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A professora de Português não sabe dar aula

Plano aberto. Interno. Dia. Sala de reuniões. A imagem, partindo do centro, circula toda a sala focando, professores, alguns pais, alguns alunos, funcionários, o supervisor, a diretora, a vice-diretora, (sentados em círculo), e para na orientadora pedagógica, em pé, na frente de uma tela em branco, pendurada na parede.

Sobre a imagem, o letreiro: Reunião Pedagógica entre os anos 2000 e 2008.

Novamente em círculo a imagem para em cada um que se apresenta, dizendo o nome e o lugar que ocupa nas relações escolares. A última a se apresentar é a orientadora pedagógica que, logo em seguida, passa a explicar o motivo de estarem todos ali: nesse ano resolvemos inovar na organização da RPAI (Reunião Pedagógica de Avaliação Institucional), fazendo para todos os seguimentos que compõem a organização escolar – equipe gestora, professores, funcionários, alunos e pais - as seguintes perguntas: Qual a escola que temos? Qual a escola que queremos? E aqui está o resultado.

Nesse momento a orientadora pedagógica liga o projetor ao mesmo tempo em que diz: não foi fácil coletar todos esses dados e organizá-los, mas aqui está.

A imagem centra-se na tela onde se vê uma série tópicos escritos e vai se aproximando até focar a seguinte frase: “A professora de português não sabe dar aulas.

A imagem então volta para os participantes da reunião que olham para a tela com uma certa perplexidade, em silêncio. De repente todos começam a falar ao mesmo tempo. A pergunta que permeia a confusa discussão é: quem foi que disse isso?

Foco na professora de Português que num misto de indignação e tristeza, tenta se justificar. Ela sai da sala. O burburinho continua até sua volta.

Com a prova do crime em mãos ela pede a atenção de todos e diz: eu sei quem escreveu essa frase; aqui está a prova.

Foco no papel que ela tem em mãos onde, como título de uma redação se lê: “Uma tarde ensolarada”.

A “gestão democrática da escola” é um tema bastante difundido nos cursos de formação de professores e gestores, nas reuniões pedagógicas e nas perspectivas de funcionamento das escolas públicas, na atualidade. No município de Campinas esse movimento se traduz em um Projeto de Lei16 que “dispõe sobre a gestão democrática na Educação Municipal de Campinas”, atendendo uma demanda do Plano Nacional de Educação, em trâmite legal. Em seu artigo 2º esse projeto de lei define a “gestão democrática pública como uma maneira de organizar o funcionamento das unidades educacionais públicas e demais órgãos públicos do Sistema Municipal de Ensino quanto aos aspectos políticos, administrativos, financeiros, tecnológicos, culturais, artísticos e pedagógicos, com a finalidade de garantir a participação, o pluralismo, a autonomia e dar transparência às suas ações e atos”. Daí por diante segue estabelecendo normas e orientações no que diz respeito à participação da comunidade através de “Conselhos e Órgãos Colegiados”, à transparência nos atos administrativos, à “autonomia das unidades escolares, nos termos da lei”, etc.

A trajetória que define a relação entre as determinações legais, os conceitos técnicos e científicos e a organização e funcionamento cotidianos da escola é uma via de mão de dupla. Ao mesmo tempo em que a comunidade escolar se apropria dos saberes produzidos técnica e cientificamente e os reelaboram segundo realidades e necessidades próprias, esses saberes também se alimentam do cotidiano.

O projeto de lei ao qual eu me refiro, diga-se de passagem, é posterior à reunião pedagógica que me serve de base para a construção da cena em destaque, no entanto a reunião circunscreve-se no diálogo com uma temática que já vem sendo debatida há muito tempo nos anais da produção cientifica no campo da Pedagogia. Desse diálogo também participa o poder público que, por sua vez, transforma o movimento em documento, formalizando-o e institucionalizando-o.

16 Atualmente sou Supervisor Educacional da Secretaria Municipal de Educação de Campinas e tive contato com

esse Projeto de Lei, numa reunião de trabalho onde ele foi apresentado para análise. Sendo assim, ele ainda não é um documento público.

Coexiste, contudo, com essa história e existência documentada, outra história e existência não documentada através da qual a escola toma forma material, ganha vida. Nessa história a determinação e presença estatal se entrecruza com as determinações e presenças civis de variadas características. A homogeneidade documentada decompõe-se em múltiplas realidades cotidianas. Nesta história não documentada, nessa dimensão cotidiana, os trabalhadores, os alunos e os pais se apropriam dos subsídios e das prescrições estatais e constroem a escola. (ROCKWELL e EZPELETA, 1989, p. 134)

Nesse movimento uma produção silenciosa aos ouvidos da oficialidade, um movimento sutil, astuto, construído no âmbito do cotidiano e impossível de ser capturado pela formalidade dos documentos oficiais, vai se constituindo. Mais uma tática, diria eu, conversando com Certeau (1994).

A frase, projetada na parede, chocou os professores, causou comoção. Como assim, “a professora de Português não sabe dar aula”? Quem havia escrito tal disparate?

A professora em questão, um tanto desorientada, tentava justificar-se, opondo-se àquela afirmativa, dizendo dos anos de dedicação que dispensara ao ensino, da boa relação que sempre estabelecera com os alunos e da sua incompreensão em relação à tamanha inconsistência. Os demais professores puseram-se a seu favor. Tão inconformados quanto ela, protestaram, organizando uma busca pelo “culpado”.

A orientadora pedagógica, responsável pela coordenação daquele trabalho, impassível, também justificava-se, afirmando não ser ela a autora daquela frase. Dizia que as produções haviam sido realizadas no anonimato, mas que sabia que a famigerada frase havia saído do universo dos alunos.

Alunos? Que Alunos? Os da sétima série, afirmou.

Nesse momento a professora de Português teve certeza absoluta de que sabia quem era a autora daquele disparate e tinha como provar. Saiu da sala, voltando logo em seguida com a redação em mãos: “Uma tarde ensolarada”.

Quem mais, além daquela que rira despudoradamente dos professores poderia ter escrito aquela frase?

O riso que em princípio fora relevado em detrimento da formalidade implícita nas práticas escolares e que, acredito eu, a professora resolvera remir evitando um enfrentamento direto, agora emergia com toda a força de vida e morte que constituíam sua ambivalência.

A certeza em torno da culpada, vinha acompanhada da desconfiança em relação à orientadora pedagógica. Será que atitude em expor a professora daquela maneira havia sido proposital? A relação entre ela e os professores não era das melhores. Os embates em torno das práticas pedagógicas executadas pelos professores que ela insistia em questionar, eram constantes. Ela já havia, inclusive, dirigido críticas ao trabalho da professora de Português.

Eu fazia parte desse movimento, estava lá, como professor, compondo aquele círculo “democrático e participativo” e tomei partido da professora no que diz respeito à exposição que sofrera; acredito ter sido esse o motivo pelo qual ela, confiando em mim, me concedeu uma cópia da redação.

Tenho dúvidas, até hoje, em relação à autoria da frase. Nada, além da convicção da professora, e dos indícios daquele primeiro embate apontava a aluna como autora dos dois textos. Qualquer outro aluno poderia, naquele momento, estar rindo dos professores e da estrutura hierárquica da qual faziam parte. Ao responder a indagação da orientadora pedagógica o autor da frase sabia perfeitamente com quem estava falando e que lugar ela ocupava no universo das relações escolares; ele sabia da hierarquia que sustenta essas relações. Será que o que estava posto, novamente, era um jogo de táticas de subversão dos lugares sociais?

Quanto à orientadora pedagógica, estaria ela utilizando-se de uma estratégia de poder para afirmar seu lugar na estrutura hierárquica da organização escolar, apropriando-se da palavra alheia? – ela fixa a frase na parede como verdade, porém explica que quem fala não é ela, mas o aluno com quem ela parece concordar.

Como estratégias de poder, Certeau (1994, p.99) compreende

o cálculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. Uma estratégia postula um lugar suscetível de ser

circunscrito como algo próprio a ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (...). Como na organização de empresas, toda racionalização “estratégica” procura em primeiro lugar distinguir de um “ambiente” um “próprio”, isto é, o lugar do poder e do querer próprios. Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro.

A diferença entre as táticas da aluna e a possível estratégia da orientadora pedagógica situar-se-ia, então, no objeto do questionamento; enquanto a primeira questiona o lugar de seus oponentes reelaborando, momentaneamente, as relações de poder, a segunda parece querer firmar e afirmar seu lugar nas relações hierárquicas. A tática manipula a ordem ao passo que a estratégia procura, também num movimento de manipulação, fixar o ordem.

Nesse jogo, entre táticas e estratégias, o cotidiano vai se constituindo, no acontecimento, para além daquilo que prevê a oficialidade e a racionalização científica, num universo de contradições.

A palavra é arena de lutas (já dissemos isso); nela, valores contraditórios se digladiam. Refletindo e refratando uma determinada realidade a palavra cumpre o

seu papel de “signo ideológico (…) [tendo], como Jano, duas faces [onde] toda

critica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Essa dialética interna do signo não se revela

inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária

(BAKHTIN / VOLOCHINOV, 2004, p.47).

Vivíamos essa crise; o que estava em jogo não era a sapiência pedagógica da professora de Português ou a “verdade” implícita nas palavras projetadas na parede, mas, sim, as disputas ideológicas entre sujeitos de uma mesma comunidade semiótica que, ao afirmar o lugar que cada um ocupava na trama, também colocava em cheque a estabilidade de cada um desses lugares. Outras verdades estavam ocultas naquelas palavras.

Todo enunciado é uma resposta a outro enunciado, salienta Bakhtin (2004). Na ininterrupta corrente da comunicação verbal, um diálogo leva a outro diálogo, que leva a outro... Observemos esse movimento não só na réplica empreendida pela professora de português ao enunciado da aluna como origem da problemática

apresentada pela orientadora pedagógica, mas em todo um conjunto de sentidos que se produzem na dinâmica da interação verbal; essas duvidam da estabilidade dos lugares de poder, que reelaboram a organização hierárquica dos saberes, que burlam a ordem estabelecida. Sentidos esses que superam o imperativo da escola como mera reprodutora da ordem dominante sedimentada na organização da fábrica, e de seus sujeitos como peças do jogo do poder que, manipulados pela ideologia, se veem desprovidos de criatividade.

Aliás, nem mesmo na fábrica, apesar do controle mais efetivo do tempo e do movimento, o cotidiano simplesmente reproduz a ordem.

Cena 7: Muitas câimbras, muitas...