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3. DESABASTECIMENTO DA CASA DE SEMENTES: ENTRE A CAMPESINIDADE

3.3 A produção de sementes na unidade familiar: armazenamento em paiol como

Ao longo das visitas em Barra do Tamboril foi comum ouvir o termo 'milho de paiol'. Entretanto, durante o trabalho de campo, não me atentei para a importância desta categoria. No momento da degravação das entrevistas, era como se o termo me 'cercasse' e, apesar de inicialmente pretender um trabalho sobre a Casa de Sementes, não pude me negar a trazer também a dimensão familiar de armazenamento destes estoques, como estratégia de conservação. Até hoje, vários lembretes seguem pendurados em minha mesa de estudos destacando a categoria milho de paiol.

Esta expressão nos remete ao uso tradicional das sementes, quando eram

guardadas em estruturas próximas às residências, conhecidas como paiol. As sementes e grãos com fins alimentares seja humano ou animal, ou mesmo para comercialização, eram ali armazenadas, antes do advento das casas de sementes.

Os relatos das famílias entrevistadas na lida com sementes retratam a estrutura de paiol com bastante intimidade, apesar de não serem estruturas físicas na sua grande maioria. O uso da expressão milho de paiol é usada como sinônimo de milho crioulo.

Valdivino, quando questionado se usa sementes semelhantes às estocadas na Casa de Sementes pontua:

Qual semente? A de milho de paiol? Uso sim, mas é mais pouco porque ele é mais tardão (Valdivino em 16/10/13).

Questionado sobre as sementes que usava antes da implementação da Casa de Sementes, Zé dos Reis comenta:

Naquele tempo falava milho de paiol, hoje não, já tem esse negócio de banco de semente e a gente planta um milho mais de qualidade. Já até sabe qual que dá mais certo na terra que a gente vai plantar [em menção ao ensaio de sementes] (Zé dos Reis em 07/10/13).

Seu Chiquinho relata como antigamente as sementes eram denominadas e armazenadas:

Tem umas sementes que a gente já nem vê mais, que acabaram, que nem o Branco que eu usava. Era esse milho de paiol, que nem esse Asteca. Mais pra trás não tinha milho selecionado não [Híbrido]. Todo ano que plantava, a gente enchia os paiol de milho e guardava pra plantar e continuava plantando do mesminho (Seu Chiquinho Lojó em 17/10/13).

A ideia de paiol pode remeter somente a uma estrutura física própria ao armazenamento de sementes. Entretanto, como pude observar, as sementes são também guardadas em galões e garrafas pet em algum cômodo, como dispensa ou mesmo prateleiras da cozinha.

Durante o trabalho de campo, não buscava estas estruturas, mas me deparei com elas justamente onde alguns dos elementos reveladores da campesinidade foram encontrados. Dois casos em especial demonstraram essa situação. A partir do relato de seu Mário sobre a aquisição da variedade Asteca, conheci seu Silvério58, que passou suas sementes para serem usadas no ensaio de sementes. E em visita 58 Há uma discrepância em relação ao nome desta variedade, pois seu Mário a indica como Asteca

e seu Silvério como Sabuguinho Fino.

às pessoas que fizeram parte do grupo da Casa de Semente, mas hoje não participam mais, conheci Élcio59 e deparei-me com uma estrutura de paiol também em sua casa. Este dois casos, apresentados na próxima seção, ilustram a discussão acerca da lógica camponesa de produção de sementes, referendando a unidade familiar como espaço de permanência e perpetuação do modelo de conservação de sementes crioulas tão importante quanto um equipamento coletivo como a Casa de Sementes.

3.3.1 Uma variedade para além de Tamboril: o caso de seu Silvério

Seu Silvério vive na comunidade chamada São Martim, distante poucos quilômetros de Barra do Tamboril, já no município de São Francisco, divisa com Januária. Seu Silvério é natural da região, bem como seus pais e avós. Sobre a procedência da variedade de milho usada, que a família chama de Sabuguinho Fino revela: “é gerado por aqui mesmo e vem passando de tradição a tradição”. Já vendeu, doou e trocou muitas de suas sementes em todo esse tempo.

As sementes não passam por seleção em campo mas seu Silvério guarda as sementes de modo distinto, de acordo com o uso. Assim, o armazenamento das sementes que serão destinadas aos plantios se distingue daquele aplicado às espigas que serão servidas aos animais, como ração. As sementes das variedades de milho, que se destinam ao plantio são guardadas debulhadas em um galão plástico, vedado por um saco plástico na boca, a fim de proteger da umidade. O milho para ração permanece na palha, em tambores de ferro cobertos com sacos de ráfia. Um como outro são armazenados em paiol. Seu Silvério explica a importância de se ter milho no paiol como salvaguarda para os momentos de falta de chuva:

Esse ano eu perdi minha roça, não colhi uma espiga de milho, mas como eu tinha do ano [re]trasado, aí eu já peguei, já preparei o de plantar esse ano. A ração dos animais eu comprei fora, mas o de plantar já tava guardado do ano [re]trasado (seu Silvério em 15/10/13).

59 Seu nome de registro é Edson, entretanto foi unânime o chamarem de Élcio na comunidade. 108

Foto 05. A) Seu Silvério mostrando suas sementes guardadas em galão de plástico. B) Variedade Sabuguinho Fino cultivada por seu Silvério.

3.3.2 Os paióis de Élcio

Élcio é nascido e criado na região do Capoeirão. Vivia no lote herdado dos pais, que foi depois dividido com os irmãos. Em 2000, ele e Isaura, sua esposa, adquiriram uma terra em local próximo ao lote herdado, onde destinam três hectares para a produção de milho.

Ele participou durante dois anos da Casa de Sementes, mas deixou o grupo devido ao grande volume de trabalho que demanda sua propriedade. Possui duas variedades de milho de sua preferência: Palha Roxa e Asteca, selecionadas ao longo dos anos, conforme o gosto e a qualidade que têm. A variedade Asteca é utilizada como ração para os animais e a Palha Roxa para silagem.

Élcio vangloria-se de não gastar dinheiro comprando ração, tampouco sementes para plantar – mesmo com a avassaladora seca dos dois últimos anos. “Afinal de um caroço você faz uma roça, né?”, como ele mesmo aponta. O milho é plantado de modo a não haver cruzamento entre as variedades, sendo também guardados em paióis específicos. As sementes selecionadas e que serão usadas no próximo plantio são armazenadas nos tambores, ainda na palha. Ele entende que 109

essa não é a melhor maneira de acondicioná-las, mas que estão seguras para o uso. As sementes no paiol são utilizadas como ração para as galinhas.

Foto 06. A) Élcio mostrando suas sementes guardadas em tambores. B) Paiol onde são armazenadas espigas para ração dos animais.

Estes dois casos me atentaram que, apesar do advento da seca, os paióis estavam abastecidos de sementes, mesmo que em pequenas quantidades. Os elementos percebidos nesses dois casos remontam à importância do armazenamento na unidade familiar e apontam também a possibilidade de complementariedade deste tipo de conservação à Casa de Sementes.

3.4 As casas de sementes como estratégia complementar ao armazenamento