal consiste em talvez tentar apanhá-la na unidade de uma narrativa totalizante (…) A análise crítica dos processos sociais mal-analisados e mal-compreendidos que estão em jogo, sem que o pesquisador o saiba, na construção dessa espécie de artefato irrepreensível que é a ‘história de vida’, não é a sua finalidade. Ela leva à construção da noção de trajetória como uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), em um espaço ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes. (…) É evidente que o sentido dos movimentos

que levam de uma posição a outra (…) define-se na relação objetiva entre o sentido dessas posições no momento considerado, no interior de um espaço

orientado. Isto é, não podemos compreender uma trajetória (ou seja, o envelhecimento social que, ainda que inevitavelmente o acompanhe, é independente do envelhecimento biológico), a menos que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou (…) o conjunto de relações objetvias que vincularam o agente considerado (…) ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e que se defrontaram no mesmo espaço de possíveis. (BOURDIEU, 1997: Cap. 3, Apêndice 1)

Ainda assim, ao estabelecer os posicionamentos sucessivos dos agentes nas diferentes dimensões significativas de suas experiências pessoais, é inevitável defrontar-se com a noção de origem, inerente à abstração sugerida pelo conceito de trajetória, ainda que, ao julgo da praxeologia estrutural, passível de ser sucessivamente decomposta nas origens de outros agentes e fenômenos, também significantes e indutores daquilo que vem a ser investigado. A origem, efeito de naturalização duradouro marcado pelas contingências de curto, médio e longo prazo que constituem o nascimento de seu sujeito, imbui inconscientemente (quer dizer, inscrita no habitus) um potencial motriz na trajetória individual em relação a si mesma, que é acionado na medida em que a inércia biológica e espacial do corpo habitado em meio ao espaço físico hierarquizado pela economia simbólica constituem um envelhecimento social do qual os indivíduos dão conta mais ou menos reflexivamente, a depender de predisposições socialmente determinadas. Para Walter Benjamin, o significado da origem só pode ser completamente revelado a partir da entrega ao que ele chama de verdadeira contemplação da experiência: compreender uma obra prescindindo dos processos dedutivos das ‘regras’ da arte (ou efeitos de naturalização) e voltando-se totalmente para sua fenomenologia, o que sugere revelar essa fetichização inerente ao ato de procurar conferir-lhe um significado, feitiço (ou ilusão biográfica) contra o qual esse exercício (reflexivo) se chocará sem cessar, produzindo inercialmente o sentido de sua narrativa.

Na verdadeira contemplação (…) o abandono dos processos dedutivos se associa com um cada vez mais amplo retorno aos fenômenos, cada vez mais abrangente e mais intenso, graças ao qual eles em nenhum momento correm o risco de permanecer meros objetos de um assombro difuso, contanto que sua representação seja ao mesmo tempo a das ideias, pois com isso eles se salvam em sua particularidade. (…) A

origem, apesar de ser uma categoria inteiramente histórica, não tem, contudo, nada a ver com a gênese. O termo origem não designa o processo pelo qual o existente vem a ser, mas sim aquilo que emerge do processo de vir-a-ser e desaparecimento. A origem é um vórtice no fluxo do vir-a-ser,

que em sua correnteza engole o material envolto pelo processo de gênese. [...] Por um lado, aquilo que é original deseja ser reconhecido como restauração e reestabelecimento, e por outro lado, por isso mesmo,

como algo incompleto e inacabado.Em cada fenômeno original se determina a forma sob a qual uma ideia irá constantemente confrontar- se com o mundo histórico, até que se realize na totalidade de sua história. Portanto, a origem não se destaca dos fatos, mas está relacionada à

sua história e seu desenvolvimento subsequente. (…) Isso não implica, entretanto, que todo ‘fato’ primitivo deveria de imediato ser considerado um determinante constitutivo. Deveras é aqui que se inicia a tarefa do investigador, pois ele não pode tomar tal fato como certo até que sua estrutura mais íntima pareça ser tão essencial que se revele como uma origem. O autêntico – o selo da origem nos fenômenos – é o objeto da

descoberta, uma descoberta que está conectada de maneira única com o processo de reconhecimento.(BENJAMIN, 1998: pp. 44-46 apud

AGAMBEN, 2017: Vortexes, tradução livre)

É por recomendações do próprio Bourdieu que estamos procurando na arte a lógica das trajetórias de vida43: se a narrativa biográfica é uma construção retórica em que, no limite, seu sujeito é tanto autor como espectador, condição objetiva portanto análoga à da obra de arte, deveríamos pedir auxílio aos profissionais da interpretação literária para compreender a relação significante entre narrativa e narrador incorporados. O que Benjamin advoga é que há uma certa forma de posicionar-se, de dispôr o corpo perante a obra, perante os fenômenos (portanto, perante as próprias ações, significadas) em que seu significado se revela não pela remetência a uma construção retórica, regras conscientes e pré-estabelecidas de significados possíveis, mas a uma experiência incorporada (ou seja, inconsciente) e, justamente porque sob efeito da suspensão temporária da narrativa, de acepções muito mais profundas e múltiplas (porque menos condicionadas às hierarquias e relações de significado convencionalmente aceitas e porque comprimidas, ocultas pela dobra disposicional) que seu estreitamento dedutivo pelas regras da arte. No mundo dos espectadores da arte e da construção subjetiva autobiografia, o confronto com a origem se dá justamente pela recusa momentânea da própria retórica em troca da experiência incorporada dos fenômenos com que eles se defrontam. Em termos sociológicos, queremos dizer que há circunstâncias excepcionais em que o comprometimento dos agentes com suas narrativas pré-estabelecidas recua, se maleabiliza, e permite experimentar ações que, enquanto a narrativa até então vigente jaz estuporada, se construam novos significados e relações. Esses posicionamentos aparentemente inéditos,

43 Produzir uma história de vida (…) talvez seja ceder a uma ilusão retórica, a uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar (…) parece lógico pedir auxílio àqueles que tiveram de romper com essa tradição no próprio terreno de sua realização exemplar (BOURDIEU, 1997: 76). É de acordo com este conselho que recapitulamos as reflexões de Benjamin sobre a fenomenologia da obra de arte, que aqui extendemos, dada a analogia justificada por Bourdieu, à (auto)biografia, obra de vida. Ambas estão interceptadas pela autoria e pela disputa de seu significado original, onde seus autores, tanto artistas como (auto)biografados, são apenas um dos interessados em conferir-lhe sentido.

entretanto, não surgem do vazio ou de uma presunta liberdade, mas do inconsciente, do habitus, que não está aqui sendo transcendentalizado, sublimado, mas sim desdobrado, expondo suas pulsações inconscientes mais íntimas. Como veremos mais adiante, é nessa chave de confronto entre consciente e inconsciente (o âmbito onde está estruturada a origem) que Bourdieu concebe a possibilidade de que os sujeitos históricos capturados pela naturalização de suas narrativas podem agir reflexivamente. Um dos interesses deste trabalho é, portanto, refletir sobre uma série particular de acontecimentos que pensamos haverem produzido esse tipo de confronto em seus participantes.

Já vimos, a partir das análises de Alonso (2016, 2017) que os milhões de manifestantes que foram às ruas em todo o Brasil em 20 de junho de 2013, subdividos pela autora de acordo com os repertórios patriótico, autonomista e socialista. Até o fim da copa do mundo, a nova onda de movimentos baseados no repertório autonomista, de organização descentralizada e altamente performáticos, voltados para a própria experiência de mobilização política (processo) muito mais do que para seus resultados (ORTELLADO, 2013), foi substituida pelos protestos tradicionais de estilo socialista cujos simpatizantes, partidos e juventudes haviam sido hostilizados nos protestos do ano anterior (vide uma das principais reivindicações do período, ‘sem partido!’), retomando as bandeiras vermelhas e os carros de som com falas de lideranças. O repertório patriótico ganharia espaço somente após o mundial, quando uma diversidade de novos movimentos de direita embarcados no sentimento antipartidário que vinha se estabelecendo desde o ano anterior ganharam espaço, exasperando-se após a reeleição de Dilma Roussef e defendendo uma gama de pautas conservadoras e anti- corrupção, unificadas pelo unânime antipetismo. Nos anos seguintes se estabeleceria assim uma polarização entre defesa e ataque ao Partido dos Trabalhadores, à presidenta Dilma Rousseff e ao ex-presidente Lula. Mas antes disso, na iminência da ocupação do Cais José Estelita, os supracitados novos grupos de direita ainda não haviam se consolidado, apesar de que mesmo ali houve demonstrações do que viria a seguir44.

Se admitirmos que a tomada de posição nessa polarização política parte de um processo de identificação gradativo de seus apoiadores, isso significa que a convergência à esquerda manifesta nos atos de repertório socialista que predominaram até o fim do mundial acontecera antes. Ou seja, apesar de seu caráter marcadamente apartidário, podemos dizer que

44 O grupo de FacebookOcupe-se!, surgido ainda nos primeiros dias da ocupação, dedicava-se exclusivamente a repudiar as declarações do #OcupeEstelita e difamar seus apoiadores, pautado por um discurso que enaltecia os ocupantes como ‘vagabundos’ e ‘desocupados’ que pretendiam impedir o ‘crescimento’ e ‘modernização’ do Cais José Estelita.

a nova geração que fez parte da ocupação do Cais já vinha estabelecendo uma identificação com a esquerda do espectro político, pelo menos desde os protestos de junho do ano anterior. Se o processo de identificação política com a solidariedade perante as classes menos favorecidas e a defesa dos direitos humanos - valores historicamente associados em nosso país com a esquerda - está profundamente imbricado com as trajetórias de vida, como observado por Vale-Neto (2017), acreditamos que a experiência da ocupação sobre-expôs certas disposições consoantes entre si, incorporações histórica e socialmente localizáveis e inconscientemente fornecidas pelos ocupantes, recapitulando e acentuando (atualizando) alguns de seus significados. O posicionamento depreendido dessa dobra do social no indivíduo, por sua vez, é homólogo aos posicionamentos à esquerda de gerações anteriores, em confrontos políticos anteriores, assim como suas respectivas oposições à direita em cada um desses confrontos através da história lhes são análogas. A homologia, nesse caso, quer dizer que de acordo com as contingências do contexto histórico, certas inclinações políticas herdadas pelas novas gerações tem a tendência de se manifestar como uma reedição dos confrontos que as antecederam, ainda que a partir das correlações significativas de seu próprio conjunto de disposições, por sua vez imbricadas em outros campos, além da política.

Podemos considerar, por exemplo, a importância dos movimentos LGBTQ e feminista nos campos militante e político contemporâneos. Ainda que gerações anteriores desses movimentos hajam pavimentado o caminho para a assumpção dessa visibilidade ampliada de ambas as causas, há diferenças significativas quanto ao tipo de repertório de mobilização utilizado pelos movimentos (principalmente as campanhas de visibilização nas

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