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3 LITERATURA INFANTOJUVENIL : CONCEPÇÕES E FUNÇÕES

3.3 A presença da diversidade sexual na Literatura Infantojuvenil

A sociedade contemporânea, a despeito de ter superado muitos dos paradigmas ancestrais que permearam o percurso histórico do homem, ainda convive com essa marca nociva: a marginalização de quem destoa dos padrões estabelecidos como referência por esta mesma sociedade historicamente.

Assistimos, mesmo com o advento da tecnologia, com os avanços da ciência, com as novas descobertas em todos os campos científicos, à manutenção de um pensamento excludente em relação a tudo aquilo que não toma a forma do uniforme, do que se convencionou chamar bom e belo, sobretudo para os padrões ocidentais. Nesta perspectiva, no Brasil, mulheres, negros, índios, homossexuais e outros grupos desfavorecidos política e por vezes economicamente sofrem, além do preconceito que os vitima de forma agressiva, seja verbal ou físico, mas também pela negligencia em um sistema de representação que não os prestigia.

Neste trabalho como um todo buscamos relacionar o trabalho com a Literatura Infantil e a promoção da quebra de paradigmas e preconceitos em relação à diversidade sexual.Neste capítulo em específico, buscamos estabelecer caminhos para o trabalho com a

Literatura Infantil em sala de aula como forma de promover a empatia dos estudantes com a diversidade sexual, quebrando tabus, desfazendo estigmas e rompendo com os paradigmas que se estabeleceram historicamente sobre o assunto.

A escola, feita por adultos, via de regra, com suas práticas corrobora e perpetua preconceitos historicamente arraigados no imaginário coletivo. Ao fomentar a ideia de que azul é cor de menino e azul cor de menina, por exemplo, a escola fortalece esse viés preconceituoso. Como aponta Biagio:

(...) elas aprendem desde cedo, por exemplo, que rosa é cor de menina e azul é cor de menino. Daí acontece muitas vezes, do menino não querer pintar com lápis de cor de rosa porque isso é coisa de menina. E se ele quer brincar na casinha com as bonecas ou com as panelinhas as próprias meninas se sentem incomodadas. (BIAGIO, 2005, p.34).

A sexualidade, embora inerente ao ser humano e, de certa forma, indissociável, de sua existência, tem despertado muitas discussões, quando assumida por indivíduos cujo padrão sexual destoa dos padrões heteronormativos que enxergam na sexualidade, essencialmente a função de procriação e passam a condenar toda prática sexual que não tenha como finalidade a reprodução humana.

A literatura infantil pode e deve ser utilizada como caminho para a desconstrução desses preconceitos historicamente construídos, que acarretam ônus e danos aos indivíduos que se enquadram fora dos padrões convencionados pela sociedade como referência de aceitável e que bem mais que excluir, marginalizam e violentam quem, por acaso, assuma uma postura diferente do esperado.

Contudo, apesar do caráter transformador que a Literatura tem e do aparato que ela pode fornecer no processo de formação da criança e do jovem, é preciso entender que a literatura como um todo e a literatura para crianças especialmente sempre estiveram atreladas aos momentos sociais, definindo seu caráter, ora mais lúdico, ora mais pedagógico, dependendo do contexto social e do espírito de cada época. Na sociedade contemporânea não é diferente, a literatura ainda assume forte teor educativo, agora, com o agravante de que ainda deve atender a padrões mercadológicos.

Ainda que a chamada renovação da literatura infanto-juvenil das últimas décadas tenha se colocado sob a égide do abandono do padrão pedagógico explícito, padrão que se manifestava abertamente em lições de moral e em um maniqueísmo de caracteres, por exemplo, é evidente que as “novas” obras, como quaisquer produtos culturais, também são produzidas dentro de contextos, valores, quadros de referência e verdades em que seus autores e autoras se situam, os quais podem ser (ou não) partilhados por pais, mães, professores/as, psicólogos, ativistas de movimentos sociais em favor de determinadas minorias, representantes das próprias minorias, etc. (SILVEIRA, 2003, p. 3).

Neste sentido, antes de qualquer proposta de trabalho com a literatura, o que deve ser alterada é a visão da escola e principalmente do professor em relação à sexualidade na escola. Aspectos como currículo e metodologia, bem como predisposição do professor em elaborar aulas que aliem literatura, deleite e discussão sobre a necessidade de compreender a diferença, não como normal, mas como situação a ser respeitada e aceita no cotidiano, tanto escolar quanto social.

Xavier Filha, em suas pesquisas, aponta que:

[...] a partir da segunda metade do século XX e, sobretudo a partir da década de 1980, houve um aumento editorial significativo de livros com a temática da pesquisa para o público infantil. Também é importante ressaltar que, nas últimas décadas, os livros publicados no Brasil ganharam mais espaço em relação aos traduzidos de línguas estrangeiras. Os livros apresentam os temas de diversas formas, a depender do período histórico em que foram publicados e a partir do referencial teórico e moral de cada época. No entanto, na maioria deles, há elementos independentes desses fatores, como a heterossexualidade, que ainda se configuram como a única e desejável possibilidade de constituição da identidade sexual. (XAVIER FILHA, 2001, p 160).

Os apontamentos da autora baseados em suas pesquisas anteriores corroboram à tese de que os livros para criança têm potencial para abordarem os temas ligados à diversidade sexual, embora o façam pouco e quando fazem, deixem, quase sempre de privilegiar quesitos importantes inerentes à sexualidade, como por exemplo à homossexualidade, que de acordo com a autora, a partir dos levantamentos feitos, “aparece nos livros escritos na década de 2000 especialmente quando a temática é a diversidade familiar.

É importante destacar a importância da Literatura como representante de um contexto social, já que toda literatura é produzida por um sujeito humano, que via de regra, apesar da presença da fantasia como elemento atenuante da realidade em que este sujeito se insere, retrata em sua arte as experiências as quais teve acesso como protagonista ou como observador das relações humanas, sofrendo assim influência direta deste contexto, que está impregnado à sua condição de ser social.

Apesar da dificuldade, uma vez que o autor de livros para crianças tem que, antes de qualquer coisa, considerar os aspectos mercadológicos, que a depender do momento social e político oscilam bastante, nos últimos anos temos assistido ao surgimento de algumas obras para crianças, que ao abordarem a sexualidade, o fazem sob a ótica da diversidade e têm tocado em pontos relevantes, como a homossexualidade, as questões de gênero, a relação da criança com a sexualidade e a inadequação do sujeito com o corpo.

Ainda que menos do que deveria, com menor potencial de mercado e menos penetração nas listas de compras de livros de pais para seus filhos ou mesmo daqueles

indicados pelas escolas em seus currículos, temos na contemporaneidade, obras para crianças que abordam a questão da sexualidade desviante. Um bom exemplo é o livro “O

menino que brincava de ser” de Georgina de Costa Martins, publicado em 2000, que

aborda, além da sexualidade, temáticas como o preconceito, discriminação e (des) respeito à diversidade, destacando a perspectiva da criança que não se encaixa nos padrões que desejam que ela se encaixe e ao mesmo tempo oferecendo a vista do olhar do adulto sobre essa perspectiva da diferença.

Percebe-se, a partir da obra,o montante de preconceitos que ainda está embutido na conduta oferecida pelos adultos à criança em relação a seus comportamentos quando estes não se encaixam nos padrões tidos como corretos ou saudáveis. Em uma passagem da obra, a autora destaca o enfoque patológico que se confere a alguns comportamentos quando estes não atendem à expectativa que se tem em relação à normatividade:

– Já o levei em dois médicos: o doutor Psicólogo e no doutor Psiquiatra – disse a mãe.

– O doutor Psicólogo e o doutor Psiquiatra não entendem de nada. Vamos levá-lo no doutor Endocrinologista. É ele quem sabe tratar dessas doenças. [Avó paterna] (MARTINS, 2000, p. 56).

No mesmo sentido, temos o livro Tal pai, Tal filho? da mesma autora que vai abordar temas como a aceitação das diferenças e a relação da família com essa aceitação, expondo os preconceitos historicamente enraizados, a questão de gênero e da suposta supremacia masculina, que põe o homem como condicionado a não-sensibilidade, incapaz de sentir dor e quando a sente, não poder demonstrar franqueza, tampouco sensibilidade.

A ideia de homem como ser forte incapaz de sentir, sofrer ou manifestar fraqueza aparece no decorrer de todo o livro, mas evidencia-se em alguns trechos, a exemplo do que se segue: “– Homem que é homem não pede colo e não chora. Você já não é mais criança. Tudo mudou agora! Falava o pai, todo dia.” (MARTINS 2010, p. 06).

A obra de Martins favorece a discussão sobre a masculinidade dominante, que por vezes segrega, marginaliza e violenta os indivíduos que não se encaixam neste padrão de comportamento, uma vez que para quem pensa como o pai, personagem de Tal pai, Tal

filho?todo comportamento que se insira fora do contexto do homem como figura dominante,

forte e viril é sinônimo de fraqueza e vergonha.

A obra também enfoca o sofrimento do qual são vítimas os sujeitos, que a despeito de terem controle de seus trejeitos, vozes e gostos, são estigmatizados e postos à margem do convívio social em diferentes grupos, a começar pela família, que em vez de

acolher, proteger e respeitar, por vezes exclui, maltrata e violenta os indivíduos que não atendem às expectativas dos padrões heteronormativos.

Em um trecho do livro, Tal Pai, Tal Filho?o autor evidencia esse comportamento:

– Mãe, por que meu pai é assim? O que fiz pra merecer?

– Meu filho, a culpa é sua, você já é um rapaz. Homem não fala fino, nem anda mexendo as mãos. Tome tino, meu menino, que seu pai é valentão. (MARTINS 2010, p. 9).

Na transcrição acima, evidencia-se a reação comum de adultos em relação ao comportamento dos indivíduos quando estes apresentam comportamentos que por ventura sejam tidos como não adequados ao gênero com o qual pensam que ele se identifica.

A obra não deixa de abordar o sofrimento do indivíduo que apresenta tais comportamentos, ao não se perceber portador dele, não se sentir diferente dos demais, e também a sua imutabilidade, diante da dificuldade de agir sobre a essência, sobre quem se é, não enxergando erro no comportamento: “[...] Minha mãe qual o problema de mexer assim com as mãos? Não sei andar de outro jeito, não grite comigo, não.” (MARTINS, 2010).

De forma mais leve e voltada para uma faixa etária ainda mais incipiente, temos outras duas obras que abordam a questão da diversidade e que merecem ser ressaltados pela forma com a qual conduzem o assunto. A primeira é o livro “Iguais” de Ivo Minkovicius, que tocará na temática das diferenças e da aceitação da diferença como caminho para viver bem. A segunda é Meninos gostam de azul, meninas gostam de rosa, da escritora Nívea Salgado, que aborda a questão da diferença de gêneros, questionando os gostos e posturas socialmente impostos pela sociedade a meninos e meninas, condicionando os gêneros a determinadas posturas e gostos.

Marcia Leite vai além em “Olivia tem dois papais” e retrata uma família homoafetiva composta por dois pais homossexuais, Raul e Luiz, e a pequena Olívia. Chama atenção na obra a naturalidade como a criança lida com a realidade de possuir dois pais e como a autora retrata o cotidiano de uma família homoafetiva com inteira normalidade, de forma leve e encantadora, causando muito mais interesse no gosto peculiar da menina por palavras.

O estranhamento de Olivia em relação à sua família, tida por um colega como atípica, aparece apenas em um trecho, quase no fim da narrativa, quando a menina, em meio a um diálogo corriqueiro com o pai, cita as provocações de um colega, sobre o fato de ela não ter mãe:

– O Lucas é muito bobo, papai, ele gosta de me provocar, dizendo que eu não tenho mãe.

– E você fica triste? – O pai perguntou, preocupado.

– Claro que eu fico. Por que ele também não provoca a Isabela e o Tadeu dizendo que eles não têm pai? Isso não é justo! – Ela exclamou, contrariada.

– É mesmo uma injustiça, queridinha. E o que você responde para ele? – Eu falo assim: “Eu não tenho mãe, mas tenho dois pais só para mim”

– Essa é uma boa resposta, meu bem. Mas sabe, não é todo mundo que acha bom ter dois pais ou duas mães. Cada família é de um jeito. E o Lucas só conhece um tipo de família – o pai explicou. (LEITE, 2010, p. 37).

Percebe-se na obra, portanto, o potencial para abordar de forma direta os preconceitos aos quais os membros de uma família homoafetiva estão sujeitos, bem como estão também os indivíduos com sexualidade destoante dos padrões socialmente impostos.

O livro também, ainda que correndo os ricos de não obedecer aos padrões mercadológicos e de ferir o que algumas escolas e professores consideram cânones para a literatura infantil, apresenta de forma, lúdica, leve e de fácil compreensão a vida de uma família homoafetiva, problematizando a questão do preconceito e da discriminação a que os indivíduos são vítimas.

O escritor Walcyr Carrasco em “Meus dois pais” expõe a situação da criança diante da realidade da diversidade na composição familiar. A obra conta a história de Naldo, um menino que tem que aprender com a sexualidade do pai e com a nova configuração familiar que se desenha quando tem que passar a morar com o pai e o namorado dele.

Naldo inicialmente tem que vencer o próprio estranhamento da situação, quando começa a receber perturbações dos colegas, que comentam maldosamente sobre a sexualidade do pai que é casado com outro homem. O menino se revolta contra o pai e vivencia períodos de luto e revolta, comuns a quem, acostumado com o padrão heteronormativo de família passa a conviver com outra realidade, que além de ser estranha a sua percepção de normalidade, ainda lhe acarreta danos sociais, como a exclusão por partes dos colegas de escola.

O autor faz ainda menção às novas composições familiares, na fala em que o menino descrê a família dos colegas, muitos dos quais vivem apenas com o pai ou com a mãe, outros com os avós, caso de Naldo durante determinado tempo que, insatisfeito com o pai, passa a morar com a avó.

No trecho abaixo fica clara a intenção do autor de abordar a questão da diversidade da composição familiar:

Boa parte dos meus colegas de escola tem pais separados. A mãe da Noemi já casou três vezes e está solteira de novo.A Noemi diz que tanto casamento tem suas vantagens. [...] O Paulo é loirinho, mas tem um irmão de olhinhos bem puxados e cabelos pretos, mais novo. O segundo casamento do pai dele foi uma sansei, que é como se chamam os netos de japoneses. [...] A Elaine não conheceu o pai.

–Sou produção independente, filha só da minha mãe! São tantas famílias diferentes! (CARRASCO, 2010, p. 6).

Entre as obras pesquisadas, chama atenção o livro de Plínio Camillo, o namorado

do Papai Ronca. Dante, o menino protagonista do livro, tem que deixar a vida agitada em São

Paulo e passar a morar com o pai, um professor, e com o Ademar, namorado de seu pai. A pequena cidade, onde o pai do menino mora, se revela, um lugar entediante, hostil ao pequeno Dante, que encontra dificuldades para se relacionar na escola e precisa aprender a lidar com a homossexualidade do pai, conhecida por todos na cidade, razão pela qual o hostilizam e excluem.

O autor cria um verdadeiro thriller, fazendo com que o leitor fique preso ao cotidiano do personagem principal e suas aventuras e desventuras, tendo que lidar inclusive com a rejeição da avó, mãe de seu pai, ao filho, por este ser homossexual.

De forma simples o autor problematiza a questão da homossexualidade e expõe a realidade de quem tem de conviver com os preconceitos e as rejeições por não se enquadrar nos padrões estabelecidos pela sociedade, dando ênfase às relações familiares neste contexto e aproveitando para falar sobre a importância da aceitação, bem como dos prejuízos que o preconceito, a exclusão e a marginalização acarretam.

No livro, de fácil compreensão, se destacam os diálogos simples e ao mesmo tempo tocantes, como o que se transcreve abaixo, em que Dante questiona o pai sobre sua sexualidade:

– Você é gay, pai? – Como?

– Quero saber se você é gay. – O que é ser gay, filho?

– Pai! Estou perguntando e não quero responder.

– Filho, sou um homem que adora o filhoque tem e que ama outro homem. – Mas então, é gay!

– Não sei. Sou alguém que gosta do que é. – Não é gay?

– Filho! – É, ou não é?

– Sem entender o que você quer dizer, não sei responder.

– Então tá: gay é aquele que anda rebolando, fala fino e faz coisas como se fosse uma mulher.

– Então eu não sou.

– E que também transa com um homem.

– Então eu sou”. (CAMILLO, 2012, p.113-114).

O autor dá visibilidade ainda, como se percebe pela transcrição acima, à questão dos estereótipos aos quais os homossexuais são geralmente associados, contribuindo, de forma incisiva para a desconstrução de preconceitos e estigmas, além de criar pontes para a inserção do debate sobre a questão da sexualidade e da diversidade em sala de aula.

Pelas obras pesquisadas percebe-se assim que a Literatura Infantojuvenil, apesar de estar atrelada a conceitos mercadológicos e de por vezes privilegiar o caráter pedagógico em detrimento do lúdico e do deleite, conferido à produção de Literatura Infantojuvenil aspectos muito mais didáticos que artísticos, existe na produção contemporânea espaço dentro deste viés da literatura, assim como foi feito em outras épocas, inclusive por Monteiro Lobato, para se trabalhar temas da atualidade e do cotidiano, transpondo-o para a linguagem e para um ambiente em que o aluno seja capaz de compreender e aceitar. Amaral reconhece que: “o apontar e o refletir sobre os preconceitos, os estereótipos, o estigma, as superações, os conflitos – propiciados por uma leitura crítica, reflexiva, dos textos onde a ideia da diferença está presente – é caminho sólido e duradouro.” (AMARAL, 1994, p. 62).

Percebemos, assim, que há na Literatura Infantil produzida hoje caminhos que possibilitam a desconstrução do processo de marginalização histórica, a que certos indivíduos e considerável parcela da população está submetida, ao não se adequar aos padrões estabelecidos e mantidos como referência para a sociedade burguesa.

A manutenção desses padrões, em meio a uma época de muitos avanços tecnológicos, de descobertas da ciência, revela ainda a permanência de um lado obscuro da humanidade: o vínculo com seus instintos ancestrais. A literatura entre as suas muitas faces tem a capacidade de despertar no leitor a sensibilidade, a apreciação do bom e do belo; assim sendo pode e deve ser utilizada em sala de aula como caminho para a desconstrução dos preconceitos tão nocivos e para o desenvolvimento de indivíduos mais empáticos, solidários e humanos.