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A primazia da aprovação integral da existência

Rosset, em seu livro La force majeure, realiza uma leitura afirmativa de Nietzsche, tendo como ponto de reflexão principal a alegria, aquilo que se configura como a força maior referida no título. O autor ressalta o caráter paradoxal da alegria. Ela pode aparecer sem qualquer motivo, dispensando qualquer razão de existir, chegando a aparecer, inclusive em sua forma mais intensa, nas situações mais adversas possíveis, nos estados de penúria, infortúnio, privação (Cf. ROSSET, 1983, p.11). Ela está, assim, em um plano exterior à razão, 26 Na segunda Consideração extemporânea: “a 'verdade', da qual nossos professores tanto falam, [...] ela é uma criatura de humor fácil e benevolente, que não se cansa de assegurar a todos os poderes estabelecidos que ela não quer criar aborrecimentos a ninguém; pois, afinal de contas, não se trata aqui apenas de 'ciência pura'?” (NIETZSCHE, 2009b, p.177/CE II, ).

em que a lógica não encontra abrigo. A alegria também é paradoxal por se constituir como uma aprovação trágica da existência. Ela estaria perfeitamente ciente dos aspectos terrificantes da vida e ela existe apenas diante dessa contrariedade e comportando uma contradição interna (Cf. ROSSET, 1983, p.25).

Sem razão de ser, a alegria aparece sem espera, como um acréscimo de vida. Ela se constitui como essa força maior que, sem uma causa determinada e específica, não deriva de um ponto central, mas ao contrário, faz com que tudo mais se derive dela. Que ela seja causada, não se dispensa que ela ignore suas causas, de modo que seja permitido falar em um efeito superior à causa, em um processo que, sendo o efeito preexistente à própria causa, ele se manifesta nela, de modo que o papel da causa de uma alegria seja meramente o de ceder o meio para que o efeito se expresse. Rosset invoca Spinoza para ressaltar essa primazia da alegria. Em sua leitura do filósofo judeu: “o único afeto é a alegria (e seu contrário, a tristeza); todo outro afeto não é mais do que uma modificação desse afeto primeiro, visto que ele está sujeito aos caprichos do acaso e da sorte” (ROSSET, 1983, p.12). É desse modo que o autor vê a afirmação da vida em Nietzsche, como uma força primeira, que guia e se manifesta nas outras esferas de sua filosofia. Zaratustra busca que a alegria seja critério até mesmo para o conhecimento: “consideremos falsa toda verdade em que não houve ao menos uma risada!” (NIETZSCHE, 2011, p. 202/ Z, III, Das velhas e novas tábuas, 23), na medida em que, enquanto manifestação da vida em ascensão de potência, o riso se autojustifica: “pois no riso tudo que é mau se acha concentrado, mas santificado e absolvido por sua própria bem- aventurança” (NIETZSCHE, 2011, p. 221/ Z, III, Os sete selos, 6)

Rosset constata que na história da filosofia predomina a ideia de que a alegria só é legítima se situada para além da simples alegrias dos encontros durante a passagem da vida. O autor busca uma concepção de alegria que se situe precisamente na contingência, naquilo que é perecível, mutável, inacabado, impermanente, efêmero: o júbilo terreno, que se dá nos encontros habituais com a fruição da vida, a simples alegria de viver (Cf. ROSSET, 1983, p.19-20). Essa ideia parece ganhar muito espaço no pensamento de Nietzsche. Renegar a alegria pueril da vida em sua ingenuidade em nome da esperança em uma alegria permanente por vir consiste naquela confiança no supraterreno a qual Zaratustra se contrapõe logo no início de sua jornada. Essa ação é própria daqueles que Zaratustra denomina de “transmundanos”, homens esgotados, paralisados, cansados da vida. Contra todo tipo de permanência, Zaratustra é partidário do movimento e da oscilação: “Eu sou um andarilho e

um escalador de montanhas, disse para seu coração, eu não gosto de planícies e, ao que parece, não posso ficar muito tempo parado” (NIETZCHE, 2011, p.145/ Z, III, O andarilho). Ao abandonar toda transcendência, Zaratustra se volta para terra e encontra regozijo nos encontros que realiza com travessias, homens, animais, montanhas, alimentos e consigo mesmo – visto que a variação contínua, a impermanência, a transformação se realizam desde o corpo próprio.

Mas Zaratustra também se entristece. Talvez seja essa a resistência que seria possível encontrar na história da filosofia a respeito da alegria: não suportar a exigência de variação desse afeto, que pode, por muitas vezes, ser vertido em seu contrário, das maneiras mais avassaladoramente inesperadas. Essa exigência também contempla o aspecto paradoxal da alegria, como enfatiza Rosset. Quando o sofrimento subtrai a alegria e invade o espírito alegre, ele ainda é considerado pela sabedoria alegre – enquanto conhecimento trágico – como um estimulante, um “acréscimo de gáudio [gaieté] que prevalece sobre o sofrimento” (ROSSET, 1983, p.43). O sofrimento aparece como uma prova para a alegria. Nas palavras de Zaratustra: “Dissestes uma vez Sim a um só prazer? Oh, meus amigos, então dissestes também Sim a todo sofrimento” (NIETZSCHE, 2011, p.307/ Z, IV, O canto ébrio, 10, grifo do autor).

Rosset inicia seu capítulo sobre Nietzsche e a moral enfatizando as intenções críticas de Nietzsche, mormente nos últimos anos de sua produção, em que estaria concentrado seu projeto de transvaloração dos valores, mas põe em cheque a interpretação – segundo ele, dominante entre comentadores – que faz de Nietzsche um filósofo que pauta sua filosofia sob uma inclinação fundamentalmente crítica, pois a preocupação crítica não poderia estar em primeiro lugar em uma filosofia da afirmação da vida. A crítica seria secundária e proveniente da afirmação. Nietzsche não estaria fundamentalmente engajado na luta contra a moral, contra o cristianismo, contra o platonismo, etc. Assim, Rosset declara abertamente que esse ponto da leitura de Deleuze é contestável. O autor de Nietzsche e a filosofia centra o peso da filosofia de Nietzsche na postura crítica, valorizando a desmistificação como o ponto mais positivo da filosofia e chegando a encontrar a afirmação naquilo que Rosset denomina de “negação dialética da negação” (ROSSET, 1983, p. 74-75).

Rosset reconhece a discussão entre o negativo e o positivo como, possivelmente, o principal problema interno da filosofia nietzschiana, mas é categórico em sua posição: o poder crítico não pode ser o mais positivo, ele deve advir do poder afirmativo. Seria fácil notar,

segundo o autor, que a crítica, enquanto derivada da afirmação, incidiria sobre elementos julgados como não-afirmativos. Entretanto, Rosset se pergunta como essa “crítica dialética” se sustenta a partir da recusa de Nietzsche, em alguns momentos, à luta e a acusação, como no 276 da Gaia ciência, em que é apresentado o amor fati27. Segundo o autor o caminho da resolução da questão consiste em uma delimitação do conceito nietzschiano de crítica.

Em um procedimento negativo, Rosset inicia pela explicitação do sentido de crítica que Nietzsche não faz uso: “pôr em dúvida, contestar, atacar, acusar”. Esse seria o uso mais cotidiano do termo. Assim, seria preciso ir até a etimologia do mesmo, onde se poderia encontrar o sentido do uso nietzschiano da crítica: “criticar significa também e primeiramente, segundo a etimologia grega e latina do termo (Krinô, kritikos, cernere), observar, discernir, distinguir”(ROSSET, 1983, p. 76). Esse segundo sentido não contempla a ideia de combate, luta, conflito. Essa é a razão para Rosset valorizá-lo. Aos olhos do autor, a crítica de Nietzsche não visa o ataque, mas a compreensão; não intenta uma interferência na realidade, não busca remédios, soluções, mudanças, mas consiste em ver e fazer ver; não tem como fito diminuir a tolice e a baixeza do pensamento (como diz Deleuze), mas se efetua como uma espécie de observação impiedosa, embora sem qualquer “má intenção”: “É por isso que os comentadores atuais que atribuem a Nietzsche uma preocupação qualquer com a luta contra os valores estabelecidos, ou contra qualquer outra coisa, me parecem ter feito o caminho errado” (ROSSET, 1983, p. 74-77).

Pensando no aspecto positivo, Rosset acredita haver uma moral em Nietzsche, mas diz que ela é secundária; estabelece sua constituição, em suma, enquanto uma moral do gozo de todas as coisas. O homem virtuoso seria aquele capaz de gozar o mundo. Em contrapartida, aquilo que Nietzsche criticaria, aquele que ele condenaria moralmente, seria o homem do sofrimento e do ressentimento. Rosset concorda com Deleuze na caracterização psicológica desse tipo de homem: ele é impossibilitado de reagir. Ele absorve a dor, o sofrimento, a ofensa, mas não expressa seu rancor; ao invés disso, paralisa. Assim, o homem do ressentimento, impossibilitado de afirmar, não consegue nem mesmo negar. Ele se contenta em emitir falsos “sins” (Cf. ROSSET, 1983, p. 78-79). É ele a quem Nietzsche representa com a figura do asno de Zaratustra.

27 “Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!” (NIETZSCHE, 2001, p. 166/ GC, 276, grifos do autor).

Gostaríamos de avaliar a pertinência de ambos os comentários. Começaremos com Rosset, a quem discordamos em mais pontos e contra quem, inclusive, tomaremos partido em favor de pontos da interpretação deleuzeana. Em um segundo momento, pontuaremos nosso ponto de discordância acerca dessa última.