• Nenhum resultado encontrado

A primeira passada litúrgica (30.5-7,10-11) A situação de afl ição (30.5-7)

No documento Versão Completa (páginas 119-122)

A seção 30.5-7 descreve uma situação de angústia e terror, da qual, no entanto, “Jacó” será salvo. A fórmula do mensageiro no início da seção, na verdade, não intro- duz uma palavra de Deus. Quem fala, a seguir, é o próprio profeta:21

5. Ouço22 gritos de pavor; há terror, e não há paz! 6. Interrogai e vede se um homem pode dar à luz! Por que vejo todos os homens com as mãos nos quadris como mulheres em trabalho de parto23?

Por que todos os rostos se tornaram lívidos?

7. Ai! Pois grande é aquele dia, não há outro igual a ele! É tempo de angústia para Jacó, mas ele será salvo!

As expressões “ouço” e “vejo” indicam uma visão e audição proféticas. Na visão, o profeta vê um acontecimento futuro e o descreve como se já fora algo pre- sente (v. 5-6). O v. 7 não mais descreve a visão, mas qualifi ca, através de orações nominais, o acontecimento futuro como dia de incomparável desgraça. Terminologia, estilo e imagens dos v. 5 e 6 podem ser atribuídos com relativa facilidade ao profeta Jeremias. Expressões como as traduzidas acima por “terror”24, “não há paz”25, “tornar- -se”26, entre outras, fazem parte do vocabulário usual do profeta. A transformação da

21 Todas as traduções de textos bíblicos são próprias.

22 O editor da Bíblia Hebraica (W. Rudolph) sugere ler a primeira pessoa do singular em vez do plural do Texto Massorético (“ouvimos”), seguindo e exemplo do v. 6 (“vejo”). No caso de se manter o plural, deve-se entender o v. 5 como citação da fala de um grupo não especifi cado que o profeta insere em sua mensagem (SCHMIDT, 2013, p. 110s).

23 O termo kayyoledah (“como a parturiente”) falta no original da LXX e, além disso, extrapola a métrica. Por isso o termo deve ser uma glosa explicativa (cf. BH e RUDOLPH, 1968, p. 190).

24 Pahad: Jr 49.5.

25 Ein shalom: Jr 6.14; 8.15; 12.12. Em 8.15 (=14.19) também se encontra o paralelismo pahad //ein shalom. 26 Hafach (qal e nifal) “transformar-se em”: 2.21; 13.23.

cor da pele é um motivo que também aparece em Jr 13.23. Típico do estilo de Jere- mias é também o uso da pergunta retórica, em especial introduzida por “por quê”.27 A imagem da mulher em trabalho de parto para caracterizar o terror e o pânico do dia do juízo futuro aparece quatro vezes na mensagem profética ao povo de Judá.28 Diferentes aspectos do trabalho de parto e das dores que o acompanham são descritos com diversas nuanças e com terminologia variada. A parturiente grita e está afl ita por ser seu primeiro parto (4.31), ela geme (22.23), tem dores (6.24) e estende as mãos (4.31); as suas mãos desfalecem (6.24). Em 30.5, a postura dos homens é comparada à posição da mulher que está prestes a dar à luz: com força pressionam os glúteos. A posição aponta para a imobilidade causada pelo terror (cf. 49.22).

O v. 7 não mais apresenta a vivacidade e a plasticidade dos versículos anterio- res. Ele não mais descreve um acontecimento, mas busca defi nir, em orações nomi- nais, “aquele dia” fatídico: ele é grande, incomparável, pleno de angústia. Uma única oração verbal conclui o versículo: “mas ele (Jacó) será salvo!” Essa perspectiva de salvação aparece de forma um tanto inesperada e abrupta. Ela somente é compreen- sível como ponte para o trecho seguinte, que fala da salvação de Jacó: 30.10-11.29 O v. 7 tem, portanto, a função de direcionar o anúncio jeremiânico de juízo para o anúncio de salvação que segue.30 Ele forma a transição para o anúncio de salvação 30.10-11. A salvação futura (30.10-11)31

A seção 30.10-11 é continuação direta de 30.5-7. Trata-se de uma fala divina na forma de um oráculo da salvação.

10. Mas tu, Jacó, meu servo, não temas – dito do Senhor – e não te apavores, Israel!

Pois eis que te salvarei de terras distantes, e teus descendentes da terra de seu cativeiro. Jacó tornará a ter paz,

27 Perguntas introduzidas por maddua’ aparecem 16 vezes no livro de Jeremias, das quais, no mínimo, nove devem ser atribuídas ao próprio profeta.

28 Jr 4.29-31; 6.22-26; 13.20-22; 22.20-23. Além disso, a imagem ainda aparece quatro vezes nos ditos contra as nações. Dessas quatro ocorrências, no entanto, somente 49.22 pode ser considerada autêntica. A metáfora faz parte do imaginário do “dia do Senhor” (BÖHMER, 1976, p. 57ss).

29 As expressões “Jacó” e “salvar” aparecem em 30.10,11.

30 Há autores que afi rmam que os v. 5-7 não provêm de Jeremias, mas são imitação de retórica profética. Se cópia e original são quase idênticos, torna-se desnecessária a pergunta pela autenticidade.

31 Os versículos 30.10-11 aparecem também em 46.27-28, no contexto dos ditos contra as nações. Aí, no entanto, os versículos não fazem nenhum sentido, pois não há relação de conteúdo nem com o dito contra o Egito (que antecede) nem com o dito contra os fi listeus (que sucede). Jr 30.10-11 também falta na LXX. Na versão grega, que tem outra contagem de capítulos, Jr 30.10-11 (TM) deveria constar após LXX 37,9, mas os versículos não estão aí; aparecem somente em LXX 26,27-28, o que equivale a TM 46,27-28. Desde HITZIG, F. Der Prophet Jeremia. Leipzig: Weidmannsche Buchhandlung, 1866. p. 235, a pesquisa tem explicado esse fenômeno da seguinte maneira: a LXX tende a eliminar um texto quando ele aparece pela segunda vez em sua versão do livro de Jeremias. Conforme a contagem da versão grega, TM Jr 30.10-11, de fato, vem depois de TM 46,27-28. Assim, por último, SCHMIDT, 2013, p. 115, nota 30.

viverá tranquilo, sem ninguém que o espante.

11. Pois estou contigo – dito do Senhor – para te salvar. Destruirei todas as nações aonde te dispersei,

mas a ti não destruirei.

Castigar-te-ei conforme o direito,

mas não te deixarei completamente impune.

Já em seu estudo seminal sobre o oráculo de salvação, Joachim Begrich viu evidências de um oráculo sacerdotal também em Jr 30.10-11.32 O “oráculo de salva- ção” é a resposta de Deus ao suplicante que traz seu lamento e sua súplica ao santuá- rio. Em geral, esse oráculo é transmitido pelo sacerdote. Ele deve ser pressuposto toda vez que, num salmo, ocorre a mudança abrupta da descrição de afl ição para a situação de louvor ou alegria pelo auxílio recebido. Mencione-se como exemplo a mudança inesperada entre a profunda afl ição descrita no Sl 22.1-22 e o ardente desejo de pro- clamar o louvor de Deus a partir do v. 23. Presume-se que, entre esses dois versículos, um sacerdote tenha pronunciado um oráculo de salvação ao suplicante, e que esse tenha experimentado ajuda e queira, por isso, dar testemunho dela durante o culto da congregação. Características desse oráculo de salvação são, conforme Begrich, entre outras, a fórmula “Não temas!” e expressões que afi rmam a proximidade de Deus, tais como “eu estou contigo”.33 Os profetas, em especial Dêutero-Isaías34, fi zeram uso da forma do oráculo sacerdotal em seus anúncios de salvação. Seu lugar de origem e de uso normal, no entanto, é o culto.

Jr 30.10-11 contém, de fato, linguagem sálmica, típica do culto. É claro que o anúncio poderia ter sido proferido por um profeta. Mas não há nenhum indício de lin- guagem jeremiânica. Além disso, o conteúdo apresenta os temas tradicionais da época exílica: retorno dos exilados da terra do cativeiro, vida tranquila e segura, juízo contra as nações do exílio, limitação do castigo para Israel. Há certa semelhança com Isaías 41.8-13. Mas essa semelhança é fl agrante somente nos elementos característicos do oráculo da salvação (“não temas”, uso do tratamento carinhoso e pessoal “Jacó” para o povo, o honroso atributo “servo”, a promessa da presença divina: “eu estou contigo”). De resto, a linguagem é bastante diferente da de Dêutero-Isaías. Tudo indica, portanto, que tanto Dêutero-Isaías quanto o autor de Jr 30.10s beberam da mesma fonte.

32 BEGRICH, Joachim. Das priesterliche Heilsorakel. (1934) In. ______. Gesammelte Studien zum Alten

Testament. München: Chr. Kaiser, 1964. p. 217ss. (Theologische Bücherei).

33 BEGRICH, 1964, p. 219.

34 Além do artigo mencionado de Begrich, podem-se citar os detalhados estudos sobre a linguagem de Dêutero-Isaías realizados por VON WALDOW, Hans-Eberhard. Anlass und Hintergrund der Verkündi-

gung des Deuterojesaja. 1953. Tese (Doutorado) – Bonn, 1953; e WESTERMANN, Claus. Sprache und

Struktur der Prophetie Deuterojesajas. In: ______. Forschung am Alten Testament. München: Chr. Kaiser, 1964. p. 92-170, em especial, p. 117ss. Cf. os exemplos clássicos de Dêutero-Isaías: Is 41.8-13,14-16; 43.1-4,5,7; 44.1-5.

Por outro lado, os versículos 10-11 retomam tão claramente a linguagem da seção 30.5-735 que o anúncio de salvação em forma de oráculo sacerdotal deve ter sido concebido especialmente para formar a continuidade de 30.5-7. Não é mero acaso que se utilize aqui linguagem e formas do âmbito do culto. Toda a unidade 30.5-7,10-11 provavelmente foi criada para ser utilizada em celebrações na época do exílio, pois somente assim uma afi rmação como “castigar-te-ei conforme o direito36, mas não te deixarei completamente impune” (no fi nal do v. 11) torna-se compreensível. O anún- cio de castigo – ainda que comedido – para o povo dentro de um anúncio de salvação causa estranheza. Ele somente é inteligível se os destinatários do anúncio já estão vivendo numa situação caracterizável como “castigo”, isto é, se o “castigo” anunciado de alguma forma já aconteceu. Na boca do profeta Jeremias trata-se de um castigo vindouro, para o autor do oráculo da salvação e seus destinatários, no entanto, é algo passado que ainda perdura. Para dentro desse contexto, o anúncio de um castigo mó- dico consegue alcançar dois objetivos: a) o sofrimento do povo foi merecido; portanto o Deus de Israel não é um Deus injusto; b) o sofrimento não deve durar muito, pois o Deus de Israel coloca limites ao seu castigo.

Temos, agora, condições de entender o processo hermenêutico por trás da cons- trução da unidade 30.5-7,10-11. Um autor desconhecido da época exílica vinculado ao culto se apropria de um anúncio de juízo do profeta Jeremias que antecipa, em visão, a afl ição futura do povo de Israel, e o transforma em descrição da afl ição existente, na qual vivem o autor e os participantes do culto. O anúncio profético torna-se salmo de lamentação e de súplica, para o qual o autor fornece uma resposta divina na forma de um oráculo sacerdotal de salvação (v. 10-11).

Tudo isso é colocado retrospectivamente na boca do profeta. Com isso, o autor consegue dar credibilidade ao anúncio de salvação. Pois, já que a mensagem profética de juízo foi concretizada – o que pode ser facilmente constatado –, certamente tam- bém o futuro anunciado no oráculo de salvação irá realizar-se. Mas o autor não pode passar por cima da realidade de sofrimento ainda existente. A geração exílica ainda sente que seus “dentes” estão “embotados”.

No documento Versão Completa (páginas 119-122)