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2. Formações discursivas e mecanismos ideológicos produtores do gênero e de suas relações

2.3 A produção das masculinidades e a tarefa do aprender a ser homem

O que aconteceria se uma mulher despertasse uma manhã transformada em homem? E se a família não fosse o campo de treinamento onde o menino aprende a mandar e a menina a obedecer? E se houvesse creches? E se o marido participasse da limpeza e da cozinha? E se a inocência se fizesse dignidade? E se a razão e a emoção andassem de braços dados? E se os pregadores e os jornais dissessem a verdade? E se ninguém fosse propriedade de ninguém? Eduardo Galeano

A partir da célebre frase de Simone de Beauvoir Não se nasce mulher, torna-se; muitas associações foram realizadas (KEHL, 2016) no sentido de apontar que também não se nasce homem, torna-se. Isso porque, do mesmo

66 modo que a feminilidade29 é uma produção social e discursiva, a masculinidade também o é.

Destarte, ao passo que existe uma produção cultural acerca das mulheres e dos atributos performáticos exigidos ao seu gênero e ao seu sexo, o mesmo ocorre com os homens. Para Marlene Strey (2001, p. 51) “[...] para conhecer, por exemplo, como são as mulheres socialmente construídas, também temos que conhecer os homens socialmente construídos”. Sob essa ótica, as relações de gênero abarcam definições normativas tanto sobre feminilidades, quanto masculinidades.

Contudo, torna-se importante ressaltar que os estudos de gênero, ou sobre relações de gênero, são influenciados pela tendência de estudos acerca das mulheres, ou então, exclusivamente sobre condições de vida das mulheres. Ou seja, “[...] se encuentra muy extendida la idea de que investigar sobre género es sinónimo de estudiar mujeres” (STOCK, 2014, p. 323).

A produção das masculinidades ocorre também por meio de práticas e formações discursivas. Do mesmo modo que as mulheres são condicionadas a estarem de acordo com a performance exigida ao seu gênero e sexo, o mesmo ocorre com os homens. Não se pode pensar que os homens são naturalmente violentos e dominadores e as mulheres, por serem mulheres, estão sempre em uma condição inferior e subalterna.

Nesse sentido, a própria noção de patriarcado apresenta seus paradoxos e armadilhas, pois recoloca no sujeito uma certa “culpabilização” pelo peso de seu gênero e de seu sexo. Isso porque “[...] se há creado, pues, un discurso que tiene por base que “hombre=patriarcado” sin cualquier problematización sobre las causas, dinamicas y posibilidades de redución de la desigualdad entre hombres y mujeres” (STOCK, 2014, p. 321).

Diante deste entendimento, importa trazer à tona que “[...] fazer de alguém um homem requer, de igual modo, investimentos continuados. Não há nada de puramente natural e dado em tudo isso”. (LOURO, 2008, p. 19). E

29 O conceito de feminilidade é definido como “uma construção discursiva produzida a partir da

posição masculina, à qual se espera que as mulheres correspondam [...] ao outro do discurso” (KEHL, 2016, p. 56).

67 ainda, que existem estudos que problematizam a dominação masculina sob o enfoque das masculinidades.

De igual modo, problematiza-se essa questão sob o enfoque da produção de uma sociabilidade masculina, pela qual os “[...] homens, por sua vez, são estimulados a se defenderem e a atacarem, sendo socializados, desde cedo, para responderem às expectativas sociais de modo pró-ativo” (LYRA, et. al, 2010, p. 79). Por conseguinte, compreende-se que a masculinidade é uma produção cultural e social, a qual apresenta diferentes nuances em meio ao contexto sócio-político em que é produzida.

Na sociedade capitalista, identifica-se que a dominação, enquanto performance masculina, é capturada como um dispositivo de poder, o qual tende a ser mais valorizado que os atributos e performances que se espera da mulher e da dimensão feminina. Logo, no cenário contemporâneo, “[...] a ideia de masculinidade repousa na repressão necessária de aspectos femininos” (SCOTT, 1995, p. 82).

A partir destas reflexões, assume-se a perspectiva de que a categoria gênero é um produto político, ideológico e discursivo da sociedade capitalista, considerando-se as relações sociais estabelecidas entre homens e mulheres, masculino e feminino. À medida que “[...] o mundo social constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de divisão sexualizante” (BOURDIEU, 2012, p. 18).

Ademais, no contexto da produção de sociabilidades masculinas, é mister reconhecer que “Mesmo sendo um homem, um dominante, todo homem está também submetido às hierarquias masculinas. Nem todos os homens têm o mesmo poder ou os mesmos privilégios” (LANG, 2000, p. 466). Especialmente porque o ser homem ou ser mulher na sociedade capitalista está atravessado pelas relações de classe, o que produz níveis de hierarquização e de relações de poder diferentes.

Ao mesmo tempo em que um homem pode desempenhar um papel de dominação em relação a uma mulher, este mesmo homem também pode ocupar o papel de subordinado, tendo em vista suas condições sociais,

68 econômicas e políticas. Sobretudo se for pobre, trabalhador precarizado, morador de periferia ou estiver desempregado.

Entre os próprios homens existem produções diferentes acerca das masculinidades, pois assim como não há uma homogeneidade na experiência feminina, isso também não ocorre com os homens. Até porque, múltiplas são as suas vivências e diferentes são os contextos sociais em que estão inseridos.

Por ejemplo, las masculinidades de los indivíduos de clase baja, que enfatizam la agresividad y dureza, y las masculinidades de los indivíduos de clase alta, que giran en torno a los temas de ambición, responsabilidad y empleo profesional – la imagen del burocrata. (STOCK, 2014, p. 322).

Esta diferença na construção acerca das masculinidades é que permite seu uso no plural, pois mesmo entre os homens, o modelo do homem médio, abstrato e universal não pode ser aplicado como uma representação universal.

Outro aspecto que caracteriza a construção de masculinidades reside no aprender a ser homem, que mesmo que se configure a partir de aprendizados diferentes, tendo em vista, sobretudo, as diferenças sociais, ainda assim guarda características em comum como, por exemplo, a exclusão desse aprendizado de dimensões associadas ao feminino, pois se um homem adere aos atributos impostos às mulheres, pelo imaginário social, correrá o risco de ser classificado como menos homem.

Daniel Lang (2000, p. 462), ao problematizar em sua obra sobre a educação de meninos, refere que

Descrevi como a educação dos meninos nos lugares monossexuados (pátios de colégios, clubes esportivos, cafés..., mas mais globalmente o conjunto de lugares aos quais os homens se atribuem a exclusividade de uso e/ou de presença) estrutura o masculino de maneira paradoxal e inculca nos pequenos homens a ideia de que, para ser um (verdadeiro) homem, eles devem combater os aspectos que poderiam fazê- los serem associados às mulheres.

Além disso, o autor utiliza da metáfora da casa dos homens, para tensionar a construção das masculinidades. Identifica a existência de uma

69 homossociabilidade, ou seja, daquilo que há em comum na experiência masculina do tornar-se homem.

Nessa casa dos homens, a cada idade da vida, a cada etapa de construção do masculino, em suma está relacionada uma peça, um quarto, um café ou um estádio. Ou seja, um lugar onde a homossociabilidade pode ser vivida e experimentada em grupos de pares. Nesses grupos, os mais velhos, aqueles que já foram iniciados por outros, mostram, corrigem e modelizam os que buscam o acesso à virilidade. Uma vez que se abandona a primeira peça, cada homem se torna ao mesmo tempo iniciado e iniciador. (LANG, 2000, p. 462).

É mister que se reconheça que a produção do gênero, mesmo que anteceda o nascimento, encontra, no período da infância, um terreno fértil para sua assimilação por meio de valores e hábitos culturais que são repassados através de ralações cotidianas, as quais, por sua vez, englobam dimensões como cores de roupa, brincadeiras e histórias infantis.

Todavia, antes do nascimento de uma criança e com as tecnologias de investigações ultrassonográficas, quando se tem conhecimento acerca do sexo de um feto, ocorre toda uma produção discursiva em torno do ser menino ou ser menina, o que já irá direcionar, inclusive, a compra de roupas e objetos de uso pessoal para o nascituro, ainda que futuramente a orientação sexual e identidade de gênero dessa pessoa destoe das expectativas depositadas sobre seu sexo e seu gênero.

Para Guacira Lopes Louro (2008), tanto o gênero quanto o sexo são apreendidos através de pedagogias culturais. Estas ocorrem em diversas instâncias e instituições da vida social, seja no âmbito formal, por exemplo, na escola, como também através da normalização que circunda os espaços informais de educação, dentre os quais a família, comunidades, espaços religiosos etc.

Para os homens, como para as mulheres, a educação se faz por mimetismo. Ora, o mimetismo dos homens é um mimetismo de violências. De violência inicialmente contra si mesmo. A guerra que os homens empreendem em seus próprios corpos é inicialmente uma guerra contra eles mesmos. Depois, numa segunda etapa, é uma guerra com os outros. (LANG, 2000, p. 463).

70 Esse fenômeno incide, mais uma vez, na compreensão de que a produção de masculinidades requer a supressão daquilo que é identificado com o feminino, tendo em vista que aspectos associados à guerra e à violência não são, a piori identificados com o feminino. Nesse sentido, os homens que não estão de acordo com as performances que lhes são exigidas correm o risco de não ter seu status viril aprovado pelos demais, e ainda de sofrer discriminações se vinculados a performances que, a priori, seriam das mulheres.

É verdade que na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não ser associado a uma mulher. O feminino se torna até o polo de rejeição central, o inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a uma mulher e ser (mal) tratado como tal. (LANG, 2000, p. 465).

A identificação da construção de masculinidades deflagra uma certa hierarquização, ou ainda, como salienta Pierre Bourdieu (2012) a eminência de produção de um habitus viril. Para tanto, os homens devem afirmar-se constantemente, de modo que sua masculinidade não seja questionada. Isso porque “[...] a instituição do masculino está comprometida com uma dada operação simbólica que marca sua distinção perante o outro gênero”. (HEILBORN; SORJ, 2013, p. 198).

Do mesmo modo, ser um homem normal e respeitável em uma sociedade androcêntrica e sexista, exige a aceitação de um papel de dominação, de não ser confundido com os dominados; mulheres, crianças e grupos vulneráveis. Pois, “Na ordem patriarcal de gênero, o poder é macho, branco e de preferência, heterossexual”. (SAFFIOTI, 2004, 31).

Todavia, não se pode afirmar que todos os homens e demais pessoas que carregam em seus corpos uma identidade de gênero masculina cedam ao desejo em ser dominadoras, mas que tal configuração resulta das instâncias de poder. Diante disso, cabe questionar “Que instâncias e espaços sociais têm o poder de decidir e inscrever em nossos corpos as marcas e as normas que devem ser seguidas?” (LOURO, 2008, p. 18).

Entende-se que estas instâncias, ao mesmo tempo em que são produtos de uma sociedade fundada na noção do masculino como universal e do

71 masculino como poder – o que guarda relação direta com o patriarcado –, também são instâncias produzidas no habitus de seus agentes, homens e mulheres, e nas esferas de suas práticas cotidianas.

Do mesmo modo, as instituições sociais são instâncias reguladoras e definidoras daquilo que é atribuído como performance de gênero. E nesta direção, a prisão como uma instituição social exerce um papel de controle sobre corpos e identidades, produzindo e reproduzindo o gênero como construto prático e discursivo.

Na presente tese, tendo as relações de gênero como categoria de análise, identificam-se e interpretam-se as diferenças produzidas na questão penitenciária, sobretudo nos discursos que constroem uma especificidade do feminino no contexto da prisão e, por outro lado, suprimem de suas produções discursivas aspectos vinculados ao masculino.

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3. Dimensões históricas do aprisionamento de mulheres no Brasil: