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A privacidade: sua historicidade e evolução jurídica

CAPÍTULO II A privacidade e os direitos da personalidade na relação de trabalho

2.2. A privacidade: sua historicidade e evolução jurídica

O ser humano é dotado de autonomia para recolher-se (“right to be alone”), e mesmo pensar-se a si mesmo, avaliar a sua conduta, retemperar as suas forças e superar as suas fraquezas; esfera essa que os demais, sob pena de ilicitude, não devem violar, intrometendo-se nela e instrumentalizando ou divulgando os elementos que a compõem86. Ainda, como esclarece Capelo de Sousa:

“É que, a dignidade da natureza de cada homem, enquanto sujeito pensante dotado de liberdade e capaz de responsabilidade, outorga-lhe autonomia não apenas física, mas também moral, particularmente, na condução da sua vida, na auto-contribuição de fins a si mesmo, na eleição, criação e assunção da sua escala de valores, na prática dos seus actos, na reavaliação dos mesmos e na recondução do seu comportamento” 87.

Estes traços da personalidade individual comportam naturalmente a garantia do segredo individual, pois certas manifestações da pessoa destinam-se à conservação e são completamente inacessíveis ao conhecimento dos outros, isto é, secretas88. É a chamada reserva sobre a intimidade da vida privada (Portugal), ou diritto alla reservatezza, na expressão italiana; direito a uma esfera do segredo – Geheimsphäre – na teoria germânica89.

Este direito, por sua vez, tem raízes contemporâneas90, pois somente a partir do final do século XIX, o direito à privacidade recebe a categoria de direito autônomo, por influência dos campos políticos, sociais e econômicos e fruto do liberalismo. A referência teórica teve início com a obra de autoria de Brandeis e Warren, em artigo publicado pela Harvard Law Review, denominado “Right of Privacy”, em 1890, obra endossada como umos jurídicos mais relevantes para o desenvolvimento do direito à intimidade e privaci- dade no common law como no civil law. Nele, os autores colocam em evidência a ocor-

86 CAPELO DE SOUSA, op. cit., p. 107. 87 CAPELO DE SOUSA, op. cit., p. 317.

88 DE CUPIS, Adriano – Os Direitos da Personalidade. São Paulo: Editora Quorum, 2008. p. 158. 89 PINTO, Carlos Alberto da Mota – Teoria Geral do Direito Civil. Coimbra: Editora Coimbra, 2005. p.

212.

90 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio - Direito Constitucional. São Paulo: ed. Manole, 2007. ISBN 978-

33 rência de transformações sociais, políticas e econômicas, bem como o surgimento de no- vos inventos, como a fotografia, que contribuíram para a ocorrência de violações da vida privada das pessoas. Tratou-se de uma célula embrionária deste preceito, da qual decorre- ram inúmeros avanços na concretização dos direitos da personalidade, sobretudo da inti- midade e privacidade humana, seja do ponto de vista normativo como jurisprudencial.

No plano internacional, enquanto nos EUA a noção de privacidade surgiu no século XIX e, na Suíça, em 1907 com o Código Civil, o seu reconhecimento como direito fundamental somente adveio com o fim da II Guerra Mundial, com o real interesse em regular esta proteção com a consagração de alguns ordenamentos jurídicos de um direito subjetivo novo, qualificado como direito ao respeito da vida privada ou direito à privacidade. Passou a ser considerado como um direito do homem e reconhecido como tal por diversas convenções internacionais91, donde se extrai a preocupação da comunidade internacional para com o tema. De início, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) das Nações Unidas, de 1948, exerceu importante papel na concretização da defesa dos bens essenciais do individualismo e, por consequência, da intimidade e da vida privada tanto no plano internacional como no plano nacional92 e, em seu artigo 12.º, afirma:

“Ninguém será sujeito à interferência, na sua vida privada, na de sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.

A DUDH influenciou diretamente a formulação de outros instrumentos sobre direitos humanos no contexto mundial. A partir de então, o direito à proteção da vida privada aparece em diversos outros documentos internacionais e ocupou a pauta de inúmeras conferências, seminários, encontros e estudos de âmbito supranacional93.

Seguiu-se, então, com a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), previsto no artigo 11°:

“Proteção da Honra e da dignidade. § 1º Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ninguém será objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio

91 MOREIRA, Teresa Alexandra Coelho, op. cit., p. 126.

92 FILHO, Ilton Norberto Robl - Direito, intimidade e Vida Privada. São Paulo: Ed. Juruá, 2010. p. 165. 93 SAMPAIO, José Adércio Leite – Direito à Intimidade e à Vida Privada. Belo Horizonte: Ed. Del Rey,

34 ou correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. §3º Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.”

Também o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas, de 1966, artigo 17°, § 1.º reconhece:

“Ninguém será objeto de imiscuições arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, da sua família, no seu domicílio ou da sua correspondência, nem de atentados ilegais à sua honra e da sua reputação.”

No tocante à legislação da UE, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), de 1950, regulamentou a proteção da privacidade, no artigo 8º, n.º 1: “ Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.”; igualmente a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, no artigo 7.º: “Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações”.

Alterando o foco do Direito Internacional, passando para o Direito interno, diversos países levaram para si a importância do direito fundamental à privacidade. No Brasil, a proteção da intimidade e da vida privada encontra-se prevista no artigo 5.º, inciso X, da Constituição Federal. Em Portugal, a inviolabilidade da intimidade da vida privada está previsto no artigo 26º da Constituição, como “o direito à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à reserva da intimidade da vida privada e familiar”, bem como no art. 21 do Código Civil, Capitulo II, do Livro I das Pessoas, Parte Geral. Noutros casos, a Espanha, referida no artigo 18.º, I, da Constituição de 1978; Privacy Act nos Estados Unidos, em 1974 protege a intimidade das pessoas contra atos da administração pública; na França, com a introdução do artigo 9º no Código Civil, dentre outros.

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