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A primeira obra – Paulística e a tese fundamental do Caminho do Mar

A principal tese de Paulo Prado, que já vinha sendo preparada tão logo se realizou a Semana de Arte Moderna, apareceu aos poucos, entre 1922 e 1925, sob forma de ensaios, no jornal O Estado de São Paulo.88

87 Também na década de 1930, todas estas questões seriam retomadas por dois novos ideólogos da cultura brasileira: Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. O primeiro faria publicar, respectivamente em 1933 e 1936, Casa Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, obras em que o autor iria buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de alguns antepassados a história e a constituição do tipo brasileiro (neste caso, o cenário das plantações de cana em Pernambuco daria origem à sua principal formulação: o cruzamento de três raças: índios, africanos e portugueses) e a decadência do patriarcado rural. O segundo, paulista que publicaria as lendárias Raízes do Brasil em 1936, buscaria delinear uma “psicologia” do povo brasileiro recorrendo a uma nuance central: a cordialidade do homem do Brasil.

88 Neste jornal, foram publicados os seguintes artigos, que apareceriam mais tarde organizados em livro: “O Caminho do Mar” (1922), “Cristãos Novos em Piratininga” (1926), “Bandeiras I e II” (1923), “Uma data” (1924), “Fernão Dias Pais – Alguns documentos” (1924) e “A paisagem” (1925). A estes Paulo Prado acrescentaria na segunda edição de Paulística (1934) os ensaios: “O Patriarca” (1926-1923), “Pires e Camargos” (1926), “O Caminho das Minas” (1928), “O martírio do café” (1927) e “Capistrano” (1929).

Confirmavam, de início, estes textos o que o nosso autor diria em 1925 sobre os artigos que integram a sua primeira interpretação histórica: “tudo devem à carinhosa solicitude de Capistrano – até o título que os enfeixa”.89 A carta de Capistrano, de 13.2.1920, não deixa dúvidas quanto a isso: a tese fundamental de Paulística, a do Caminho do Mar, foi toda ela esboçada, desenvolvida e corrigida pelo preceptor de Paulo Prado:

Que sei a respeito do caminho do mar?

1º Era anterior à chegada dos portugueses, obra dos tupiniquins (guaianases não havia em Piratininga, os guaianases eram os Guarulhos), feita do campo para a marinha, porque machado de pedra não era para mata de extremidade desconhecida; nestas condições, mesmo com machado de ferro, nossa gente só se animou quando as locomotivas apoiaram;

2º que o traçado variou mais de uma vez e o exame topográfico pode desvendar variantes, de que são reconhecíveis os vestígios;

3º que é preciso em Anchieta subordinar a legenda à História. Quando Anchieta ainda tinha pouco mais de um mês de chegada à Bahia, já Nóbrega fôra ao campo e determinara o aproveitamento para a catequese. Tenho no maior apreço Anchieta – o padre José que Cardim descreve em dois traços rápidos; mas os jesuítas, à cata de um confrade canonizável, obscurecem toda a história contemporânea.

Sobre o caminho do mar, em falta de Derby, poderia servir Teodoro Sampaio.90

Somente em 1925, com o modernismo em pleno andamento, Paulo Prado organizaria essa série de ensaios historiográficos e os faria publicar em livro. Procurando, como já vimos, justificar sua liberdade colativa diante da história e afirmando ser necessário “submeter a documentação livresca à subjetividade do historiador”, ele anuncia, no prefácio à Paulística, tratar-se a obra de “meros ensaios, sem pretensões eruditas, contendo talvez duas ou três idéias aproveitáveis para maior estudo e desenvolvimento”, não deixando antes de esclarecer, como também já vimos, que “os fatos, por seu turno, são apenas dados, indícios, sintomas em que aparece a realidade histórica”, sendo, pois, imprescindível não se deter tanto na aridez dos arquivos – afinal, não seria isso determinante para a “compreensão da psicologia do passado”.

89 Paulo Prado, “Prefácio à primeira edição” de Paulística, in: Paulística etc., p. 55.

90 Também nas cartas de 7.3.1920 e 5.5.1920 Capistrano ia sugerindo a Paulo Prado o Caminho do Mar. Mas é sobretudo em 23.12.1922 que ele traça o desenho da história de São Paulo, corrigindo mais adiante, em carta de 20.11.1924, o desenvolvimento da tese por Paulo Prado.

Estas considerações de Paulo Prado sobre o papel dos fatos na sua reconstrução histórica do passado são bastante sugestivas, pois reforçam que sua empreitada histórica tinha muito mais o intento de ser uma versão intelectual da história brasileira que coadunasse os anseios de sua classe. Noutros termos, o Paulo Prado intérprete do passado nacional é muito mais um ideólogo, que dá sentido à ação coletiva de sua classe projetando para o passado sua perspectiva de presente e futura, do que propriamente um historiador profissional, sujeito aos rigores do método. E o próprio caráter ensaístico de sua obra reforça isto.

Valendo-se de um argumento expresso no “Prefácio à Poesia Pau-Brasil” (de 1924), nosso autor incumbe-se, nas primeiras páginas de Paulística, de justificar o interesse tardio pela história brasileira: é que, assim como Oswald – que descobrira, deslumbrado, do umbigo do mundo (Paris), a sua própria terra –, a ele também chegara tarde a revelação:

Mais moços – éramos assim nesse tempo – só a Europa nos interessava: era a terra prometida dos nossos sonhos. Lembro-me da injustiça que cometi varias vezes ao partir, deixando com indiferença na sombra da tarde a última linha das montanhas do Brasil, já sonhando num alvoroço de namorado com a paisagem verde-clara das colinas do Tejo – porta amável dos encantos do Velho Mundo. A Europa... (Paulística, p. 56)

Noutros termos, sua imaginação fora, por muitos anos, européia. Coerente com as convicções amplamente difundidas em artigos inaugurais sobre a arte moderna, cabia-lhe agora dedicar-se “às coisas pátrias, ao seu passado, ao mistério dos primeiros habitantes [...], ao patrimônio de uma nacionalidade” (idem, ibidem) que, desde a Semana, estava, segundo ele, em vias de implantar-se em definitivo.

Certo é que Paulo Prado transferia da Semana de 1922 para o terreno da história esta sua intencionalidade bandeirante de fundar a modernidade da nação, mais uma vez trazendo à cena uma sociabilidade fundamental – a do café. Se, segundo ele, aos paulistas estivera reservada a tarefa de fundar a arte brasileira – já que a de outrora era apenas “imitação do decadente” –, em Paulística ele insistirá na fórmula: a de comprovar, sob ângulos distintos, a mesma idéia – ao paulista, “que se conservara afastado dos contágios decadentes da raça descobridora”,91 estariam reservadas as predestinações heróicas e étnicas e a grandeza de uma missão, a de fundar um “país novo”, apagando-lhe o passado de servilismo à Europa, de apego aos vícios coloniais, e o comandando dali para frente.

91 Este assunto Paulo Prado o desenvolverá amplamente em sua segunda obra, Retrato do Brasil: ensaio

Ora, este ímpeto desbravador, bandeirante como também o fora para os assuntos de arte – inspirado talvez no desempenho bandeirante do conselheiro Antônio Prado à frente da Prefeitura de São Paulo, ou do PRP, da Companhia Paulista e da Casa Prado Chaves, abrindo caminho para a modernização da economia cafeeira –, tudo isso, enfim, serve a Paulo Prado como fio condutor de Paulística: a História do Brasil seria anunciada como ramo secundário da História de São Paulo; o nacional dependia e estava, pois, subordinado a uma expressão regional – a paulista.

Não seria coincidência, neste caso, que o capítulo de abertura da obra fosse justamente sobre “O Caminho do Mar” que aprendera com Capistrano, de quem Paulo Prado reformula, desenvolve e confirma a hipótese: O Caminho do Mar exercera função seletiva na formação racial dos paulistas, que não sofreram a influência deletéria da pior espécie de português, o que tinha vícios como a luxúria, a cobiça e o espírito sanguinário. Foi isso que concorreu, segundo nosso autor, para a superioridade de um tipo racial formado pela miscigenação do português heróico da Renascença com o índio já perfeitamente adaptado ao meio. Preliminarmente, já diria ele no esclarecedor prefácio:

Aqui, pouco a pouco, pelo estudo cada vez mais rigoroso das fontes de informação, abrem-se largas clareiras nos quatro séculos que prepararam a magnífica realidade de hoje. A história de São Paulo, nos velhos cronistas, é talvez mais imaginosa do que exata. Taques e frei Gaspar codificaram por assim dizer a legenda que tem constituído grande parte do passado paulista. Atufados nos detalhes eruditos e nobiliárquicos, nessas crônicas aparecem como figuras de lenda João Ramalho, Tibiriçá, Raposo Tavares, Amador Bueno etc. No segundo período da nossa historiografia, longas discussões se travaram sobre questões tradicionais como a do mistério do Bacharel de Cananéia ou a localização da tapera mamaluca de Santo André. A publicação das atas da Câmara, dos inventários e testamentos do Arquivo do Estado e dos Anais do Museu Paulista, trouxeram, porém, uma nova luz para a reconstituição da vida pública e da vida íntima de São Paulo nos séculos passados. Nela surge outro paulista, mais real, mais do seu tempo, mais rude e rústico, labutando numa infernal porfia de ganhar dinheiro e conquistar terras. É um novo ponto de vista, e é também a colaboração do elemento quantitativo na ressurreição histórica. (Paulística, pp. 57-58)

Para emendar, logo em seguida:

Do que pensava o paulista antigo, pouco sabemos. Do amálgama de tipos étnicos diferentes que aqui se fundiram, só nos chegaram indicações fugidias e falazes. Quem foi a gente que na sua frota colonizadora trouxe o primeiro donatário? Que tribos indígenas inçavam de gentio manso ou revoltado os campos do planalto? Guaianás, tipiniquins, maramomis, Guarulhos, tupis ou tapuias? Houve realmente uma “raça paulista”, na incerteza atual da ciência sobre a noção exata do que é uma raça, desde o processo já velho das medidas cranianas até as pesquisas biológicas sobre a composição química do sangue? Qual o resultado da seleção telúrica na

formação étnica do habitante do nosso altiplano? Que impulso subconsciente lançava os bandos aventureiros para o interior da terra desconhecida? Qual a contribuição do sangue castelhano nas famílias paulistas do século XVII, quando o cruzamento se acentuou na população serra acima, pelo fluxo de espanhóis que subiam o Paraná e o Tietê? E o semitismo dos cristãos-novos? E as lutas de família, originadas talvez de tendências opostas, umas nativistas, outras européias? Qual a causa social ou econômica do antagonismo e aversão seculares que separavam os paulistas dos padres da Companhia, depois de meio século de adesão fervorosa? (idem, pp. 58-59)

Como diria Paulo Prado, “esses, e mil outros problemas, pedem solução para que se possa elucidar o desenvolvimento étnico e histórico de São Paulo” – estavam lançados os caminhos a serem percorridos por nosso autor ao longo dos seis artigos da 1ª edição de

Paulística. E, como prelúdio, nada mais natural do que a abertura com a tese fundamental

amplamente debatida com o preceptor Capistrano de Abreu, a do Caminho do Mar – este que teria sido o responsável pelos momentos centrais da história paulista. Em carta a Paulo Prado, datada de 23 de dezembro de 1922 (p. 432),92 Capistrano corrigia os desvios de percurso do discípulo, indicando-lhe pontualmente os traçados da história de São Paulo:

Falei da grandeza de São Paulo por uma questão de método. Você tem de acompanhar a Paulicéia até o seu clímax, mostrar como declinou e como readquiriu seu lugar. Figuremos:

Transpondo tal indicação já no prefácio à Paulística (p. 59), Paulo Prado reproduz o traçado de Capistrano e a ele acrescenta algumas outras considerações:

No largo quadro da história paulista, pelos claros-escuros das diferentes épocas, percebe-se nitidamente traçada uma linha curva que assinala a sua grandeza, sua decadência e sua regeneração. Graficamente a imaginaríamos neste traçado:

92 Como sempre, a nossa referência é ao livro organizado por José Honório Rodrigues, em 1954. ascensão clímax descida regeneração ascensão clímax degeneração regeneração

E acrescentaria Paulo Prado, esclarecendo os motivos do traçado:

Curva ascensional, culminando na expansão colonizadora e mineira do século XVII, quando a ambição dos lavageiros e escavadores de ouro e o ânimo guerreiro substituíram a gana escravizadora dos primitivos aventureiros; curva descendente, resultante do despovoamento provocado por conquistas e minas, atingindo a degradação política, moral e física dos tempos dos governadores capitães-gerais, em que na miséria extrema da província morria vergonhosamente a glória do paulista antigo; curva ascendente para se elevar de novo ao renascimento econômico dos dias de hoje. (idem, ibidem)

Ao “renascimento econômico dos dias de hoje” não poderíamos deixar de acrescentar: promovido pela atividade cafeeira, no seu momento de experiência histórica de relevo no Brasil. Os três primeiros artigos de Paulística, como afirmou o próprio autor, destinar-se-iam a comprovar o traçado histórico dos paulistas. E, neste caso, a principal cartada de Paulo Prado seria divulgar os estudos que desde 1918 estavam sendo esboçados sob o crivo rigoroso de Capistrano de Abreu – o Caminho do Mar:

O Caminho do Mar, por muito tempo único, foi um fator indiscutível na formação do agrupamento étnico que se constituiu no planalto: o caminho cria a raça, disse um sociólogo francês. A sua influência histórica como baluarte de resistência contra as pretensões de mando da metrópole é sensível em cada momento desse magnífico século XVII da história de São Paulo. Ao contrário do papel representado por outros caminhos – caminho da seda, caminho do sal, caminho das especiarias – na evolução das relações históricas entre os grupos humanos, o Caminho do Mar foi toda negativa: isolou em vez de ligar. (idem, p. 60)

Em termos práticos, o Caminho teve a finalidade de isolar São Paulo do resto do Brasil, e esta tese se apresentará mais claramente na segunda obra de Paulo Prado, em que ele desloca o eixo de análise da Paulicéia para o restante do país, excluindo Piratininga de um passado de vícios e mazelas tão amplamente ali narrados e comentados.

Ainda que seu método historiográfico fosse pouco objetivo, estavam transformados em história, pelas mãos de um chefe da burguesia paulista, a formação e o desenvolvimento de um povo, cuja principal missão seria comandar, com “vigor telúrico”, a nação: “no desenvolvimento fatal dos elementos étnicos num meio propício, mais do que

em outras regiões do país [o grifo é nosso], em São Paulo medrou forte, rude e frondosa a

Em Paulística, a intenção de nosso autor é apresentar os prelúdios, o clímax e a decadência da vila de Piratininga para, enfim, sugerir que a sua regeneração tinha uma data precisa, que curiosamente coincidia com a “retomada de posição”, a possibilidade de condução do país pelos paulistas, mediados pela economia cafeeira. Isso reforça o que mais ele vinha esforçando-se por destacar ao longo de toda a década de 1920. Se já nas primeiras décadas do século XX o café conhecia seu auge como principal produto de exportação do Brasil, era a burguesia cafeicultora de São Paulo que, durante toda a década de 1920, detinha os mais amplos domínios sobre a economia brasileira, e foi especialmente neste contexto que surgiram as primeiras noções de que São Paulo deveria representar, sozinho, o país. Essa foi uma convicção que surgiu dentro do próprio PRP – ao qual se manteve ligado o conselheiro Antônio Prado desde o momento de sua fundação – e que tão logo se propagou entre a burguesia cafeicultora: “São Paulo representava um centro de progresso e civilização num país sul-americano desorganizado” (LOVE, 1997, p. 58).

A propósito, a burguesia paulista do café, munindo-se da fórmula do bandeirante desbravador – comprova-o o fato de São Paulo estar à frente da economia brasileira, mesmo enfrentando todos os embargos possíveis à produção e abrindo bravamente caminho pelos mercados estrangeiros –, foi amplamente apoiada nos anos 20 pelo então governador Washington Luís, que tratou de incutir no povo a consciência de se valorizar o passado, lançando para isso projetos históricos e comemorativos, e aproveitando o ensejo para combiná-lo à imagem de futuro promissor.

Aí está a intencionalidade do projeto para o Brasil que Paulo Prado inaugurou com a Semana de 1922: ao paulista, um passado de glórias e conquistas e um futuro de autonomia e liderança – valia a pena apostar nesta fórmula. Naturalmente, se o contato com o resto do Brasil havia implicado tantas negatividades, a raça de gigantes deveria, “num gesto de recuperação de sua própria dignidade”, pensar nas reais medidas desta

reparação, o que para nós não poderia deixar de sugerir que Paulo Prado estava

esforçando-se por validar um projeto para o país, não de separação, como afirma Berriel (2000), mas de reposição da dominação social da burguesia cafeeira paulista.

Nestes termos, o que importa é a função assumida por ele – diretiva e organizativa da vida pratica brasileira –, como ideólogo de sua classe, função que é “educativa, isto é, intelectual” (GRAMSCI, 2006, p. 25). Intelectuais do tipo de Paulo Prado, que tentam

organizar a sociedade, atuam, em especial, no reforço ou na construção da condição

hegemônica de sua classe, conquistando o consenso das demais classes sobre a orientação impressa pelo grupo dominante; “consenso – lembra-nos Gramsci – que nasce

‘historicamente’ do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção” (idem, p. 21).93

Sob este enfoque, a imprescindível atuação de Paulo Prado como intelectual orgânico da burguesia cafeeira paulista dedica-se a: (1) criar/perpetuar/repor o prestígio de sua classe na conjuntura brasileira da Primeira República e (2), nessas condições, esforçar- se por fazer vitorioso o projeto de nação necessário a esta mesma classe de origem – projeto de reposição da dominação social dos burgueses do café numa perspectiva

hegemônica. Ao afirmarmos isso, necessariamente recorremos, e de novo, a Antonio

Gramsci, que referencia teoricamente esta nossa pesquisa sobre Paulo Prado. Deste autor italiano, que escreveu do cárcere suas principais formulações teóricas sobre a sociedade burguesa, importa-nos agora compreender os conceitos de hegemonia e domínio direto, para qualificarmos as pretensões de Paulo Prado e sua condição de intelectual orgânico, o que fartamente vimos utilizando ao longo deste nosso trabalho.

A argumentação de Gramsci neste sentido tem origens em sua concepção de Estado, que ele não considera apenas como aparelho político-jurídico do sistema de dominação social, incumbido somente de funções reguladoras e coercitivas. Para além disso, e entendendo-o em sentido ampliado, ele também o concebe como aparelho ideológico-cultural, capaz de obter o consenso social para a classe dominante, tanto por meio da conquista ideológica, quanto por meio de concessões materiais e políticas. O Estado para Gramsci deve ser, portanto, concebido articulado entre sociedade civil e sociedade política. Daí a distinção por ele estabelecida quanto a ambas as formas ser antes de razão metodológica do que propriamente orgânica:

Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo, identificação que é, precisamente, uma reapresentação da forma corporativo-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral [ampliada] de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é hegemonia encouraçada de coerção” (GRAMSCI, 2000, p. 244)

93 Ao contrário dos intelectuais orgânicos, vinculados diretamente ao processo de produção, para Gramsci, os intelectuais tradicionais, embora colaborem na formulação/divulgação dos projetos/anseios da classe dominante – pensemos nos modernistas cooptados por Paulo Prado –, não possuem com ela relação direta e orgânica. Quem nos esclarece a questão é David Maciel: “Enquanto os intelectuais tradicionais guardam certa margem de autonomia em relação às classes sociais, ao mundo da produção e à própria organização da hegemonia – preservando sua posição de independência como grupo social específico –, os intelectuais orgânicos se integram diretamente no processo de organização da hegemonia, assumindo mais propriamente a condição de funcionários” (MACIEL, 2004, p. 230), plenamente interessado na e a serviço desta hegemonia.

Seguindo o raciocínio, para Gramsci o Estado se apresenta como sociedade civil (o conjunto de organismos comumente chamados ‘privados’) e também como sociedade

política (o aparato burocrático, jurídico-político-militar). Dessa forma, há um conjunto

articulado entre sociedade política e sociedade civil – traduzido por Maciel (2004) nos termos de um “Estado ampliado” –, que organiza e articula as diversas facetas do sistema de dominação social, desde a infra-estrutura – o mundo da produção – até a superestrutura – o mundo da política e da ideologia (p. 221). Daí a concepção de Estado extrapolar o campo da regulamentação e dos aparelhos burocráticos para se articular em dois planos orgânicos: “duas formas em que [...] se apresenta na linguagem e na cultura de épocas determinadas, isto é, como sociedade civil e como sociedade política; como “autogoverno” e como “governo dos funcionários” (GRAMSCI, 2000, p. 33). Neste sentido: