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6. Aplicação do NOMINATE aos ministros do STF

6.1.1 A primeira dimensão

Para entender que tipo de divergência esses ministros possuem entre si, e também para examinar as coordenadas à luz das teorias, é necessário compreender o significado das duas dimensões. A análise dos acórdãos das votações que geraram essas divisões na corte permite fazer isso. Em dois tipos de ações, os votantes se encontraram da maneira apresentada no gráfico, para a primeira ou a segunda dimensão.

Em um grupo de ações, que revela a primeira dimensão, aparece de um lado o AGU, acompanhado de perto do PGR, e do outro lado os ministros, com alguma variação entre eles. Em outro grupo de ações, que revela a segunda dimensão, os ministros Mello, Britto e Aurélio, além do AGU, se posicionaram de forma diferente dos outros votantes. A primeira dimensão deriva de discordâncias em relação a leis de origem federal, principalmente quando há interesse econômico relevante. Já a segunda dimensão trata em geral de leis de origem estadual e expressa diferenças em relação ao papel que cabe aos Estados membros na federação, remetendo à discussão sobre a autonomia dos entes federados. Esses mesmos dois grupos de ações foram observados nas dimensões dos outros períodos, analisados com maior detalhe no Apêndice.

Os votantes indicados mais à direita no gráfico tenderam mais a votar pela “derrubada” de normas federais, algumas com interesses econômicos importantes e potencial ônus para o governo com a declaração de inconstitucionalidade. Nesses julgamentos, esses votantes pugnavam pela procedência da ação e pela saída da lei do ordenamento jurídico, enquanto aqueles mais à esquerda eram pela improcedência da ação (pela constitucionalidade da lei).

O julgamento da ADI 4568 é um exemplo em que ministros posicionados mais à direita no gráfico contrariam a vontade do governo federal. A norma em questão era a Lei 12382/2011, que estabeleceu a nova política de valorização do salário mínimo, que deve ser reajustado anualmente até 2015 por decreto do Executivo, levando em conta a inflação e o crescimento real do PIB dos anos anteriores. A ação foi julgada improcedente e a lei continuou vigendo, mas os ministros Aurélio e Britto votaram pela procedência, entendendo que a Constituição exige que o Congresso Nacional participe do processo todos os anos.

Outro importante julgamento feito pelo Supremo na época analisada foi o da ADI 3138, uma das várias ações contra a segunda reforma da previdência (Emenda Constitucional nº 41/2003). O ponto específico analisado nessa ação era a obrigatoriedade imposta aos Estados e municípios de cobrar contribuições de seus servidores com alíquotas pelo menos

63 iguais às cobradas dos servidores federais pela União. A ação foi julgada improcedente, vencidos Mello, Britto e Aurélio, que tem pontos estimados mais à direita.

Outros exemplos de divisões observáveis na primeira dimensão no gráfico ocorreram na ADI 4029, sobre a criação do Instituto Chico Mendes (julgada procedente contra a vontade do AGU, do PGR e de Lewandowski, que têm pontos mais à esquerda) e na ADI 4167, sobre o piso salarial nacional para professores da educação básica e a exigência de mais tempo em sala com os alunos (julgada improcedente, vencidos Peluso, Mendes, Gracie, Lúcia e Aurélio, que têm mais pontos à direita).

O ministro Aurélio está no extremo da dimensão, como aconteceu em outros períodos. Em várias ações, apenas ele votou pela procedência, com entendimentos que, se fossem majoritários, trariam consequências importantes para o governo federal. Um exemplo é a ADI 1698, uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão, em que o requerente alegou inércia do governo federal para erradicar o analfabetismo e implementar o ensino fundamental obrigatório e gratuito para todos, como escrito no texto constitucional. O tribunal considerou que o governo possui vários programas implementados na área e que os indicadores do país vem melhorando, e julgou o pedido improcedente. Aurélio, isolado, afirmou que “Poder Público ainda está muito a dever à sociedade (...) considerando um país que pretenda figurar no cenário internacional” e que “Muito precisa ser feito a respeito”, dizendo que o que existe é apenas o “mínimo” (fl. 719).

Outro caso emblemático é o da ADI 4432, que tratava da uma lei estadual sobre piso salarial de algumas categorias. Apesar de ter origem estadual, a lei decorria diretamente da Lei Complementar 103/2000, que permitiu a criação de pisos salariais estaduais, com determinadas condições. Aurélio ficou vencido e afirmou que a Constituição “quer” o salário mínimo “unificado em todo o território nacional” (fl. 22). De fato, a lei complementar foi criada justamente para contornar os problemas associados às imposições constitucionais sobre o salário mínimo.17 Caso o Supremo entendesse que essa e outras leis estaduais fossem inconstitucionais, toda a agenda por trás da lei complementar estaria perdida. Nesse sentido, outra importante lei complementar que o STF não derrubou, contra o voto de Aurélio, foi a do SuperSimples (Lei 123/2006) na ADI 4033. Apenas ele acolheu o pleito dos sindicatos que entraram com a ação, preocupados com a perda de arrecadação que as isenções tributárias trariam.

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Neri e Moura (2005) avaliam que a lei permitiria aumentar os menores salários da economia sem o impacto fiscal decorrente do aumento dos gastos com aposentadorias e outros benefícios vinculados ao salário mínimo, já que o piso é voltado para os trabalhadores em atividade, além de ter a vantagem de conceder “graus de liberdade aos Estados”. Kummel (2007) considera que o governo sofria com as críticas ao baixo valor do mínimo e, com o piso salarial estadual, “procurou uma solução jurídica capaz de retirar esta pressão pela elevação do salário mínimo apenas de si”.

64 No extremo oposto ao de Aurélio está o AGU, que se posiciona de maneira oposta e aparece com frequência isolado, acompanhado do PGR, defendendo esse tipo de norma. Um exemplo importante é o da ADI 442, uma ação por omissão exigindo que fosse produzida lei complementar prevista na Constituição para estabelecer os critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Contra os posicionamentos do AGU e do PGR, o STF julgou procedente a ação e estabeleceu prazo de dois anos para nova a lei: caso o prazo não fosse cumprido, a partilha seria suspensa.18 Da mesma forma, na ADI 2736, nenhum ministro acompanhou os entendimentos do AGU e do PGR em relação a uma medida provisória que alterava a lei do FGTS (Lei 8036/1990), desincentivando batalhas jurídicas contra o Fundo, mas, para os ministros, ofendendo o devido processo legal.

No Apêndice, as Figuras 54A a 62A reproduzem os exemplos citados no gráfico estimado, possibilitando ver que as divisões nessas votações foram corretamente reveladas nos pontos estimados, com poucos erros, referendando a ideia de que a segunda dimensão trata de interesses do governo federal (p. 130). Como visto anteriormente, Ribeiro (2012) analisou o efeito de “variáveis econômicas” nas decisões do STF e considerou que o tribunal como um todo é sensível a impactos negativos de uma norma nas finanças públicas, mas admitindo que o STF não tem apenas um único comportamento quando julga as ações.

Há uma ressalva que deve ser feita quanto à interpretação das coordenadas do AGU e do PGR nessa primeira dimensão. Parte da distância desses agentes em relação aos ministros pode não ter origem apenas nas divergências em relação às ações, mas também na própria natureza da participação deles. Ressalta-se que, na verdade, o AGU e o PGR não votam nas ações: eles expressam sim seus posicionamentos, mas muito antes da votação de fato ocorrer. Assim, é comum que em algumas ações posicionamentos diferentes do AGU e do PGR em relação a todos os ministros não reflitam divergências, mas apenas o lapso temporal entre a manifestação do AGU e o parecer do PGR e a votação de fato. Na votação, os ministros podem iniciar uma discussão que não tenha sido contemplada na petição inicial feita pelo requerente e nos posicionamentos desses agentes, levando a posicionamentos diferentes simplesmente porque o AGU e o PGR não adereçaram uma determinada questão. Por isso, é de certa forma natural que o AGU e o PGR apareçam, nesse e em outros períodos, distantes dos ministros. Isso implica que a interpretação das coordenadas deve ser feita com alguma cautela. Naturalmente, como visto nos exemplos acima, uma parte importante da distância deles de fato se deve a divergências apresentadas em ADIs em que havia interesses do governo federal.

65 Ressalta-se ainda que considera-se existir interesse do governo federal mesmo em leis que tinham origem no governo FHC. Como parte dessas ADIs tem impacto direto nas finanças públicas, há interesse também do novo governo na manutenção das leis, já que é ele que arcaria com o ônus da declaração de inconstitucionalidade. Além disso, é notório que o presidente Lula não implementou em seu governo uma agenda econômica incompatível com a do governo anterior. Por fim, se a manutenção dessas leis não fosse de interesse do governo corrente, ele poderia buscar a sua revogação (o que não ocorreu nos casos examinados), situação em que as ADIs seriam consideradas prejudicadas pelo STF e não teriam um julgamento definitivo de mérito.