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A PRODUÇÃO DA PESQUISA NUM TERRITÓRIO COMPARTILHADO

No documento Trabalho social : um território em transe (páginas 89-95)

5. TRABALHO SOCIAL COMO UM TERRITÓRIO EXISTENCIAL

5.1 A PRODUÇÃO DA PESQUISA NUM TERRITÓRIO COMPARTILHADO

A coordenação da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Conselho Regional de Psicologia-03 (CRP-03) nos convidou a compor um grupo de profissionais para contribuir com os trabalhos da comissão. Daí, apresentamos uma proposta: a de participar como pesquisadora. Proposta aceita.

Numa conversa inicial com o então coordenador percebemos que havia uma ligação entre a pesquisa e as discussões no conselho sobre o momento atual: a disputa entre forças que lutam pela manutenção de políticas públicas e direitos sociais e forças conservadoras, inclusive no

âmbito do sistema conselhos de Psicologia. Uma tensão presente no trabalho social realizado pelos psicólogos que colocam diante de si problemáticas complexas. E nesse sentido, vimos que a pesquisa poderia contribuir com as discussões e trabalhos da comissão.

A CDH, na estrutura da gestão do CRP-03, é uma comissão permanente cujos objetivos são: convocar e mobilizar a categoria no que tange aos Direitos Humanos; promover articulações com os movimentos sociais locais de diferentes segmentos historicamente excluídos como população negra e indígena, mulheres, crianças e adolescentes, LGBTTQ e pessoas com deficiência, por exemplo; incentivar a inclusão da discussão sobre os direitos humanos na prática de profissionais da psicologia no ensino e na pesquisa (Conselho Regional de Psicologia da Bahia, 2016).

Compõem atualmente a CDH os seguintes Grupos de Trabalho (GT’s): Relações de Gênero e Psicologia (GTRGP); Psicologia e Relações Raciais (GTPRR); Psicologia e Educação (GTPE); Psicologia e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (GTDDCA); Psicologia, Sexualidades e Identidades de Gênero (GTPSIG); Psicologia e Mídia (GTPM); Psicologia e defesa dos direitos da Pessoa com Deficiência; Psicologia das Organizações e do Trabalho (Conselho Regional de Psicologia da Bahia, 2016).

No que tange aos procedimentos metodológicos da pesquisa, realizamos contatos iniciais com a CDH, a fim de apresentar o projeto de pesquisa e propor acordos para o processo de trabalho. O então coordenador da comissão propôs que acompanhássemos alguns trabalhos da mesma e aqueles que estavam em fase de desenvolvimento, bem como as discussões dos grupos de trabalho. Acompanhamos as reuniões desta comissão, denominadas InterGT’s, às quintas- feiras, quinzenalmente, das 18h às 20h na sede do CRP, de agosto de 2017 a maio de 2018. Nestas reuniões participaram coordenadores dos GT’s ou representantes, conselheiros que compõem a CDH e profissionais da psicologia convidados pela comissão para contribuírem com a realização de seus trabalhos.

Dessas reuniões iniciais, definimos os procedimentos metodológicos para a produção dos dados: leitura de materiais relacionados à história da psicologia social, participar das reuniões da CDH, participar do Grupo de Trabalho Psicologia e Relações Raciais (GTPRR), acompanhar os eventos do CRP, realizar 4 entrevistas com psicólogas/os sociais da CDH e restituição do processo da pesquisa.

Ainda com relação à CDH a intenção metodológica foi participar das reuniões quinzenais durante todo o semestre 2018.1 e do evento “A Psicologia e o Compromisso com a Laicidade e o Combate ao Racismo, Sexismo e LGBTfobia na America Latina” proposto pelo CRP-03 no Fórum Social Mundial em Salvador-BA. O objetivo deste evento foi de convocar profissionais da Psicologia e de outras áreas para discutir o avanço de movimentos conservadores na Psicologia, que impacta nos direitos, modos de existir e na liberdade religiosa e de crença de populações não-brancas, não-cisgeneros e não-heterosexuais, com repercussões na saúde mental e qualidade de vida destas pessoas. Neste evento houve uma discussão intensa em relação à laicidade do Estado, perspectivas interseccional e decolonial. Discussão considerada necessária que deveria permear os mais diversos campos das lutas sociais e da Psicologia. Estiveram presentes profissionais da Psicologia, de outras áreas e de movimentos sociais, sobretudo mulheres negras.

No semestre 2017.2 participamos como ouvinte dos eventos em comemoração ao dia do psicólogo e algumas atividades do novembro negro organizadas pelo GTPRR em articulação com outros GT’s da CDH. Em algumas reuniões do CDH foi possível perceber alguns elementos relacionados ao trabalho social realizado por psicólogas e psicólogos nas falas, discussões e dinâmicas de trabalho de membros desta comissão.

Participamos de tais ações com a noção de que acompanhar processos é acessar aquilo que não está na esfera do já sabido, é acessar a experiência de cada um, é fazer conexões, descobrir leituras, tudo que se encontra nos seus territórios existenciais e as intensidades em busca de expressão. Nesse sentido, entender não tem nada a ver com explicar, revelar (Barros e Kastrup, 2015).

Outra tarefa desta pesquisa foi a participação nos eventos do GTPRR e em suas reuniões quinzenais. Já havíamos participado deste GT entre julho de 2012 e agosto de 2014, antes de realizar o curso de mestrado. Participarmos do GTPRR numa outra condição, a de pesquisadora, e retornar nos trouxe lembranças, afetos e um dar-se conta de algumas dinâmicas se fazendo neste grupo. A intenção foi de participar das reuniões ao longo do semestre de 2018.1. Nas reuniões do GTPRR ocorrem informes sobre eventos internos e externos ao Conselho; apresentação da pauta do dia; convites feitos ao GT; socialização e encaminhamentos de

demandas das ações planejadas; discussão sobre casos de racismo; participação do GT em instituições públicas, organizações sociais e movimentos sociais.

Aqui também se vê elementos que compõem o trabalho social hoje como a discussão sobre a fragilização recorrente da rede de serviços que atendem à população negra e a importância das políticas públicas para esta população.

O terceiro procedimento desta metodologia de pesquisa foi a realização de 4 entrevistas com psicólogas/os sociais da CDH com duração aproximada de 1 a 3 horas e gravadas. Alguns profissionais se colocaram prontamente à disposição para as entrevistas, outros pediram para participar pois gostariam de ser escutados. São profissionais que trabalham na psicologia social já há alguns anos, militando nas seguintes áreas: educação, relações raciais, questões de gênero, saúde e saúde mental, assistência social, LGBTTQ, direitos da criança e do adolescente.

Os relatos nas entrevistas e registros dos processos portam impressões e informações pouco nítidas que se tornam mais precisas e explícitas posteriormente. Possibilitando também um retorno à experiência do campo e suas intensidades. São nestes registros, aparentemente individuais, que aparece a dimensão coletiva da experiência nas falas e cenas, a alteridade nos próprios registros, na escrita (Barros e Kastrup, 2015).

Ainda em relação à entrevista, seu manejo se deu como um diálogo, uma conversa que não objetiva acessar exclusivamente a representação que os entrevistados fazem de objetos ou estados de coisas, mas acompanhar processos, ou melhor dizendo, os movimentos de ruptura e de mudanças nas falas. Porque sintonizamos com a ideia de entrevista que interfere nos processos, provoca disrupção e produz acesso ao plano compartilhado da experiência, que faz variar a experiência (Tedesco, Sade e Caliman, 2016) como na implicação-transdução.

Quer dizer, acessar a experiência vivida, ampliando o olhar e a escuta para além do conteúdo da experiência relatada na entrevista, incluindo aí seu aspecto genético e a dimensão processual da experiência em suas variações. “A entrevista intervém na experiência do dizer. São os efeitos dessa experiência compartilhada, produzida e ostentada na prática linguageira da conversa em curso na entrevista, que a cartografia elege como seu objeto” (Tedesco, Sade e Caliman, 2016, p. 99).

A entrevista não busca coletar informações relativas a mundos preexistentes, objetos fixos, conteúdo da experiência como um conjunto de dados que a palavra traduz na organização transparente do relato. Nem se guia exclusivamente à representação de estados de coisas que os entrevistados fazem dos conteúdos das experiências. A entrevista colhe relatos que cultiva e este manejo deve ser feito atentamente. Pois toda entrevista produz realidades, experiências e deve promover aberturas às variações e não o fechamento em perspectivas totalizantes. O entrevistador habita o território da entrevista traçando-o junto com o entrevistado e rever suas expectativas e questões através desse compartilhamento. (Tedesco, Sade e Caliman, 2016).

Outro procedimento metodológico da investigação é a restituição, desenvolvida no âmbito da Análise Institucional, que não se reduz a uma apresentação dos resultados da pesquisa. A ideia de restituir às pessoas com quem produzimos uma análise com é relativamente nova e por muito tempo não era uma preocupação de pesquisadores ou não era percebida como uma questão para os mesmos. A noção de restituição se ampliou na medida em que apareceu como problema para a etnologia de campo, com origem no colonialismo, que não percebe que só poderia ser produzida numa situação colonialista. O saber político que atravessa o saber científico não era percebido por pesquisadores (Lourau, 1993).

Com o processo de descolonização que ocorreu no mundo, houve também uma mudança nas relações de poder nos processos de produção do saber. Antropólogos que estudavam populações consideradas “primitivas”, “selvagens” como povos indígenas e negros em países colonizados, por exemplo, hoje precisam da permissão de autoridades dos países para realizar suas pesquisas. Podendo sofrer intervenções e serem exigidos que os resultados sejam comunicados antes de auferir qualquer benefício decorrente disto. (Lourau, 1993).

Segundo Lourau, restituição supõe que possamos falar de coisas que geralmente não são ditas no processo de pesquisa. E que ditas sem cuidado podem cair em denúncia recriminatória, acusação revanchista e denúncias despotencializadoras. Não se trata de simples informações. A restituição é a enunciação de coisas e não denúncia de alguém. Supõe um manejo que leva em conta a discrição e o momento apropriado para se restituir (Lourau, 1993).

A restituição deve ser encarada como procedimento real e necessário da pesquisa em que envolve um processo de co-gestão e co-participação dos sujeitos da pesquisa e não como algo que é feito unilateralmente pelo pesquisador. O pesquisador também pode receber

contribuições da restituição dos sujeitos em questão. E nesse sentido, comunicamos procedimentos realizados no processo da pesquisa, apresentamos a mesma à CDH e ao GTPRR.

Nos colocamos como partícipes das ações realizadas tais como alguns eventos organizados e as reuniões periódicas, apresentamos proposições de ações decorrentes da participação nos trabalhos da CDH e do GTPRR. Além disso, propusemos aos entrevistados o compartilhamento da análise dos dados, sobretudo com suas falas, de modo que pudessem analisar o que foi escrito e pudessem interferir no processo. Além, disso acordamos uma data para apresentação final da pesquisa.

Ainda conforme Lourau (1993), a restituição extrapola os limites da redação final da pesquisa, vai além do processo da pesquisa, pode ser infindável. Os psicólogos sociais participantes deste estudo podem produzir novas restituições tanto ao pesquisador quanto ao contexto social que compartilham, o que efetivamente seria a socialização da pesquisa (Lourau, 1993).

A restituição tem uma implicação política e consiste em irmos passo a passo construindo novas relações sociais. O foco está na análise coletiva da situação presente, no presente, tendo em vista as implicações de cada um com e na situação. O que restituir e quando dependerá do quanto interiorizadas e ativamente irrefletidas estão as normas sócio-econômico-culturais nos pesquisadores. Estes por sua vez implicados com sua cultura, podem desconhecer ativamente sua implicação. Regras e conceitos são a projeção de uma determinada ordem social, uma racionalização (Lourau, 1993).

Por fim, o último procedimento metodológico desta investigação foi o levantamento de materiais e leituras em relação ao trabalho social da psicologia e que se deu durante todo o processo da pesquisa, acompanhado seus movimentos e mudanças. Por vezes, nos vimos diante de uma pilha volumosa de textos e livros, perdidos entre os conceitos estudados, retomando leituras que havíamos deixado para trás, acessando outras que faziam sentido no início e que nos vemos reconectados de novo, nos afetamos pelas sugestões de amigos e colegas. Acordamos no meio da noite para ler a passagem de um texto como se aquele parágrafo nos desse uma pista. Selecionamos aqueles materiais que parecem gritar para nós, que parecem dizer “é aqui que eu quero ficar no texto”, que se mostram contundentes diante das experiências com o campo.

No documento Trabalho social : um território em transe (páginas 89-95)

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