• Nenhum resultado encontrado

A Previdência Social rumo ao Estado-Providência moderno

3. A Reforma da Previdência Social de

4.1. A Previdência Social rumo ao Estado-Providência moderno

A experiência portuguesa, no período posterior à II Guerra Mundial apresenta, no geral, os contornos básicos da via europeia dominante em direcção ao Estado- Providência democrático e economicamente desenvolvido (Esping-Andersen, 1993: 591-592), o que pode constituir uma eventual dificuldade metodológica. Como enquadrar esta veia modernizante num regime de cariz político não democrático e com um contexto social tão distante da realidade europeia? Como interpretar as evoluções e melhorias reais no sistema de Previdência Social com as suas persistentes limitações na abrangência dos beneficiários e alcance das prestações? Partindo do pressuposto de que ambas as perspectivas são consistentes e válidas e que a sua contraditoriedade pode ter uma importância chave para a compreensão do caso português. Neste sentido, este estudo procura privilegiar a sua perspectiva de complementaridade heurística.

No capítulo anterior, foram explicitados os impactos da Reforma da Previdência Social, sobretudo numa abordagem das evoluções positivas em ruptura com princípios e procedimentos anteriores, tendo-se defendido que a esta Reforma significou uma clara modernização do sistema, aqui entendida no sentido europeu.

Repare-se, então, nalguns dos factos presentes na Reforma de 1962, que evidenciam essa tendência de aproximação ao sistema moderno e europeu. Em primeiro lugar, a previdência procede de um desinvestimento inicial do Estado, que nos anos 30 declarou ser ela obra comum (e quase exclusiva) dos patrões e dos trabalhadores, mas que progressivamente nela foi entrando e assim transformando-a numa espécie de serviço público tipo estadual (Lucena, 1976b: 153). Mas sendo

público, não é, ainda, inteiramente assumido pelo Estado. Primeiro, porque esta modificação é parcial: este serviço público continua a não ser financiado (nem mesmo em parte) pelo imposto e assim o progresso da previdência dependerá, como sempre dependeu, essencialmente, de um esforço dos parceiros sociais. Em segundo lugar, porque se trata de um serviço público sui generis: formalmente as caixas não viraram repartições44, nem os respectivos órgãos são agora serviços ministeriais, nem os seus agentes funcionários de Estado. Apenas sucedeu que, perante uma nova situação, a Reforma de 1962 (Lei n.º 2115, de 18 de Junho) “tentou conciliar a velha aversão salazarista pelo gigantismo do Estado com o proverbial autoritarismo”, conciliação essa que viria a tornar-se cada vez mais difícil e até inviável (Lucena, 1976b: 153-154).

Para além da crescente importância do papel do Estado, há também que considerar que o duplo movimento de especialização segundo os riscos e de centralização administrativa constitui um traço muito moderno (Lucena, 1976b: 157). Em França, a reforma de 1967 manifesta uma tendência análoga à Reforma portuguesa. A sua comparação revela mesmo a profunda semelhança orgânica existente. A principal diferença do organigrama português relativamente ao francês reside porventura no regime dos abonos de família, autónomos neste caso e que naquele surge ligado aos seguros de doença (Lucena, 1976b: 157-158).

Apesar de se considerar que após a Reforma da Previdência Social de 1962 se assistia a um Regime Geral em progresso, mas cuja protecção ainda estaria bastante longe do nível europeu, Manuel de Lucena destaca, igualmente, o facto aparentemente contraditório: “o «europeísmo» é muito nítido no plano das grandes linhas do sistema institucional e no das técnicas jurídicas utilizadas. Em suma, parece que o Direito abre o caminho, devendo os factos seguir-se a uma cadência mais ou menos viva” (Lucena,

44 Sérvulo Correia designou-as por «Fundações públicas», mas fundações em que se concede algum

1976b: 165). Conforme se poderá constatar no decorrer dos próximos capítulos, este será um factor crucial da caracterização do sistema actual.

No âmbito do papel do Estado, importa ainda referir, a consagração do princípio de responsabilidade objectiva no domínio das acidentes de trabalho (Lei n.º 1942, de 27 de Julho de 1963) que, para além da garantia de reparação, implicou, tal como havia acontecido com Abono de família, que os acidentes de trabalho e as doenças profissionais, que faziam parte do Direito de Trabalho, fossem integrados na previdência. Também a Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965 (que reestrutura consideravelmente toda a disciplina do direito à reparação), introduz duas modificações significativas: decreta o seguro obrigatório de todas as entidades patronais e cria um Fundo de Garantia e de Actualização das Pensões (Lei n.º 2127, Base XLIV)45, integrado, precisamente, na Caixa Nacional das Doenças Profissionais (Lucena, 1976b: 172-173).

Para além do plano dos factos, importa ainda procurar interpretar o sentido das evoluções em curso. Todos os aspectos anteriores são reveladores de uma tendência para a unidade do sistema. Considerando apenas o regime geral, esta perspectiva parece clara e inseparável de um movimento centralizador: Federação das Caixas, Caixa Nacional de Pensões e Caixa Nacional das Doenças Profissionais, entre outros aspectos. Esta transição está também patente no alcance da própria Lei n.º 2115, que prevê que, a prazo, o plano da Previdência venha a integrar as Associações de Socorros Mútuos, instituições da quarta categoria que, na altura, tinham cerca de 600 000 inscritos, o que evidencia, mais uma vez, a tendência para a unidade do sistema, quer na cobertura aos beneficiários, quer pela coordenação ou integração no plano institucional.

45 A sua regulamentação acabou por ocorrer com o Decreto n.º 360/71, de 9 de Agosto de 1971 (Lucena,

Parece estar, assim, em curso uma transição crucial: a passagem da previdência à concepção da segurança social como um todo coerente, que aos poucos se vai impondo em Portugal (Lucena, 1976b: 171).

A ideia chave é a de que a “um progresso real da «Previdência» corresponde o reforço da intervenção e penetração estaduais, quer no que diz respeito gestão dos organismos, quer quanto à planificação global” (Lucena, 1976b: 174), em que os organismos de coordenação desenvolvidos a partir dos anos 60 (ver capítulo 3.3.) são fundamentais. Deste modo e de forma indiscutível, o “problema da segurança social põe-se assim como um todo, para além da noção restrita que era a Previdência tradicional. E torna-se cada vez mais um negócio de Estado” (Lucena, 1976b: 174).

Como última ideia, refira-se a importância da transição política do Estado Novo para o Estado Social no período da Primavera Marcelista. O Marcelismo representou a renovação na continuidade do corporativismo, mas com progressos reais. As grandes diferenças, por oposição ao Salazarismo, no projecto foram: o Estado social com a aplicação de medidas fundamentais e, sobretudo, a da liberalização económica e social.

No que concerne à fórmula do Estado Social, esta representou o abandono de certas miragens maximalistas dos anos 30, designadamente a da autodirecção corporativa da economia, mas correspondeu, também, por outro lado, ao acelerar da conversão modernista do regime – lentamente esboçada a partir de 1950 – que o aproximava dos welfare states46 da Europa ocidental (Lucena, 1982: 901). Neste

sentido, é curioso notar que a veia reformista de Marcello Caetano só em matéria de previdência se terá mantido até ao fim assaz consequente (idem: 903).

A transição para o welfare state, ou a integração de certos grupos no sistema, implicou a continuidade de certos aspectos de organização corporativa (idem: 905),

o que, aliás, é coerente com os princípios de estratificação subjacentes aos diversos modelos no espaço europeu e cujas repercussões serão analisadas, aquando da avaliação do sistema de segurança social actual.